Por uma feliz coincidência, o “jubileu de prata” da renúncia do primeiro presidente da Rússia moderna, Boris Ieltsin, coincidiu com meu movimento de adiantar vários pedidos e projetos que foram sendo represados durante a existência de meu canal Pan-Eslavo Brasil. Infelizmente, legendas não vai haver, mas seguem abaixo os textos completos do discurso de renúncia de Ieltsin (sobre quem já falei numa publicação bastante antiga), pronunciado à guisa de votos de fim de ano na noite de 31 de dezembro de 1999, e do discurso com os votos daquele que, pela Constituição, deveria suceder o bebum até a realização de novas eleições: o ex-agente do KGB soviético e primeiro-ministro por ele escolhido em agosto de 1999, Vladimir Putin.
Confesso que é a primeira vez que leio atentamente os dois textos, e no caso de Putin, só tenho a dizer que muito pouco mudou em relação a tudo o que ele viria a falar durante o último quarto de século: banalidades, votos vazios, afagos insinceros. Sobre Ieltsin, tudo é muito mais complicado, porque primeiro, acho que ele não previu a dimensão histórica da escolha (pessoal, a ser somente ratificada pela Duma Estatal) do trombadinha de Leningrado como premiê, a começar pelo genocídio que ele imediatamente ia mandar perpetrar na Chechênia pra acabar com o separatismo. É famosa a frase segundo a qual “vamos caçar terroristas até dentro das privadas”, mas a matança foi feita, e mesmo assim a guerra não terminaria com uma vitória total, mas com um acordo com a família Kadýrov, até hoje vassala de Putin e que vassaliza aquela região.
E segundo, e mais gritante: a promessa de uma nova geração que renovasse a Rússia rumo a uma democracia de mercado foi frustrada com uma caminhada em sentido inverso. Custa acreditar que a “dor” (no coração, talvez sim, porque era cardiopata), a “decepção” e o “pedido de perdão” de Ieltsin fossem sinceros, mas não somente velhas raposas dos tempos soviéticos continuaram no poder, como também cada vez mais a Rússia se militarizou, sua economia se fechou e seu sistema político superou a época de Leoníd Brézhnev em repressão, censura e letalidade de dissidentes. Assim como o belarusso Lukashénka, Putin é o exemplo daquele Homo sovieticus cujo fóssil não foi enterrado e continua emperrando a “lei da evolução”. Os realmente novos foram exilados, presos, mortos ou condenados ao silêncio.
É um milagre que no próprio portal do Kremlin haja as versões oficiais em texto e em vídeo dos discursos de feliz ano 2000 (“Século Novo”) tanto de Ieltsin (também saiu no antigo portal da BBC russa) quanto de Putin, e as mídias (de péssima qualidade) que incorporei podem ser vistas abaixo. E é curioso que no mesmo site o discurso de renúncia tenha o simples título “Anúncio de Boris Ieltsin”, enquanto o seguinte já se chame “Alocução de Ano Novo do Presidente em Exercício Vladimir Putin aos cidadãos da Rússia”. Antes do primeiro discurso, também incorporei a junção dos dois feita e carregada pelo Centro Ieltsin em 2011, cuja qualidade está bem melhor e que não corta nem a abertura solene do aviso de renúncia, nem a execução final do hino nacional então vigente, a Canção Patriótica. (Há outro upload neste canal, caso o original dê problemas.) Seria a última vez que o hino apareceria em tal ocasião, antes de dar lugar ao atual, com a mesma melodia do hino da antiga URSS.
Do fundo do baú, e mantendo o webdesign daquela época, ainda está disponível uma tradução do discurso de Ieltsin publicada pela Folha de S. Paulo, que serviu de base pra que eu fizesse minha própria, após cotejar com o original em russo. Há várias imprecisões, certamente derivadas do fato de ter sido feita a partir de alguma versão em inglês, mas mantive o estilo mais formal da época e evitei imprimir “minha própria marca”, como costumo fazer por aqui; o estilo foi igualmente alinhado no discurso de Putin. A própria Folha também deu a notícia da renúncia, chamada no texto de “surpresa”, e o Jornal do Commercio de Recife também trouxe o evento (versão arquivada) em suas páginas.
Das muitas traduções que consegui encontrar há alguns anos pra comparar com o original russo (algo que hoje praticamente quase nunca faço), não usei nenhuma sequer pra tirar dúvidas, mas as deixo aqui pra conferência pública: em inglês feita pela BBC, em inglês feita por uma escritora desconhecida, em francês (versão arquivada) feita por um site atualmente suspenso e em espanhol feita por El Mundo. A estreia de Putin, bastante curta, joguei no Google Tradutor e comparei com o original em russo, e agora talvez seja a única tradução escrita disponível em português na internet!
Nos próximos dias, vão vir mais traduções de votos de fim de ano de vários líderes (Macron, Putin, Sandu, Radev), e em 2025 vou tentar manter o ritmo de uma publicação por dia, mesmo que isso canse meu público... Um de meus próximos projetos é justamente traduzir e publicar os vídeos da maioria dos discursos disponíveis dos últimos presidentes da França e da Rússia, cujos arquivos já estou conseguindo encontrar e guardar. Feliz ano novo, paz ao mundo, menos fanatismo e notícias ruins e até as próximas traduções!
Caros russos,
Resta muito pouco tempo antes de uma data mágica em nossa história: o ano 2000 está se aproximando, um novo século, um novo milênio.
Faremos todas as nossas provas nesta data. Ficávamos pensando – primeiro na infância, depois crescidos – com que idade estaríamos em 2000, com que idade estariam nossas mães e nossos filhos. Parecia outrora que esse inusitado Ano Novo estava tão distante, e eis que esse dia chegou.
Caros amigos, meus caros! Hoje estou me dirigindo a vocês pela última vez com uma saudação de Ano Novo. Mas não é só isso: hoje estou me dirigindo a vocês pela última vez como Presidente da Rússia.
Tomei uma decisão. Ponderei longa e duramente sobre isso. Hoje, no último dia do século que está acabando, estou renunciando ao cargo.
Tenho ouvido muitas vezes: "Ieltsin se agarrará ao poder a qualquer custo, não o entregará a ninguém." Isso é mentira [vranió]. Esse não é o ponto. Eu sempre disse que jamais divergiria nem um pouco da Constituição, que as eleições para a Duma Estatal deveriam ocorrer nos prazos constitucionais. Assim ocorreu. Eu também desejava que a eleição presidencial ocorresse no tempo certo, em junho de 2000. Isso era muito importante para a Rússia. Estamos criando um precedente importantíssimo para uma transferência de poder civilizada e voluntária: o poder de um Presidente da Rússia para outro, recém-eleito. E, todavia, tomei uma decisão diferente: estou renunciando, renunciando antes do tempo estabelecido.
Compreendi que era necessário eu fazer isso. A Rússia precisa entrar no novo milênio com novos políticos, com novos rostos, com novas pessoas inteligentes, fortes e enérgicas. E nós, que já estamos no poder há muitos anos, devemos partir.
Tendo visto com que esperança e fé as pessoas votaram, nas eleições para a Duma, numa nova geração de políticos, compreendi que realizei o ato mais importante de minha vida. A Rússia nunca mais retornará ao passado: agora, a Rússia para sempre seguirá apenas em frente. E não devo interferir nessa marcha natural da história. Como manter o poder por mais meio ano, enquanto o país tem um homem forte, digno de ser Presidente e no qual praticamente todos os russos estão agora depositando suas esperanças para o futuro??? Por que eu deveria atrapalhá-lo, para que esperar mais meio ano? Não, não é meu estilo, não é conforme a meu caráter!
Hoje, neste dia incomumente importante para mim, quero dizer mais umas palavras pessoais além das que costumo falar. Quero lhes pedir perdão. Por muitos sonhos que compartilhamos não terem se realizado. E por muito do que nos parecia fácil ter se revelado duramente difícil. Peço perdão por ter frustrado algumas esperanças das pessoas que acreditavam que num só golpe, de uma só vez, poderíamos transitar de um passado cinza, estagnado e totalitário para um futuro luminoso, rico e civilizado. Eu mesmo acreditava nisso: parecia que poderíamos superar tudo de uma só vez.
De uma só vez foi impossível. De alguma forma fui extremamente ingênuo. Em alguns lugares, os problemas se mostraram complicados demais. Forçamos a marcha passando por enganos e falhas. Nesses tempos difíceis, muitas pessoas viveram um colapso.
Mas quero que vocês saibam que eu nunca disse isso, e hoje é importante que eu lhes diga: a dor de cada um de vocês despertou a dor em mim, em meu coração. Noites sem dormir, duras preocupações: o que precisava ser feito para que as pessoas, mesmo que só um pouquinho, vivessem mais facilmente e melhor. Eu não tinha nenhum dever mais importante.
Estou renunciando, fiz tudo o que podia. E não seguindo minha escolha, mas levando em consideração a totalidade dos problemas. Uma nova geração está me substituindo, a geração dos que podem fazer mais e melhor.
Seguindo a Constituição, por ocasião de minha renúncia, assinei o Decreto sobre a Transmissão do Cargo de Presidente da Rússia para o Presidente do Governo [primeiro-ministro], Vladímir Vladímirovich Pútin. No decorrer de três meses, seguindo a Constituição, ele será o chefe de Estado. E daqui a três meses, também seguindo a Constituição, será realizada a eleição para Presidente.
Sempre tive confiança na admirável na sabedoria dos russos. Por isso, não tenho dúvidas sobre a escolha que vocês farão no final de março de 2000.
Além de me despedir, quero dizer a cada um de vocês: sejam felizes. Vocês merecem a felicidade, vocês merecem felicidade e tranquilidade.
Feliz Ano Novo! Feliz Século Novo, meus caros!
Caros amigos!
Hoje, na véspera de Ano Novo, assim como vocês, sua família e seus amigos, eu ia ouvir as palavras de saudação do Presidente da Rússia, Borís Nikoláievich Iéltsin. Mas acabou sendo diferente.
Hoje, 31 de dezembro de 1999, o primeiro Presidente da Rússia tomou a decisão de renunciar ao cargo. Ele pediu que eu me dirigisse ao país.
Caros russos! Caros compatriotas!
Hoje me foi incumbida a responsabilidade de chefe de Estado. Daqui a três meses, será realizada a eleição para Presidente da Rússia. Chamo a atenção para o fato de que nem por um minuto haverá um vazio de poder no país. Nunca houve e nunca haverá.
Quero alertar que quaisquer tentativas de sair das margens das leis russas e das margens da Constituição da Rússia serão decididamente suprimidas.
Liberdade de expressão, liberdade de consciência, liberdade dos meios de comunicação em massa e direitos de propriedade, elementos fundamentais de uma sociedade civilizada, serão zelosamente protegidos pelo Estado. As Forças Armadas, o Serviço Federal de Fronteiras e os órgãos de manutenção da ordem realizam seu trabalho no mesmo regime de sempre. O Estado se manteve e se manterá velando pela segurança de cada um de nossos cidadãos.
Ao tomar a decisão de transmitir seu cargo, o Presidente agiu em plena conformidade com a Constituição do país. Talvez só daqui a algum tempo seja possível avaliar honestamente o quanto este homem fez pela Rússia. Mas hoje seu grande mérito já está claro: a Rússia seguiu pelo caminho da democracia e das reformas, não se desviou desse caminho e conseguiu afirmar-se como um forte Estado independente.
Gostaria de desejar ao primeiro Presidente da Rússia, Boris Nikolaievich Ieltsin, saúde e felicidade.
Para os russos [na Rusí], o Ano Novo é a festa mais luminosa, agradável e amada. Como se sabe, os sonhos se realizam no Ano Novo. E mais ainda neste Ano Novo tão incomum. Tudo de bom e de agradável que vocês planejaram certamente se realizará.
Caros amigos!
Faltam apenas alguns segundos para a chegada do ano 2000. Vamos sorrir para nossos parentes e amigos. Vamos desejar um ao outro calor, felicidade, amor. E levantemos nossas taças pelo novo século da Rússia, pelo amor e pela paz em cada um de nossos lares, pela saúde de nossos pais e filhos.
Feliz Ano Novo para vocês! Feliz Século Novo!