terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Último discurso de Ieltsin (1999)


Endereço curto: fishuk.cc/ieltsin99


Por uma feliz coincidência, o “jubileu de prata” da renúncia do primeiro presidente da Rússia moderna, Boris Ieltsin, coincidiu com meu movimento de adiantar vários pedidos e projetos que foram sendo represados durante a existência de meu canal Pan-Eslavo Brasil. Infelizmente, legendas não vai haver, mas seguem abaixo os textos completos do discurso de renúncia de Ieltsin (sobre quem já falei numa publicação bastante antiga), pronunciado à guisa de votos de fim de ano na noite de 31 de dezembro de 1999, e do discurso com os votos daquele que, pela Constituição, deveria suceder o bebum até a realização de novas eleições: o ex-agente do KGB soviético e primeiro-ministro por ele escolhido em agosto de 1999, Vladimir Putin.

Confesso que é a primeira vez que leio atentamente os dois textos, e no caso de Putin, só tenho a dizer que muito pouco mudou em relação a tudo o que ele viria a falar durante o último quarto de século: banalidades, votos vazios, afagos insinceros. Sobre Ieltsin, tudo é muito mais complicado, porque primeiro, acho que ele não previu a dimensão histórica da escolha (pessoal, a ser somente ratificada pela Duma Estatal) do trombadinha de Leningrado como premiê, a começar pelo genocídio que ele imediatamente ia mandar perpetrar na Chechênia pra acabar com o separatismo. É famosa a frase segundo a qual “vamos caçar terroristas até dentro das privadas”, mas a matança foi feita, e mesmo assim a guerra não terminaria com uma vitória total, mas com um acordo com a família Kadýrov, até hoje vassala de Putin e que vassaliza aquela região.

E segundo, e mais gritante: a promessa de uma nova geração que renovasse a Rússia rumo a uma democracia de mercado foi frustrada com uma caminhada em sentido inverso. Custa acreditar que a “dor” (no coração, talvez sim, porque era cardiopata), a “decepção” e o “pedido de perdão” de Ieltsin fossem sinceros, mas não somente velhas raposas dos tempos soviéticos continuaram no poder, como também cada vez mais a Rússia se militarizou, sua economia se fechou e seu sistema político superou a época de Leoníd Brézhnev em repressão, censura e letalidade de dissidentes. Assim como o belarusso Lukashénka, Putin é o exemplo daquele Homo sovieticus cujo fóssil não foi enterrado e continua emperrando a “lei da evolução”. Os realmente novos foram exilados, presos, mortos ou condenados ao silêncio.

É um milagre que no próprio portal do Kremlin haja as versões oficiais em texto e em vídeo dos discursos de feliz ano 2000 (“Século Novo”) tanto de Ieltsin (também saiu no antigo portal da BBC russa) quanto de Putin, e as mídias (de péssima qualidade) que incorporei podem ser vistas abaixo. E é curioso que no mesmo site o discurso de renúncia tenha o simples título “Anúncio de Boris Ieltsin”, enquanto o seguinte já se chame “Alocução de Ano Novo do Presidente em Exercício Vladimir Putin aos cidadãos da Rússia”. Antes do primeiro discurso, também incorporei a junção dos dois feita e carregada pelo Centro Ieltsin em 2011, cuja qualidade está bem melhor e que não corta nem a abertura solene do aviso de renúncia, nem a execução final do hino nacional então vigente, a Canção Patriótica. (Há outro upload neste canal, caso o original dê problemas.) Seria a última vez que o hino apareceria em tal ocasião, antes de dar lugar ao atual, com a mesma melodia do hino da antiga URSS.

Do fundo do baú, e mantendo o webdesign daquela época, ainda está disponível uma tradução do discurso de Ieltsin publicada pela Folha de S. Paulo, que serviu de base pra que eu fizesse minha própria, após cotejar com o original em russo. Há várias imprecisões, certamente derivadas do fato de ter sido feita a partir de alguma versão em inglês, mas mantive o estilo mais formal da época e evitei imprimir “minha própria marca”, como costumo fazer por aqui; o estilo foi igualmente alinhado no discurso de Putin. A própria Folha também deu a notícia da renúncia, chamada no texto de “surpresa”, e o Jornal do Commercio de Recife também trouxe o evento (versão arquivada) em suas páginas.

Das muitas traduções que consegui encontrar há alguns anos pra comparar com o original russo (algo que hoje praticamente quase nunca faço), não usei nenhuma sequer pra tirar dúvidas, mas as deixo aqui pra conferência pública: em inglês feita pela BBC, em inglês feita por uma escritora desconhecida, em francês (versão arquivada) feita por um site atualmente suspenso e em espanhol feita por El Mundo. A estreia de Putin, bastante curta, joguei no Google Tradutor e comparei com o original em russo, e agora talvez seja a única tradução escrita disponível em português na internet!

Nos próximos dias, vão vir mais traduções de votos de fim de ano de vários líderes (Macron, Putin, Sandu, Radev), e em 2025 vou tentar manter o ritmo de uma publicação por dia, mesmo que isso canse meu público... Um de meus próximos projetos é justamente traduzir e publicar os vídeos da maioria dos discursos disponíveis dos últimos presidentes da França e da Rússia, cujos arquivos já estou conseguindo encontrar e guardar. Feliz ano novo, paz ao mundo, menos fanatismo e notícias ruins e até as próximas traduções!




Caros russos,

Resta muito pouco tempo antes de uma data mágica em nossa história: o ano 2000 está se aproximando, um novo século, um novo milênio.

Faremos todas as nossas provas nesta data. Ficávamos pensando – primeiro na infância, depois crescidos – com que idade estaríamos em 2000, com que idade estariam nossas mães e nossos filhos. Parecia outrora que esse inusitado Ano Novo estava tão distante, e eis que esse dia chegou.

Caros amigos, meus caros! Hoje estou me dirigindo a vocês pela última vez com uma saudação de Ano Novo. Mas não é só isso: hoje estou me dirigindo a vocês pela última vez como Presidente da Rússia.

Tomei uma decisão. Ponderei longa e duramente sobre isso. Hoje, no último dia do século que está acabando, estou renunciando ao cargo.

Tenho ouvido muitas vezes: "Ieltsin se agarrará ao poder a qualquer custo, não o entregará a ninguém." Isso é mentira [vranió]. Esse não é o ponto. Eu sempre disse que jamais divergiria nem um pouco da Constituição, que as eleições para a Duma Estatal deveriam ocorrer nos prazos constitucionais. Assim ocorreu. Eu também desejava que a eleição presidencial ocorresse no tempo certo, em junho de 2000. Isso era muito importante para a Rússia. Estamos criando um precedente importantíssimo para uma transferência de poder civilizada e voluntária: o poder de um Presidente da Rússia para outro, recém-eleito. E, todavia, tomei uma decisão diferente: estou renunciando, renunciando antes do tempo estabelecido.

Compreendi que era necessário eu fazer isso. A Rússia precisa entrar no novo milênio com novos políticos, com novos rostos, com novas pessoas inteligentes, fortes e enérgicas. E nós, que já estamos no poder há muitos anos, devemos partir.

Tendo visto com que esperança e fé as pessoas votaram, nas eleições para a Duma, numa nova geração de políticos, compreendi que realizei o ato mais importante de minha vida. A Rússia nunca mais retornará ao passado: agora, a Rússia para sempre seguirá apenas em frente. E não devo interferir nessa marcha natural da história. Como manter o poder por mais meio ano, enquanto o país tem um homem forte, digno de ser Presidente e no qual praticamente todos os russos estão agora depositando suas esperanças para o futuro??? Por que eu deveria atrapalhá-lo, para que esperar mais meio ano? Não, não é meu estilo, não é conforme a meu caráter!

Hoje, neste dia incomumente importante para mim, quero dizer mais umas palavras pessoais além das que costumo falar. Quero lhes pedir perdão. Por muitos sonhos que compartilhamos não terem se realizado. E por muito do que nos parecia fácil ter se revelado duramente difícil. Peço perdão por ter frustrado algumas esperanças das pessoas que acreditavam que num só golpe, de uma só vez, poderíamos transitar de um passado cinza, estagnado e totalitário para um futuro luminoso, rico e civilizado. Eu mesmo acreditava nisso: parecia que poderíamos superar tudo de uma só vez.

De uma só vez foi impossível. De alguma forma fui extremamente ingênuo. Em alguns lugares, os problemas se mostraram complicados demais. Forçamos a marcha passando por enganos e falhas. Nesses tempos difíceis, muitas pessoas viveram um colapso.

Mas quero que vocês saibam que eu nunca disse isso, e hoje é importante que eu lhes diga: a dor de cada um de vocês despertou a dor em mim, em meu coração. Noites sem dormir, duras preocupações: o que precisava ser feito para que as pessoas, mesmo que só um pouquinho, vivessem mais facilmente e melhor. Eu não tinha nenhum dever mais importante.

Estou renunciando, fiz tudo o que podia. E não seguindo minha escolha, mas levando em consideração a totalidade dos problemas. Uma nova geração está me substituindo, a geração dos que podem fazer mais e melhor.

Seguindo a Constituição, por ocasião de minha renúncia, assinei o Decreto sobre a Transmissão do Cargo de Presidente da Rússia para o Presidente do Governo [primeiro-ministro], Vladímir Vladímirovich Pútin. No decorrer de três meses, seguindo a Constituição, ele será o chefe de Estado. E daqui a três meses, também seguindo a Constituição, será realizada a eleição para Presidente.

Sempre tive confiança na admirável na sabedoria dos russos. Por isso, não tenho dúvidas sobre a escolha que vocês farão no final de março de 2000.

Além de me despedir, quero dizer a cada um de vocês: sejam felizes. Vocês merecem a felicidade, vocês merecem felicidade e tranquilidade.

Feliz Ano Novo! Feliz Século Novo, meus caros!


Caros amigos!

Hoje, na véspera de Ano Novo, assim como vocês, sua família e seus amigos, eu ia ouvir as palavras de saudação do Presidente da Rússia, Borís Nikoláievich Iéltsin. Mas acabou sendo diferente.

Hoje, 31 de dezembro de 1999, o primeiro Presidente da Rússia tomou a decisão de renunciar ao cargo. Ele pediu que eu me dirigisse ao país.

Caros russos! Caros compatriotas!

Hoje me foi incumbida a responsabilidade de chefe de Estado. Daqui a três meses, será realizada a eleição para Presidente da Rússia. Chamo a atenção para o fato de que nem por um minuto haverá um vazio de poder no país. Nunca houve e nunca haverá.

Quero alertar que quaisquer tentativas de sair das margens das leis russas e das margens da Constituição da Rússia serão decididamente suprimidas.

Liberdade de expressão, liberdade de consciência, liberdade dos meios de comunicação em massa e direitos de propriedade, elementos fundamentais de uma sociedade civilizada, serão zelosamente protegidos pelo Estado. As Forças Armadas, o Serviço Federal de Fronteiras e os órgãos de manutenção da ordem realizam seu trabalho no mesmo regime de sempre. O Estado se manteve e se manterá velando pela segurança de cada um de nossos cidadãos.

Ao tomar a decisão de transmitir seu cargo, o Presidente agiu em plena conformidade com a Constituição do país. Talvez só daqui a algum tempo seja possível avaliar honestamente o quanto este homem fez pela Rússia. Mas hoje seu grande mérito já está claro: a Rússia seguiu pelo caminho da democracia e das reformas, não se desviou desse caminho e conseguiu afirmar-se como um forte Estado independente.

Gostaria de desejar ao primeiro Presidente da Rússia, Boris Nikolaievich Ieltsin, saúde e felicidade.

Para os russos [na Rusí], o Ano Novo é a festa mais luminosa, agradável e amada. Como se sabe, os sonhos se realizam no Ano Novo. E mais ainda neste Ano Novo tão incomum. Tudo de bom e de agradável que vocês planejaram certamente se realizará.

Caros amigos!

Faltam apenas alguns segundos para a chegada do ano 2000. Vamos sorrir para nossos parentes e amigos. Vamos desejar um ao outro calor, felicidade, amor. E levantemos nossas taças pelo novo século da Rússia, pelo amor e pela paz em cada um de nossos lares, pela saúde de nossos pais e filhos.

Feliz Ano Novo para vocês! Feliz Século Novo!



segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

“Hey, Dzhankoye!” (música ídiche)


Endereço curto: fishuk.cc/dzhankoye


Outra canção que eu queria ver legendada no antigo Pan-Eslavo Brasil, mas pra qual não sobrou tempo! Como dever de honra, mesmo que seja um material já muito difundido na internet, trago nesta quase virada de ano a canção ídiche “דזשאַנקױע” (Dzhankoye), às vezes também conhecida como Hey, Zhankoye!, em referência a uma pequena cidade na Crimeia chamada Dzhankói (tanto em russo quanto em ucraniano). Há também referência às linhas férreas que se cruzavam lá e causavam muita impressão na população. A adição da letra “e” é exclusividade do idioma judaico-germânico, que era muito mais falado na Europa, sobretudo Oriental, antes do Holocausto e da escolha do hebraico moderno como língua oficial do novo Estado de Israel.

Segundo este site que traz a letra original, a transliteração pro alfabeto latino e uma tradução em inglês, Dzhankoye é uma canção folclórica sem autor definido, executada pelos agricultores judeus na Crimeia a partir de meados da década de 1920. Como a península tem grande influência turca (e lá também vivem tártaros e os chamados “tártaros da Crimeia”, de línguas túrquicas), muitos internautas sugeriram uma relação da repetição de “dzhan” com a palavra turca can (“querido/a”), que tem a mesma pronúncia “dján”. A primeira publicação foi feita em 1938 por Moishe Beregovski-ltsik Fefer, e desde então várias gravações antigas e recentes têm sido feitas, dentre as quais se destacam as dos grupos The Limeliters e Klezmatics e dos cantores Pete Seeger e Theodore Bikel.

Neste tópico de discussão numa página no Reddit, há também outras traduções alternativas em português e outras informações sobre o contexto da canção. Abaixo coloquei minhas versões preferidas (primeira, do cantor Frieder Breitkreutz, e segunda, do grupo Oy Vey), além da tradução em português que fiz confrontando a disponível no referido portal e a que achei num comentário do YouTube, ambas em inglês. Os áudios, obviamente, podem variar com o que publiquei aqui, baseado essencialmente naquele site:




1. אַז מען פֿאָרט קײן סעװאַסטאָפּאָל
איז ניט װײַט פֿון סימפֿעראָפּאָל
דאָרטן איז אַ סטאַנציע פֿאַראַן
װער דאַרף זוכן נײַע גליקן?
ס׳איז אַ סטאַנציע אַן אַנטיקל
אין דזשאַנקױע, דזשאַן, דזשאַן, דזשאַן

רעפֿרײן:
הײ, דזשאַן, הײ דזשאַנקױע
הײ, דושאַנװילי, הײ, דזשאַנקױע
הײ, דזשאַנקױע, דזשאַן, דזשאַן, דזשאַן
הײ, דזשאַן, הײ דזשאַנקױע
הײ, דושאַנװילי, הײ, דזשאַנקױע
הײ, דזשאַנקױע, דזשאַן, דזשאַן, דזשאַן

2. ענטפֿערט, ייִדן, אױף מײַן קשיא
װוּ ז׳מײַן ברודער, װוּ ז׳אַבראַשע?
ס׳גײט בײַ אים דער טראַקטער װי אַ באַן
די מומע לאה בײַ דער קאָסילקע
די מומע לאה בײַ דער קאָסילקע
אין דזשאַנקױע, דזשאַן, דזשאַן, דזשאַן

(רעפֿרײן)

3. װער זאָגט, אַז ייִדן קאָנען נאָר האַנדלען
עסן פֿעטע יױך מיט מאַנדלען
נאָר ניט זײַן קײן אַרבעטסמאַן?
דאָס קאָנען זאָגן נאָר די שׂונאים
ייִדן, שפּײַט זײ אָן אין פּנים
טוט אַ קוק אױף דזשאַן, דזשאַן, דזשאַן

(רעפֿרײן)

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1. Az men fort keyn Sevastopol
Iz nit vayt fun Simferopol
Dortn iz a stantsiye faran
Ver dart zukhn naye glikn?
S’iz a stantsye an antikl
In Dzhankoye, Dzhan, Dzhan, Dzhan.

Refreyn:
Hey, Dzhan, hey Dzhankoye
Hey, Dzhanvili, hey, Dzhankoye
Hey, Dzhankoye, Dzhan, Dzhan, Dzhan
Hey, Dzhan, hey Dzhankoye
Hey, Dzhanvili, hey, Dzhankoye
Hey, Dzhankoye, Dzhan, Dzhan, Dzhan

2. Ver zogt, az yidn konen nor handlen
Esn fete yoykh mit mandlen
Nor nit zayn keyn arbetsman?
Dos konen zogn nor di sonim
Yidn, shpayt zey on in ponem
Tut a kuk oyf Dzhan, Dzhan, Dzhan

(Refreyn)

3. Entfert, yִidn, oyf mayn kashe
Vu’z mayn bruder, vu’z Abrashe?
S’geyt bay im der trakter vi a ban
Di mume Leye bay der kosilke
Beyle bay der molotilke
In Dzhankoye, Dzhan, Dzhan, Dzhan

(Refreyn)

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1. No caminho pra Sevastópol
Não muito longe de Simferópol
Há uma estação ferroviária
Quem precisa buscar novos sucessos?
É uma estação muito especial
Em Dzhankoye, Dzhan, Dzhan, Dzhan

Refrão:
(Dispensa tradução. “Dzhanvili”
talvez seja apenas um trocadilho.)

2. Pessoal, respondam à minha pergunta
Onde está meu irmão? Onde está Abrasha?
Seu trator está andando como um trem
Minha tia Leye está na ceifadeira
E Beyle está na debulhadora,
Em Dzhankoye, Dzhan, Dzhan, Dzhan

(Refrão)

3. Quem disse que judeus só sabem comerciar
E fazer sopas gordas com amêndoas
Mas não sabem ser operários?
Só nossos inimigos podem dizer isso
Judeus, cuspam na cara deles
Dê uma olhada em Dzhan, Dzhan, Dzhan

(Refrão)



domingo, 29 de dezembro de 2024

“Moj otok” e “Corsi ci steremmu”


Endereço curto: fishuk.cc/vukov-arcusgi


Hoje tomei uma iniciativa diferente! Como em meus arquivos havia uma canção de Vice Vukov e outra do grupo corso L’Arcusgi pra traduzir, e eu não tinha outras canções nem de um, nem de outro tipo pra fazer uma nova coleção, decidi publicar as duas juntas pra variar sua diversão linguístico-musical, rs. Não tenho no momento a intenção de ampliar minha coleção de canções nacionalistas corsas que traduzi uns anos atrás, pois tenho vários outros planos de traduções, mas não há nada que me impeça um dia de a retomar. Quanto à faixa de Vukov, Moj otok (Minha ilha), eu tinha demorado pra achar uma boa versão da letra, e agora que achei, me apressei em traduzir e lançar!

A canção corsa se chama Corsi ci steremu (Vamos permanecer corsos), foi composta por Louis Franceschi, um dos integrantes da banda L’Arcusgi (se lê “larcúji”), e gravada no álbum Sò elli de 1993. Este vídeo traz a legenda na língua original e em francês, cuja tradução foi copiada deste portal. Mesmo esta, porém, tem algumas imprecisões que corrigi notando sentidos óbvios ou usando o Wikcionário e até o Google Tradutor (que agora também tem corso) à guisa de dicionário. Como se pode notar, as falas entre aspas representam o colonizador francês lhes tirando o moral. O último álbum de L’Arcusgi foi lançado justamente este ano, com o título 40 anni: Eterna lotta (40 anos: Luta eterna).

Nesta página do Facebook achei uma transcrição mais fiel de Moj otok, canção composta por Zvonko Špišić, enquanto a deste blog tem vários erros e imprecisões. Confesso que esta, sim, traduzi pelo Google, mas fiz várias conferências usando o Wikcionário, rs. Não vou novamente apresentar a vida e a obra de Vice Vukov, que podem ser lidas na última edição das traduções de suas músicas, nem de L’Arcusgi, disponível em meu link acima.


Tenho minha própria ilha
E uma casa perto de um grande pinheiro
Longe do mundo
No meio do mar

Tenho minha nascente e ribeiro
E alecrim, cipreste e floresta
E uma velha agave em flor
Numa estrada empoeirada

Tenho minha própria ilha
E uma brilhante lagoa tranquila
Como uma concha mágica
De prata e areia

Sobre minha ilha se aglomeram
E se reúnem enxames de estrelas
Sobre elas os pássaros perdidos
Fazem seus ninhos

Minha ilha é uma baía
E um porto pra barcos cansados
Onde o viajante que desejar
Encontra um abrigo e uma lareira

Minha ilha é um lagarto
Que cochila solitário sob o Sol
Minha ilha azul está te esperando
Mas você não está, não está aqui

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Ja imam svoj otok
I kuću kraj velikog bora
Daleko od svijeta,
Na sredini mora

Ja imam svoj izvor i potok,
I ružmarin, čempres i šumu
I staru agavu u cvatu
Na prašnjavu putu

Ja imam svoj otok
I tihu lagunu što ljeska
Ko čarobna školjka
Od srebra i pijeska

Nad mojim se otokom jate
I skupljaju rojevi zvijezda
Na njemu zalutale ptice
Savijaju gnijezda

Moj otok je zaton
I luka za umorne lađe
Gdje namjerni putnik
I zaklon i ognjište nađe

Moj otok je gušter
Što na suncu usamljen drijema
Moj plavi otok te čeka
Al’ tebe nema i nema.


1. Venham, meus queridos e queridas
Convidamos vocês a cantar
Porque parece que hoje
Não sabemos mais fazer isso
Parece que nossas canções
Só falam sobre matar
Querem nos dar lições:
“Quem sabe das coisas não vive aqui...”

Refrão:
Vamos permanecer corsos
Com nossas tradições
E vamos sempre atacar
A colonização

2. Venham, meus queridos e queridas
Chamamos vocês pra festejar
Porque parece que hoje
Não sabemos mais fazer isso
Gente bem-intencionada
Quer nos fazer passar
Por um bando de alienados:
“Não vamos deixar que eles ajam...”

(Refrão)

3. Venham, meus queridos e queridas
Precisamos confraternizar
Porque parece que hoje
Não sabemos mais fazer isso
Os saqueadores e enganadores
[Lit. “Os corvos e as raposas”]
Gritam aqui e acolá
Mas nós, corsos, somos pela paz:
“A que preço, meu camarada...”

(Refrão)

Vamos permanecer corsos
Com nossas tradições
E juntos vamos construir
A Nação Corsa

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1. Aiò cari, aiò care,
V’invitemu a cantà
Per via chì oghje pare
Ùn sapemu più la fà
Pare ch’è nostre canzone
Parlanu chè di tumbà
Ci volenu dà lezzione:
“Sò furdane què si sà...”

Ripigliu:
Corsi ci steremu
Cù e nostre tradizione
E sempre impetteremu
A culunisazione

2. Aiò cari, aiò care
Vi chjamemu a festighjà
Per via chì oghje pare
Ùn sapemu più la fà
I sapiente intenziunati
Ci volenu fà passà
Per un pugnu d’alienati:
“Ùn li lascieremu fà...”

(Ripigliu)

3. Aiò cari, aiò care,
Ci tocc’a fraternizà
Per via chì oghje pare
Ùn sapemu più la fà
E curnachje e vulpacce
Stridanu quind’è quallà
Simu Corsi per’a pace:
“A chì prezz’o sgiò cumpà...”

(Ripigliu)

Corsi ci steremu
Cù e nostre tradizione
E insème feremu
A Corsica Nazione



sábado, 28 de dezembro de 2024

Lukashenka e democracia à belarussa


Endereço curto: fishuk.cc/luka-democracia


Mais uma pérola que já estava esperando algum tempo pra ser publicada! No dia 28 de janeiro de 2022, o “líder autoritário” de Belarus (como o chama a Radio Svoboda), Aliaksándr Lukashénka, se dirigiu com uma mensagem à Assembleia Nacional e ao povo belarusso, que nada mais foi do que um mortífero monólogo de mais de duas horas e meia seguido de perguntas bem domesticadas. Já se aventava um possível ataque da Rússia contra a Ucrânia e, pra variar, ele fingiu que não tinha nada com isso. Na época, ficou muito famosa uma pergunta sobre o que ele entendia como “democracia à belarussa” (já explico melhor) e sua resposta segundo a qual, como ele era um “ditador” (querendo dizer, os países do Ocidente o chamavam assim), achava difícil entender a democracia. Até se refere cinicamente à repressão brutal dos protestos massivos de 2020, como se sua execração fosse mera questão de “ponto de vista”.

Dando o contexto, algumas revisões à Constituição seriam submetidas a referendo (teriam chance de perder?), e uma delas se referia ao acréscimo textual que dizia “A democracia de Belarus se baseia na ideologia do Estado belarusso”, seja lá o que esse dilmismo redacional queira dizer. Antes de uma pequena lambeção de saco, o personagem do Bob Esponja se apresenta como Aleksándr Dedínkin, professor da filial de Vitebsk da Universidade Internacional “MITSO”, instituição de ensino pertencente à Federação dos Sindicatos de Belarus. Historiador, ele tem até um canal no YouTube em que fala, sobretudo, sobre seu tema de pesquisa, a história da “Bielorrússia” soviética. Após relembrar aquela revisão, o docente arremata: “Уважаемый Александр Григорьевич, вопрос вот чем связан: а как вы понимаете демократию по-беларуски?” (Estimado Aliaksándr Ryhóravich, a questão se refere a isto: como é que o senhor entende a democracia à belarussa?)

Infelizmente, a fonte da qual tirei meu trecho do vídeo não está mais disponível, mas também existe a íntegra do evento martirizante (na qual a pergunta completa começa às 3h 1min 30seg) e um recorte feito pelo canal ONT. A vantagem deste é que ele não “pifa” no momento em que fala de Putin e Lukashenka na OSCE, como ocorre com os outros. Além da notícia já citada, utilizei uma reportagem do portal do “Parlamento da União Estatal” da Rússia e de Belarus e uma matéria da BBC em russo pra chegar a uma transcrição final, mais exata e que também tirei de ouvido. Ela pode conter imprecisões, e também não hesitei em manter alguns cacoetes orais. A divisão em parágrafos foi minha, um tanto arbitrária. Por opção política, mudei onde estava transcrito “belorússki” pra “belarúski”, o mais apropriado pra “Belarus”, verdadeiro nome atual do país:


Sabe, eu sou um “ditador”, é difícil pra mim entender a democracia. Mas este é um dos elementos da democracia: a disciplina. Olhamos numa direção, avançamos numa direção, com opiniões diferentes, mas decidimos e seguimos em frente. Sabe, não vejo a democracia à belarussa da mesma forma que é vista no mundo livre e nos EUA, bastião da democracia. O que aconteceu em nossas ruas teria sido ruim, mas o fato de uma menina ter sido baleada e de terem provocado duas guerras teria sido bom. Etcétera, etcétera. Ou seja, ninguém formulou esses padrões democráticos, residam eles em eleições ou em alguma outra coisa.

Certa vez, afirmei com a Rússia na OSCE que eles vêm e criticam que não temos democracia, não seguimos os padrões, etc. Putin e eu acrescentamos [ironicamente]: “Vejam, deixem nossos Ministérios do Exterior oferecerem opções.” Então se recusaram mesmo a ouvir isso. Ou seja, esses padrões uniformes não existem. Mas a democracia: demos significa “povo”, e kratos significa “poder”. Falei certo? Sim. É o poder do povo, e o referendo é justamente um elemento dessa democracia. Mas não, não querem nos ouvir.

A democracia tem a ver, antes de tudo, com os direitos das pessoas. Enquanto Homo sovieticus, da antiga URSS, entendo que nos ensinaram isto: direitos e deveres ao mesmo tempo. Eis seus direitos ao trabalho, à saúde, à educação – você deve a possuir –, a um salário, caso trabalhe. “Quem não trabalha, não come.” Etcétera, etcétera. Nisso consiste a democracia. Ficam com esse falatório sobre liberdade de expressão, depois controlam toda a mídia e, vejam, calam a boca justo do presidente de um país democrático. Calaram sua boca, ele nem se mexeu e por pouco não prenderam o coitado do Trump. Pelo quê? Pelo que ele disse.

Portanto, essa não é nossa compreensão sobre a democracia. Afinal, a democracia são direitos, liberdades, a verdadeira liberdade, nos limites da lei. Você pode e tem o direito de comprovar seu valor: vá e crie uma empresa, trabalhe. Isto aqui é seu, e isto aqui é do Estado em forma de impostos, e não sonegue, pois se sonegar, você vai parar “lá” [na cadeia]. Nisso consiste a democracia, ela deve partir da vida, do povo, já que é o poder do povo. Posso ter parecido confuso, caótico, mas é esse meu entendimento. Um dia vou pensar melhor, mas falar mais concretamente.



Вы знаете, я же “диктатор”, мне трудно понимать демократию. Но это один из элементов демократии: дисциплина. Смотрим в одну сторону, двигаемся в одну сторону, с разными мнениями, но определяемся, и двигаемся, чтобы двигаться вперёд. Знаете, я не вижу демократию по-беларуски так, как её видят в свободном мире и оплоте демократии – США. То, что у нас на улицах было, это было плохо, а то, что девчонку застрелили, которые две войны прошли, это хорошо. И так далее, и тому подобное. То есть, никто не выработал эти демократические стандарты. Будь то на выборах, ещё где-то.

Мы в ОБСЕ с Россией когда-то предложили, вот они приезжают, нас критикуют: нет демократии, стандарты, прочее. Мы добавили с Путиным: “Слушайте, давайте пусть наши МИДы предложат варианты.” Так, они отказались даже это слушать. То есть, нет этих единых стандартов. Но демократия: “демос” – народ, “кратос” – власть. Правильно сказал? Да. Это власть народа, и референдум – это и есть элемент этой демократии. А нет, слышать не хотят.

Демократия – это права людей прежде всего. Я понимаю, как человек советский, бывший советский, нас это учили: права и обязанности сразу. Вот твои права на труд, на здравоохранение, на образование – ты должен это иметь –, на зарплату, если ты трудишься. “Кто не работает, тот не ест.” И так далее, и тому подобное. Вот и вся демократия. А эта болтовня – свобода слова, а потом управлять всеми средствами массовой информации и закрывать рот аж целому президенту демократической страны. Заткнули рот его, даже не дёрнулся, чуть-чуть в тюрьму не посадили бедолагу, Трампа. За что? За то, что он говорил.

Поэтому это не наше понимание демократии. Поэтому демократия – это права, свободы, настоящая свобода, в рамках закона. Имеешь право, можешь проявить себя – иди, создавай предприятие, трудись. Это – твоё, это – государства в виде налогов, не обманывай, обманешь – пойдешь “туда” [в тюрьму]. Вот и вся демократия, она должна быть от жизни, от народа, поскольку это власть народа. Но может вот так путанно, сумбурно, но я вот так это понимаю. Когда-нибудь подумаю, но скажу конкретно.



sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Villepin: governar é pau de cocô


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Dada a perda da atualidade (e como os eventos se atropelam!), meu desejo era ter traduzido este vídeo antes, mas só agora tive tempo. Em 9 de junho de 2024, após a vitória da União Nacional (RN) nas eleições francesas pro Parlamento Europeu, o presidente Emmanuel Macron dissolveu a Assembleia Nacional (câmara baixa do Parlamento nacional, eleita por sufrágio universal), mesmo que seu partido tenha ficado em segundo. O chefe de Estado disse que queria um “esclarecimento” político da parte da população, mas essa dissolução, sem razão aparente e mal recebida pelos eleitores, nunca pareceu bem explicada pros especialistas.

O “esclarecimento” veio na vitória da Nova Frente Popular, o bloco de esquerda que reúne da extrema-esquerda à centro-esquerda, em nova redução do bloco presidencial (que já não tinha mais a maioria absoluta desde as eleições regulares de 2022) e em votação recorde do RN, que mesmo assim ficou como o terceiro bloco. É um tipo de votação incomum que se dá em dois turnos, nesse caso, nos dias 30 de junho e 7 de julho. No dia 13 seguinte, convidado pro programa de David Pujadas, o ex-premiê socialista francês, Dominique de Villepin, afirmou que Macron devia primeiro conversar com o NFP pra escolher um novo chefe de governo, e caso se recusasse, devia renunciar pra acabar com a crise política.

Curiosamente, Villepin usou uma expressão conhecida a quem já assistiu à primeira edição do filme O Menino Maluquinho, baseado no famoso personagem infantil de Ziraldo. Ele disse que ninguém podia desejar formar um governo nas novas condições, pois tal incumbência seria um “bâton merdeux”, que podemos traduzir como “pau de cocô” – lembrando que a palavra “merde” é muito mais usada em francês do que em português sem necessariamente uma carga chula demais. Macron exumaria Michel Barnier, o maior picolé de chuchu que ele conseguiu achar, mesmo após mais de um mês de consultas, e mesmo esse seria deposto pela Assembleia Nacional em pouco mais de dois meses. Além disso, insistindo em só escutar a si mesmo, sabemos hoje que ele empossou outro picolé, mas com gosto mais de jiló, François Bayrou, como uma “última alternativa”, mas mesmo esse pode estar com os dias contados.

Ou seja, não somente a formação de um novo governo se revelaria um “pau de cocô”, mas também o almofadinha dos ricos terminou jogando a França e os franceses na m... Assim como no Ziraldoverso, o bâton merdeux também era uma brincadeira na França pré-moderna, e abaixo segue apenas o trecho recortado da fala que achei mais interessante pra contextualizar o uso da expressão. Eu mesmo transcrevi e traduzi (sem o Google!) direto do francês, e aceito sugestões de traduções melhores. E no final, uma surpresinha pra meu público, rs:


E essa Nova Frente Popular (NFP), a partir daquele que a dirige, é encarregada de formar um governo, e é aí que começa a dificuldade, porque sabemos que a NFP evidentemente só dispõe de uma frágil maioria relativa. E que ela vai precisar, portanto, construir uma maioria que lhe permita durar um pouco mais que… um, dois, três dias. E esse é o começo, pra todos os franceses e pra toda a classe política, do aprendizado da época nova.

Significa que de repente a NFP, que pode pensar que ganhou e que vai governar durante meses, vai se encontrar face a uma dura realidade: é que formar um governo hoje não é um presente. Na verdade mesmo, é um pau de cocô. É preciso encarar a realidade de frente.

Aliás, se continuarmos na confusão atual, um dos riscos é que todo mundo se dê conta que ninguém politicamente se interessa em dirigir esse governo, que finalmente o Presidente se enxergue no caos e que, portanto, uma questão vai ser apresentada a ele: renunciar é a única forma de desenrolar. Portanto, a primeira opção deve ser o NFP.


Et ce Nouveau Front populaire (NFP), à partir de celui qui le dirige, est chargé de former un gouvernement, et c’est là où la difficulté commence, puisqu’on sait que ce NFP ne dispose évidemment que d’une maigre majorité relative. Et qu’il faut donc qu’il construise une majorité qui lui permette de durer un peu plus que… un, deux, trois jours. Et ça, c’est le début, pour tous le Français et toute la classe politique, de l’apprentissage de l’ère nouvelle.

C’est à dire que tout à coup le NFP, qui peut penser qu’ils ont gagné et qu’ils vont pendant des mois gouverner, vont se trouver devant une dure réalité : c’est que c’est pas un cadeau que de former un gouvernement aujourd’hui. La vérité même, c’est un bâton merdeux. Il faut voir la réalité en face.

Et l’un des risques, d’ailleurs, si on continue dans la confusion actuelle, c’est que tout le monde se rende compte que personne politiquement n’a intérêt à diriger ce gouvernement, et que le Président finalement se retrouve dans le chaos et donc d’une question qui lui sera posée : démissionner, c’est la seule façon de dénouer. Donc, première option, le NFP.



quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Fazer o bem faz bem... literalmente


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Aproveitando o espírito de Natal, foi publicada em 25 de dezembro de 2024, no site da National Public Radio (NPR) dos EUA, uma reportagem assinada por Maria Godoy, editada em texto por Jane Greenhalgh e que pode ser ouvida em formato podcast na própria página. Em tradução livre pro português, seu título poderia ser “Quando a gentileza se torna um hábito, ela melhora nossa saúde” e se trata de mais um apanhado de pesquisas sobre como simples mudanças no cotidiano podem fazer um bem danado pro corpo e pra mente. Cientistas americanas têm observado que a persistência em atitudes altruístas, sobretudo o engajamento em voluntariado, pode reduzir o risco de doenças cardiovasculares, fortalecer nosso cérebro e prevenir dores físicas. As descobertas ainda estão em estágio inicial, mas parecem promissoras.

Em todo caso, quem nunca constatou na prática uma sensação espontânea de bem-estar após ajudar alguém, sem ser com segundas intenções (o que geraria o estresse de esperar pela retribuição)? Vale lembrar que os estudos não levam em conta a variável “beber cerveja toda vez que se apresenta num show musical”, mas dado o histórico em Xerém, quem sabe também não haja aí uma relação de causa e efeito? Rs. Após usar o Google Tradutor pra obter a base do artigo, revisei manualmente, imprimi meu próprio estilo e simplifiquei quando possível. Mantive todos os links originais, sem traduzir, portanto, os textos aos quais eles levam.





Imagens aleatórias do Zeca Pagodinho meramente ilustrativas, rs!


Pesquisas mostram que pessoas que se dedicam regularmente ao voluntariado têm risco menor de mortalidade e melhor saúde física à medida que envelhecem.

É aquela época do ano em que se costuma ser um pouco mais gentil e fazer coisas boas pros outros. Bem, aqui vai algo interessante: pesquisas sugerem que quando tornamos os atos de gentileza um hábito, isso também é bom pra nossa saúde.

Seja como voluntário num banco de alimentos local ou levando sopa pra um vizinho doente, há muitas evidências de que quando ajudamos os outros, isso pode aumentar nossa própria felicidade e bem-estar psicológico. Mas cada vez mais pesquisas também afirmam que isso melhora igualmente nossa saúde física, diz Tara Gruenewald, psicóloga social e de saúde da Chapman University.

A maioria das evidências vem de estudos observacionais de pessoas que praticam o voluntariado regular. Mas também há evidências experimentais. Talvez a mais impressionante venha do teste Baltimore Experience Corps, um amplo experimento em que adultos com 60 anos ou mais foram designados aleatoriamente ou como voluntários em escolas de ensino fundamental ou como parte de uma lista de espera. Os voluntários passaram pelo menos 15 horas por semana fornecendo tutoria a crianças carentes. Dois anos depois, os pesquisadores descobriram que os voluntários tiveram mudanças mensuráveis em sua saúde cerebral.

“Eles não sofreram declínios na memória e no controle cognitivo, como vimos em nossos participantes de controle”, diz Gruenewald, uma das pesquisadoras envolvidas no teste. “E houve até mesmo mudanças de volume em áreas do cérebro que dão suporte a esses diferentes processos cognitivos”.

Os voluntários também eram fisicamente mais ativos, “o que é importante pra manter tanto a saúde cognitiva quanto a física à medida que as pessoas envelhecem”, explica.

Outras pesquisas descobriram que pessoas que praticam o voluntariado regular têm menor risco de mortalidade e melhor capacidade física à medida que envelhecem. “As pessoas conseguem caminhar mais em idades mais avançadas, têm melhor equilíbrio e assim por diante”, diz Laura Kubzansky, professora de ciências sociais e comportamentais na Harvard T. H. Chan School of Public Health.

Kubzansky estuda a interação entre saúde física e mental. Ela tem descoberto em suas pesquisas que pessoas mais engajadas no voluntariado e em doações de caridade têm níveis menores de dor física.

Ela diz que os pesquisadores ainda não sabem os mecanismos exatos pelos quais o voluntariado e os atos de gentileza melhoram a saúde das pessoas, mas é provável que vários processos desempenhem um papel.

Por exemplo, o estresse causa no corpo reações em cascata que podem elevar a pressão arterial e, por fim, levar a níveis mais altos de colesterol e a outras mudanças que aumentam o risco de doenças cardiovasculares e outros danos à saúde. Kubzansky diz que o voluntariado pode ajudar a amortecer esse desencadeamento do estresse.

“Ser voluntário ou fazer um ato de gentileza pode te distrair de alguns dos problemas que você pode estar vivendo, então você mesmo pode ficar um pouco menos reativo”, continua. E “pode te ajudar a ampliar a perspectiva sobre quais são seus próprios problemas”.

E quando você sai pra ajudar os outros, também se torna mais ativo fisicamente e menos solitário. O isolamento social é um conhecido fator de risco pra problemas de saúde física e mental, sobretudo à medida que envelhecemos.

“Sabemos que uma saúde mental melhor está associada a uma saúde física melhor”, diz.

A maioria das pesquisas nesse campo tem observado adultos mais velhos e de meia-idade. Há menos evidências sobre os benefícios de atitudes altruístas à saúde quando se trata de pessoas mais jovens, diz Julia Boehm, professora associada de psicologia na Chapman University e estudiosa dos fatores sociais e psicológicos que influenciam a saúde em crianças e adolescentes.

Mas um estudo que realmente se destaca envolveu estudantes do ensino médio que foram designados aleatoriamente pra serem voluntários por 10 semanas com crianças do ensino fundamental. Comparados aos estudantes no teste que foram colocados numa lista de espera, os voluntários adolescentes tiveram melhorias em vários indicadores da saúde cardiovascular.

“Os alunos engajados em atividades de voluntariado com alunos mais jovens apresentaram índices de massa corporal (IMC), indicadores inflamatórios e colesterol total mais saudáveis”, diz Boehm. E os alunos que mais aumentaram em empatia e atitudes altruístas, e que mais diminuíram seu mau humor, também tiveram as maiores reduções no risco cardiovascular ao longo do tempo.

Outras pesquisas em adultos também relacionam a participação regular tanto em atividades voluntárias quanto em atos mais informais de gentileza – como ajudar um vizinho – a um risco menor de doenças cardiovasculares.

Considerando o que se descobriu até agora, Kubzansky diz que gostaria de ver as autoridades de saúde tornando a pesquisa sobre os benefícios do voluntariado e de outros atos de gentileza uma prioridade de saúde pública.

Nesse meio-tempo, Gruenewald diz que realmente não há erro quando adotamos comportamentos que visam a ajudar os outros.

“No mínimo, isso vai tornar o mundo um lugar um pouco melhor pra muitos outros. E podemos o tornar um pouco melhor pra nós mesmos”, diz.



quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Trotsky funda 4.ª Internacional, 1938


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Vocês já devem estar pensando que tenho uma queda por Leyba Bronstein ou que, por estar saturando com ele o Natal de vocês, estou lhes “passando um Trotsky”... rs (tá, essa doeu). Ocorre que, ficando tudo mais corrido em dias de festa (saídas, refeições, sono mais prolongado), embora eu mesmo não seja um fanático pelo Dia do Sol Invicto, essas tarefas relacionadas ao fundador do Exército Vermelho se revelaram mais rápidas e fáceis de “desencalhar”. Aliás, devido a várias correções que fiz na transcrição ao comparar com o áudio, o trabalho com Pierre Broué se revelou mais árduo e demorado, ao contrário deste, cuja curta transcrição tinha poucas divergências em relação ao som.

Em seu último exílio, Trotsky se fixou perto da capital do México, na cidade de Coyoacán, onde seria assassinado em 1940 e onde hoje existe uma casa-museu sobre sua vida e luta. Segundo a edição feita pelo Marxists.org, a gravação do discurso abaixo foi feita 18 de outubro de 1938 em seu novo lar, transmitida num comício de trabalhadores em Nova York (ao qual o governo americano teria impedido o líder de se dirigir) no dia 28 seguinte e publicada em escrito pela primeira vez em novembro de 1938. Aborda-se a fundação da chamada “Quarta Internacional”, ou “Internacional trotskista”, pra alguns, resultante do insucesso da luta de Trotsky contra uma alegada “degeneração” do regime soviético e da Comintern (a “Terceira” Internacional) sob Iosif Stalin, seu inimigo pessoal de longa data. Primeiramente ele formou em Moscou uma “oposição de esquerda” dentro do Partido Bolchevique, passo seguido por outros comunistas ao redor do mundo, mas sem obter êxito, acabou criando seu próprio movimento, muito menor, mas ferozmente perseguido pelo Kremlin.

A 4.ª Internacional tinha sido fundada em setembro de 1938, em congresso reunido perto de Paris, na casa de Alfred Rosmer, figura de destaque na Comintern que tinha passado pro lado de Trotsky. Mas ao longo dos anos, ela se dividiu em diversas facções, brigando por causa de “cousas miúdas”, e hoje vários grupos se reivindicam, sem muita justificativa, como continuadores da “Quarta”. O exclusivismo abstrato e o complexo de vanguarda de Trotsky, evidentes neste texto, mostram como há pouca ruptura com os vícios da Rússia soviética e do marxismo apocalíptico (e nada construtivo) iniciado por Vladimir Lenin. Não por menos, o “trotskismo”, sem uma visão de mundo clara nem propostas concretas pra melhorar a vida do povo pobre, tem hoje como principal público jovens radicalizados nas universidades e está cada vez mais espremido entre a nova ascensão de movimentos fascistas, a reabilitação do stalinismo criminoso em roupagem “eurasianista” e uma centro-esquerda dita “de governo”, por vezes com tintura populista, preocupada somente com mesquinharias eleitorais.

Abaixo seguem um vídeo com o áudio completo do discurso de Trotsky gravado em Coyoacán e exibido em Nova York, que achei exatamente hoje, e outros dois com partes distintas, que eu já tinha guardado há uns anos, um deles indicando erroneamente Copenhague como local da gravação. Eu traduzi a partir do original inglês indicado acima, usando o Google Tradutor e depois refazendo todo o texto conforme meu estilo pessoal e o cotejamento com o áudio. E pra não quebrar o ritmo da leitura, coloquei também umas poucas notas explicativas entre colchetes, e não em rodapé, como se poderia esperar:






Queridos camaradas e amigos!

Espero que desta vez minha voz chegue até vocês e que me seja permitido, desta forma, participar de sua dupla comemoração. Ambos os eventos – o décimo aniversário de nossa organização americana e o congresso de fundação da 4.ª Internacional – merecem dos trabalhadores uma atenção incomparavelmente maior do que os gestos bélicos dos chefes totalitários, as intrigas diplomáticas ou os congressos pacifistas.

Ambos os eventos vão entrar pra história como marcos importantes. Agora, ninguém tem o direito de duvidar disso.

É necessário lembrar que o nascimento do grupo americano de bolcheviques leninistas, graças à corajosa iniciativa dos camaradas [James Patrick] Cannon [1890-1974], [Max] Shachtman [1904-1972] e [Martin] Abern [nascido Abramowitz, 1898-1949], não ocorreu sozinho. Coincidiu aproximadamente com o início do trabalho internacional sistemático da Oposição de Esquerda. É verdade que a Oposição de Esquerda surgiu na Rússia em 1923, 15 anos atrás, mas o trabalho regular em escala internacional começou com o 6.º Congresso da Comintern.

Sem um encontro pessoal, chegamos a um acordo com os pioneiros americanos da 4.ª Internacional, antes de tudo, quanto à crítica do programa da Internacional Comunista [Comintern]. Então, em 1928, começou o trabalho coletivo que, dez anos depois, levou à elaboração de nosso próprio programa recentemente adotado por nossa Conferência Internacional. Temos o direito de dizer que nessa década, o trabalho não foi apenas persistente e paciente, mas também honesto. Os bolcheviques leninistas, os pioneiros internacionais, nossos camaradas em todo o mundo, como autênticos marxistas, buscaram o caminho da revolução não em seus sentimentos e desejos, mas na análise da sucessão objetiva dos acontecimentos. Acima de tudo, fomos guiados pela preocupação de não enganar os outros nem a nós mesmos. Nossa busca foi séria e honesta. E nós descobrimos algumas coisas importantes. Os acontecimentos confirmaram tanto nossa análise quanto nossas previsões. Ninguém pode negar. Agora é necessário que permaneçamos fiéis a nós mesmos e a nosso programa. Não é algo fácil de se fazer. São gigantescas as tarefas, e incontáveis os inimigos. Só temos o direito de dedicar nosso tempo e atenção à comemoração do jubileu na medida em que, a partir das lições do passado, possamos nos preparar pro futuro.

Queridos amigos, não somos um partido como os outros. Não ambicionamos meramente ter mais membros, mais jornais, mais dinheiro em caixa, mais deputados. Tudo isso é necessário, mas apenas como um meio. Nosso objetivo é a plena libertação material e espiritual dos trabalhadores e explorados por meio da revolução socialista. Ninguém vai a preparar e guiar, exceto os bolcheviques leninistas. Repito: ninguém exceto nós mesmos. As velhas Internacionais – a Segunda, a Terceira, a de Amsterdã, às quais também juntamos o Birô de Londres [o efêmero Centro Marxista Revolucionário Internacional, que em 1932-40 rejeitou tanto Stalin quanto Trotsky] – estão inteiramente podres.

Os grandes acontecimentos que se precipitam sobre a humanidade não vão deixar pedra sobre pedra dessas organizações remanescentes. Somente a 4.ª Internacional encara o futuro com confiança. É o partido mundial da Revolução Socialista! Nunca houve na Terra uma tarefa maior. Repousa sobre cada um de nós uma gigantesca responsabilidade histórica.

Nosso partido exige por completo cada um de nós. Que os filisteus persigam no vácuo sua própria individualidade. Pra um revolucionário, entregar-se inteiramente ao partido significa encontrar a si mesmo.

Sim, nosso partido toma por completo cada um de nós. Mas em troca dá a cada um de nós a satisfação suprema: a consciência de estar participando da construção de um futuro melhor, de carregar em seus ombros uma partícula do destino da humanidade e de não ter vivido sua vida em vão.

A fidelidade à causa dos trabalhadores exige de nós a mais alta devoção a nosso partido internacional. É claro que o partido também pode errar. Pelo esforço comum, vamos corrigir seus erros. Em suas fileiras podem adentrar elementos sem mérito. Pelo esforço comum, vamos os eliminar. Milhares de novos membros provavelmente vão entrar amanhã em suas fileiras sem a instrução necessária. Pelo esforço comum, vamos elevar seu nível revolucionário. Mas nunca vamos esquecer que nosso partido é agora a maior alavanca da história. Privados dessa alavanca, nenhum de nós tem significado. Com essa alavanca na mão, somos tudo, tudo, tudo!

Não somos um partido como os outros. Não é à toa que a reação imperialista nos persegue loucamente, colada furiosamente em nossos calcanhares. Os assassinos a seu serviço são os agentes do bando bonapartista de Moscou. Nossa jovem Internacional já conhece muitas vítimas. Na URSS, se contam os milhares. Na Espanha, às dezenas. Em outros países, às unidades. Com gratidão e amor, recordamos todos eles nestes momentos. Eles continuam lutando em espírito em nossas fileiras.

Em sua obtusidade e cinismo, os carrascos pensam que é possível nos amedrontar. Estão errados! Enquanto apanhamos, mais fortes ficamos. A política bestial de Stalin é uma simples política de desespero. Pode-se matar soldados individuais de nosso exército, mas não os amedrontar. Amigos, e especialmente vocês, jovens amigos, vamos repetir novamente neste dia de comemoração: é impossível nos amedrontar.

Queridos camaradas, foram necessários dez anos pro bando do Kremlin estrangular o Partido Bolchevique e transformar o primeiro Estado Operário numa sinistra caricatura. Foram necessários dez anos pra 3.ª Internacional [Comintern] amassar na lama seu próprio programa e transformar a si mesma num cadáver fétido. Dez anos! Apenas dez anos! Permitam-me terminar com uma previsão: durante os próximos dez anos, o programa da 4.ª Internacional vai se tornar o guia de milhões, e esses milhões de revolucionários vão aprender a tomar a terra e o céu de assalto.

Viva o Partido Operário Socialista dos Estados Unidos!

Viva a 4.ª Internacional!



terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Pierre Broué sobre Trotsky (vídeo)


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Este é o trecho de um documentário francês sobre Leon Trotsky, produzido por Patrick Le Gall e Alain Dugrand em 1987, e publicado há muitos anos por um perfil trotskista alemão no YouTube. O arquivo também estava guardado pra que eu traduzisse e legendasse pro antigo canal Pan-Eslavo Brasil, mas após sua extinção, decidi apenas trazer os textos em português e francês, e por isso, quem quiser se aventurar na legendagem, fique à vontade! Entre colchetes, também acrescentei notas explicativas que achei necessárias. O trecho traz as contribuições eruditas dos historiadores franceses Pierre Broué (1926-2005), o maior especialista em Trotsky conhecido, e Jean-Jacques Marie (n. 1937), um dos maiores estudiosos da URSS e de Stalin.

No filme todo, as explicações dos dois acadêmicos entrecortam a voz do narrador e os depoimentos de militantes, neste caso, parte do concedido por Vlady Kibaltchitch (1920-2005), pintor falecido no México e filho do revolucionário russo Victor Serge, aliado de Trotsky. Este trecho integra a primeira parte, chamada “Revoluções”, que trata da Revolução de 1905 até a derrota da chamada “oposição de esquerda”, em 1927, e Broué também foi o conselheiro científico da produção. Trotsky também foi lançado no Reino Unido pela BBC, talvez dublado. Ainda não tive tempo de localizar o documentário completo, mas este texto já é um ótimo material didático pra estudantes e graduandos, meu primeiro presente de Natal ao público!




Em Moscou, em 1920, delegações dos partidos operários de todos os países participam do 2.º Congresso da Internacional [Comunista, a Comintern], que sedia um escritório permanente encarregado de elaborar, organizar e coordenar a estratégia da revolução mundial. Trotsky está particularmente atento à situação alemã. Já em 1919, a social-democracia, aliada ao Estado-Maior, afogou no sangue a insurreição espartaquista e assassinou seus líderes Karl Liebknecht e Rosa Luxemburg. Em 1923, ressurgiu a esperança entre os revolucionários alemães.

Pierre Broué – Trotsky, com todas as suas forças, faz soar o alarme: criou-se na Alemanha uma situação revolucionária, é preciso preparar a insurreição. Ele foi ouvido e a insurreição foi cuidadosamente preparada, técnica e politicamente... E finalmente, como sabemos, essa insurreição não aconteceu, em parte porque a liderança da Internacional e, talvez, a do partido alemão, se empenharam tarde demais e recuaram ante o gesto decisivo, tal, como se diz, Kamenev tinha feito em 17, recuou-se da insurreição. E foi esse recuo, o fato da insurreição ter sido desautorizada, que constituiu então uma derrota moral muito importante, e também aí Trotsky foi o primeiro a ter noção do alcance desse recuo, que ele criticava e não aprovava, mas no qual ele não teve a possibilidade de desempenhar um papel direto, já que o partido russo tinha recusado, rejeitado a proposta que os alemães lhes tinham feito, que era enviar Trotsky até lá, na Alemanha, pra dirigir a insurreição.

A classe trabalhadora alemã não vai se recuperar desse novo fracasso. Já em Munique, a sombra obscura está tomando forma.

Pierre Broué – Após o fiasco de 1923, ficou claro que a revolução ficaria longamente isolada lá também, na Rússia. Portanto, era preciso viver, era preciso resistir, e foi nesse momento que Stalin inventou seu “socialismo num só país”, e foi nesse momento que estava posto o problema da degeneração da revolução isolada num país pobre e atrasado.

Encarregado de reorganizar os transportes e a economia, Trotsky vive o auge de sua popularidade em 1922. Alguns o criticam por sua falta de sociabilidade: é verdade que frequentemente é austero, um pouco distante, não chama os desconhecidos de “você” [pronomes tu do francês e ty do russo], como era de costume, e tolera mal que fumem em sua presença. Ele está preocupado com a negligência cada vez mais evidente na cúpula do Partido. Apesar de seu estado de saúde preocupante, Trotsky multiplica suas atividades, o que lhe deixa pouco tempo pra vida familiar. Natália [sua segunda esposa], por sua vez, participa ativamente da divulgação das obras de arte [ela era encarregada dos museus, monumentos e antiguidades junto ao Ministério da Cultura]. Seus dois filhos fazem parte do Komsomol [a juventude comunista]. Quanto a suas duas filhas [do primeiro casamento], as quais ele revê de tempos em tempos, são militantes ativas, assim como a mãe.

Pierre Broué – Noutra parte do Kremlin, no Palácio do Arsenal [do Kremlin: Oruzhéinaia paláta ou Kremlióvskie kazármy, demolido em 1959; não confundir com o Palácio do Arsenal atual], no andar térreo, há algumas salinhas que dão diretamente pra sala onde se reúne o Birô Político. Assim, os caras dão de cara com a porta, ela se abre e eles vão parar na sala do Birô Político. Bem em frente está [alojado] Stalin, mas havia problemas, porque Stalin voltava tarde da noite, e quando ele aparecia, era levado de carro até a porta, acordando todo mundo. A família Trotsky reclamava dizendo: “Depois das 10 horas da noite, os carros não devem entrar no Kremlin...” Enfim, problemas de vizinhança, como em todo lugar.

Apesar de divergirem em alguns pontos, Trotsky se mantém muito próximo de Lenin, que lhe propôs a formação de um bloco contra a burocracia ascendente.

Vlady Kibaltchitch – Eu estava a 50 centímetros de Lenin, e a 50 centímetros de Trotsky, e todos os outros estavam lá. Toda a nata do Partido estava lá. Trotsky não falava nem escutava nada. Quando era questionado, ele escrevia. Ele escrevia sem parar. Quando era questionado, levantava a cabeça deixando a caneta no ar, e voltava a escrever. Todas a sua atitude é uma atitude de persuasão. Mesmo assim, ele era questionado o tempo todo por uns e por outros. Mas é apoiado por Lenin. Apoiado por Lenin, com Stalin por trás dele, que não deixou escapar nada da atividade de Trotsky.

Jean-Jacques Marie – Stalin é nomeado secretário-geral do Partido em abril de 1922, após um congresso durante o qual ele não diz uma palavra. É uma função que surge essencialmente visando à organização do trabalho do aparelho e não pode ter funções eminente ou essencialmente políticas, na medida em que pra todos existe um dirigente do Partido, que é Lenin. Só que a partir desse momento, quando a perspectiva, digamos, de ampliação da revolução se afasta após a derrota militar na Polônia, a derrota da Revolução Alemã etc., o aparelho é levado a ocupar um lugar que não tinha antes: primeiro o aparelho de Estado, depois o aparelho do Partido, que controla o aparelho do Estado. Visto que o aparelho se eleva acima da sociedade de um modo muito rápido, até vertiginoso, quem está no topo do aparelho ocupa um lugar que não tinha antes. Stalin alcança esse posto num momento em que as condições históricas estão mudando, e depois vai saber se aproveitar delas, o que é outra questão, mas não é ele quem as produz. Ele se aproveita de uma situação, mas não a cria.

Pela primeira vez, em novembro de 1922, Lenin está ausente das cerimônias de aniversário da Revolução. Trotsky compreende bem o perigo que ameaça o Partido. O Partido precisa retornar à iniciativa coletiva e ao direito às críticas livres e fraternas. É preciso renovar o aparelho e relembrar que ele é apenas o executor da vontade coletiva. Mas Trotsky hesita em se envolver sozinho na luta, enquanto Lenin, doente, vítima de um derrame, descansa longe de Moscou com sua esposa, Krúpskaia.

Pierre Broué – O Testamento é uma carta de Lenin ao Congresso, na qual ele considera as capacidades, qualidades e fraquezas de cada um. Os mais importantes entre os citados são Stalin e Trotsky: critica Stalin, talvez, por não saber usufruir de seus imensos poderes com suficiente comedimento, e Trotsky pelas tendências de ver [somente] o lado administrativo das coisas. Basicamente Lenin mantém o equilíbrio igual entre eles. Algumas semanas depois, ele se declarou contrário à destituição de Stalin do cargo de secretário-geral. Nesse meio-tempo, aconteceu que Lenin, doente, colocado sob o controle do Birô Político, entrou em conflito com Stalin, que queria impedir sua intervenção no âmbito político, e acredita que esse controle sobre ele, exercido por Stalin, é exercido contra ele e, em particular, contra sua esposa Krupskaia, sua colaboradora nessa questão. Então, nos encontramos numa situação totalmente nova. Até então, Lenin e Trotsky sabiam que havia um perigo geral de burocratização da Revolução, mas como uma espécie de fenômeno normal e objetivo. Ora, a partir daí se dão conta de que existe um organismo, o Birô de Organização, e um homem que o encarna, Stalin, que estão organizando o fortalecimento do poder dessa casta. Portanto, é o bloco Lenin-Trotsky contra Stalin que podia representar uma virada nessa sequência da Revolução e que, no fim das contas, não vai se materializar, já que Lenin adoece e, enfim, morre, sem que esse combate seja realmente empreendido.


À Moscou, en 1920 [mille-neuf-cent-vingt], des délégations des partis ouvriers de tous pays assistent au 2e [deuxième] Congrès de l’Internationale [Communiste, ou Comintern], où siège un bureau permanent chargé d’élaborer, d’organiser et de coordonner la stratégie de la révolution mondiale. Trotsky est particulièrement attentif à la situation allemande. Déjà en 1919 [mille-neuf-cent-dix-neuf], la social-démocratie, alliée à l’État-major, a noyé dans le sang l’insurrection spartakiste et assassiné leurs leadeurs Karl Liebknecht et Rosa Luxembourg. En 1923 [mille-neuf-cent-vingt-trois], c’est à nouveau l’espoir chez les révolutionnaires allemands.

Pierre Broué – Trotsky de toutes ses forces sonne l’alarme: il s’est crée en Allemagne une situation révolutionnaire, il faut préparer l’insurrection. Il a été suivi et l’insurrection a été minutieusement préparée techniquement, politiquement... Et finalement, comme nous le savons, cette insurrection n’a pas eu lieu, en partie parce que la direction de l’Internationale, celle du parti allemand peut-être, parce qu’elles ne s’y étaient pris trop tard, on reculait devant le geste décisif, comme, comme on dit, Kamenev l’avait fait en 17 [dix-sept], on reculait dans l’insurrection. Et c’était ce recul, le fait que l’insurrection a été décommandée, constitue alors une défaite morale très importante, et là aussi Trotsky a été le premier à mesurer la portée de ce recul, qu’il critiquait, qu’il n’approuvait pas, mais pour lequel il n’a pas eu la possibilité de jouer un rôle direct, puisque le parti russe avait refusé, repoussé la proposition que les Allemands leur avaient faite, d’envoyer Trotsky sur place, en Allemagne, pour diriger l’insurrection.

De ce nouvel échec la classe ouvrière allemande ne se relèvera pas. Déjà à Munich, l’ombre noire se dessine.

Pierre Broué – Après le fiasco de 1923, il devenait évident que la révolution était pour longtemps isolée là aussi en Russie. Donc il fallait vivre, il fallait tenir, et c’est à ce moment-là que Staline a inventé son “socialisme dans un seul pays”, et c’est à ce moment-là que se trouvait posé le problème de la dégénérescence de la révolution isolée dans un pays pauvre et arriéré.

Chargé de la réorganisation des transports et de l’économie, Trotsky est à l’apogée de sa popularité en 1922 [mille-neuf-cent-vingt-deux]. Certains lui reprochent son manque de sociabilité : il est vrai qu’il est souvent guindé, un peu distant, ne pratiquant pas le tutoiement, couramment utilisé, et tolérant mal que l’on fume en sa présence. Il est préoccupé par le relâchement qui se manifeste de plus en plus à la tête du Parti. Malgré son état maladif préoccupant, Trotsky multiplie ses activités, ce qui lui laisse peu de temps pour sa vie familiale. Natalia, de son côté, participe activement à la promotion des œuvres d’art. Ses deux fils sont partie des Komsomols. Quant à ses deux filles, qu’il revoit de temps à autre, elles sont, comme leur mère, des militantes actives.

Pierre Broué – Ailleurs au Kremlin, dans l’aile Cavalier, à rez-de-chaussée, ils ont quelques petites pièces allant directement sur la salle où se réunit le Bureau politique. Il arrive que les gamins tombent contre la porte, la porte s’ouvre, qu’ils roulent dans la pièce du Bureau politique. En face il y a Staline, or il y avait des problèmes, parce que Staline rentre tard le soir, et quand il apparaissait, il se fait mener par sa voiture jusqu’à sa porte, donc il réveille tout le monde et les Trotsky protestent, en disant “Passés 10 [dix] heures du soir, les voitures n’ont pas à entrer au Kremlin...” Bon, des problèmes de voisinage, comme tout le monde.

En dépit de quelques points de divergence, Trotsky reste très proche de Lénine, qui lui propose de former un bloc contre la bureaucratie montante.

Vlady Kibaltchitch – J’ai été à 50 [cinquante] centimètres de Lénine, et à 50 centimètres de Trotsky, et tous les autres étaient là. Tout le gratin du Parti était là. Trotsky ne disait rien, ni écoutait. Quand on le mettait en cause, il écrivait. Il écrivait constamment. Quand on le mettait en cause, il levait la tête laissant le porte-plume en air, et se remettait à écrire. Toute son attitude est une attitude des passionnants. Et pourtant il était mis en cause à chaque instant par les uns et par les autres. Mais il est soutenu par Lénine. Soutenu par Lénine, avec derrière lui Staline, qui ne laissait rien échapper de l’activité de Trotsky.

Jean-Jacques Marie – Staline est nommé secrétaire-général du Parti en avril 1922, à la suite d’un congrès au cours duquel il ne dit pas un mot. C’est une fonction qui apparait essentiellement comme une fonction d’organisation du travail de l’appareil et qui ne peut pas avoir de fonctions éminemment ou essentiellement politiques, dans la mesure où pour tout le monde il existe un dirigeant du Parti, qui est Lénine. Sauf qu’à partir de ce moment-là où la perspective, disons, d’élargissement de la révolution s’éloigne après la défaite militaire en Pologne, la défaite de la Révolution allemande etc., l’appareil est amené à prendre une place qu’il n’avait pas avant : l’appareil d’État d’abord, et puis l’appareil qui contrôle l’appareil d’État, celui du Parti ensuite. Et donc c’est parce que l’appareil s’élève en dessus de la société de façon très rapide, même vertigineuse, que celui qui est au sommet de l’appareil prend une place qu’il n’avait pas avant. Staline, lui, arrive à cette fonction à un moment où les conditions historiques changent, et il saura ensuite les utiliser, c’est une autre question, mais ce n’est pas lui qui les fabriquent. Il utilise une situation, il ne la crée pas.

Pour la première fois, en novembre 1922, Lénine est absent des cérémonies anniversaire de la Révolution. Trotsky mesure bien le péril qui menace le Parti. Il faut que le Parti revienne à l’initiative collective et au droit des critiques libres et fraternelles. Il est nécessaire de renouveler l’appareil et de rappeler qu’il n’est que l’exécuteur de la volonté collective. Mais Trotsky hésite à s’engager seul dans la lutte, alors que Lénine, malade, victime d’une attaque, se repose loin de Moscou avec sa femme, Kroupskaïa.

Pierre Broué – Le Testament, c’est une lettre de Lénine au Congrès, dans laquelle il envisage les capacités, les qualités et les faiblesses de chacun. Les plus importants de ceux qu’il mentionne sont Staline et Trotsky : il reproche à Staline, peut-être, ne pas savoir se servir avec assez de mesure de ses immenses pouvoirs, et à Trotsky, les tendances à voir le côté administratif des choses. Au fond il tient la balance égale entre eux. Quelques semaines après il se prononce contraire pour que Staline soit écarté du poste de secrétaire-général. Il s’est passé dans l’intervale que Lénine, malade, placé sous le contrôle du Bureau politique, s’est trouvé aux prises avec Staline, qui veut empêcher son intervention dans le domaine politique, et que ce contrôle que Staline exerce sur Lénine, il estime qu’il l’exerce contre lui, et en particulier contre sa femme Kroupskaïa, qui est sa collaboratrice en cette affaire. Alors, on se trouve dans une situation tout à fait nouvelle. C’est que jusque là, Lénine et Trotsky savaient qu’il y avait un danger général de bureaucratisation de la Révolution, mais comme un sort de phénomène normal et objectif. Or, à partir de là ils s’aperçoivent qu’il y a un organisme, le Bureau d’organisation, et un homme qui l’encarne, Staline, qui sont en train d’organiser le renforcement du pouvoir de cette caste. Alors c’est le bloc Lénine-Trotsky contre Staline qui pouvait représenter le tournant dans ce lendemain de la Révolution et qui finalement n’aura pas de conséquences, puisque Lénine tombe malade d’abord, ensuite meurt, sans que ce combat éventuellement était engagé.



segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Zelensky chama Putin de arrombado


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Achou que não ia ter publicação sobre política bem perto do Natal?

Rs... Mas aqui, não posso deixar de dar também uma pequena aula de idiomas, e pra piorar, sobre palavrões. Sim, pois Volodymyr Zelensky (sim, aquele mesmo do seriado Servo do povo) parecia estar assistindo ao monólogo coletivo de Vladimir “Khuiló” Putin no dia 19 de dezembro, durante todas as suas longas 4,5 horas de duração. E ele não deixou escapar justamente uma parte em que o ditador, de forma jocosa, sugere que a OTAN e a Rússia poderiam “fazer um duelo tecnológico militar” na Ucrânia, pra ver quem se saía melhor. Esse foi exatamente o trecho congelado abaixo, mas na cara de um dos “repórteres” que apresentou o suplício televisivo:

Tal foi a indignação do humorista de cáqui ante tamanha desfaçatez e crueldade, que não pôde deixar de a externar lá mesmo onde esse tipo de ódio deve ser despejado: People are dying, and he thinks it’s “interesting”... Dumbass. Deixo a tradução pra você, mas não, ele não está se referindo à região do “Donbás”, embora eu suspeite se não tenha sido um (infame) trocadilho voluntário, rs. O xingamento em inglês pode ter várias interpretações ao gosto e criatividade do freguês, mas acho que Zelensky pensou primeiro um original em ucraniano: Люди гинуть, а йому «цікаво»... Довбойоб. [Liúdy hýnut, a iomú «tsikávo»... Dovboiób.]

A palavra ucraniana, que inclusive tem a cognata russa долбоёб [dolboiób], além dessa tradução, tem várias outras em inglês, segundo o Wikcionário. E me desculpem, mas vou ter que “baixar o nível” nessa língua: uma delas é motherfucker, que na minha adolescência, pelo menos, era muito popular entre os colegas que queriam se fazer de americanizados (pronunciando bizarramente “madafâca”!). Tudo resumido, simplesmente se designa um idiota, um canalha, com os diversos temperos digestório-genitais disponíveis em cada idioma.

Alusões à prostituição materna não pareciam muito adequadas, pois existem termos muito específicos e codificados em diversas culturas. No meio desses vários cruzamentos lengoísticos, o querido Wikcionário me veio brasileiramente com um “c*zão”, e eu mesmo pensei anteriormente em “pau no c*”. Mas pra conservar o calão sem economizar na baixaria, eu diria que Zelensky chamou Putin exatamente como se deve rotular qualquer um que começa e continua uma guerra que sabe não poder ganhar, destrói o país vizinho e ainda mói o próprio povo escravizado: um arrombado.


(Minuto aleatório)



Imagine-se na década de 1990, mesmo que você ainda não fosse nascido. Toda a família está reunida pra assistir a um especial de Natal ou outro programa parecido na TV dos Marinho, no meio da tarde ou na primeira parte da noite. De repente, crianças e idosos quase infartam com uma voz que parece vinda do Além e, em despertar de diarreia, só perde pra vinheta do “Plantão”, jogando na cara pênis, vagina, ânus, esperma, secreção e já arrematando no começo com um vírus (crédito do resgate ao canal Nerd Show):


Fontes diplomáticas acabam de vazar um diálogo entre os chefes de Estado da França e da Turquia sobre uma possível colaboração no socorro à população da ilha africana de Mayotte. Veja um trecho da conversação:


domingo, 22 de dezembro de 2024

Macron em Mayotte: “Sem a França, vocês estariam na m...”


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Macron despirocou de vez. O presidente da França e seus aliados mais próximos já eram acusados há um bom tempo de se alienar da realidade popular e simplesmente não enxergar males óbvios por que o povo passava. O ex-banqueiro nunca foi muito amado pela população, que votava mais nele pra evitar a eleição de Marine Le Pen, cujo partido, após inúmeras repaginações, já parece mais palatável ao “Monsieur Tout le Monde” pelicotiano. Jamais tendo ocupado cargos eletivos antes, sempre pareceu que ele interpretava o “mandato popular” como um “cheque em branco” pra fazer o que quisesse, sem considerar opiniões ou críticas de terceiros, e que a massa engolisse no seco e esperasse até o fim do ciclo pra se pronunciar de novo.

Arrogante, antipático, prepotente, grosseiro e empolado: esse é o ser com quem a Jararaca (o qual parece não o conhecer realmente, devido a seus filtros mentais plantados pela cibermilitância) insiste em manter um “bromance” e que deu à Mindona da Alvorada, sem qualquer justificativa, a mais alta condecoração da França. Esse é o ser que quer torpedear o acordo Mercosul-UE porque seus agricultores pouco eficientes querem continuar mamando nas tetas do Estado. François Bayrou, seu mentor de “extremo-centro” e opção derradeira como primeiro-ministro, ignora a desprezível dinâmica tiktokiana da política moderna e já começou mal com sua não explicação aos parlamentares sobre uma possível despreocupação com o furacão que devastou a ilha de Mayotte (perto do arquipélago independente de Comores, entre Madagascar e Moçambique) na semana passada.

O “prefeito de Pau” (interprete como quiser, rs) chegou ao paroxismo de cometer a seguinte gafe, ao justificar não ter ido ao departamento ultramarino (vulgo colônia) francês: “Não é costume o presidente e o primeiro-ministro deixarem o território nacional ao mesmo tempo.” Ele quis dizer a “metrópole”, o “Hexágono”, mas aí o estrago colonialoide já tava feito. Mas nada comparável, claro, ao modo como Macron tratou os habitantes de Mayotte que reclamavam da suposta ineficiência dos serviços de socorro e suprimentos. É só um corte, e além de outros momentos tensos, houve momentos mais calmos, mas falar nessa linguagem e nesse tom, publicamente, com uma população pobre e submetida a uma catástrofe natural, só conheço uma pessoa no mundo com a mesma pachorra: Jair Messias Bolsonaro, que certamente sequer sujaria as mãos, no máximo imitaria destelhados e bradaria valentemente “E daí? Quer que eu faça o quê? Eu não sou pedreiro!”



Só essa “saída” já lhe poderia custar uma deposição (que é muito mais difícil e tortuosa do que no Brasil, exceto se ele tivesse a mesma hombridade de um Chienlit Lagosta de Gaulle que renunciou em 1969), pra cujo ânimo muitas forças estão atiçadas, por outras razões ainda. O jornal esquerdista Libération recolheu as opiniões de vários políticos que acharam a cena “lamentável” e indicativa de um “abandono institucional” daquela que já era a subdivisão administrativa mais pobre da França. Porém, antes de passar pro assunto principal, quero adicionar outro escândalo evocado pelo Le Monde e relativo a supostas falas racistas, homofóbicas e misóginas feitas por Macron em privado.

Vou traduzir parte do conteúdo mais ou menos literalmente, mas outras agências brasileiras também exploraram melhor o caso. Em dezembro de 2023, discutindo com o secretário-geral da Presidência e o então ministro da Saúde uma possível supressão da Ajuda Médica Estatal (AME), cujos beneficiários são estrangeiros em situação irregular e cuja supressão era exigida pela extrema-direita, Macron teria dito: “O problema dos serviços de emergência é que estão saturados de Mamadou”. Um prenome genérico pra se referir pejorativamente aos imigrantes da África negra. Em outras ocasiões, Marine Tondelier, chefe dos Ecologistas, e Lucie Castets, proposta este ano como primeira-ministra pela NFP, ambas da oposição de esquerda, teriam sido chamadas de “vacas” (“cocottes”, também aproximável como “Caios Blinders piranhas” ou “peruas”). Sobrou até pra Gabriel Attal, seu ex-premiê gay, e os conselheiros deste, todos apelidados de “gaiola das loucas”.

Óbvio que a assessoria da Presidência desmentiu tudo isso, signo de uma “deliquescência do poder”, segundo a oposição, termo também usado exatamente pela imigração anti-Putin pra descrever a situação atual do Estado russo, sobretudo desde a invasão da Ucrânia. Mas enfim, sublinhando que Macron parece igualmente demonstrar um desprezo almofadinha pelos países do sul da África circundantes, vamos logo ao que interessa:




Pois bem, passei o dia com vocês, estou tentando falar e já faz um tempo que também estou me esgoelando pra falar. Se alguém me ouviu dizer “Está tudo bem”, levante a mão. Bem, então, por que vocês estão me obrigando a dizer isso? Eu, então, lhes digo: todos estão lutando. Vocês viveram algo terrível, todos estão lutando. Qualquer que seja a cor de sua pele. E não coloquem uns contra os outros. Se vocês colocarem uns contra os outros, estamos ferrados. Porque vocês estão felizes por estar na França. Porque se não fosse a França, tenho que dizer, vocês estariam dez mil vezes mais na merda! Não há um só lugar no oceano Índico onde as pessoas sejam tão ajudadas. Essa é a realidade. Portanto, não se pode querer ser um departamento francês e dizer que nada está funcionando, enquanto a França está sendo solidária. Qual é o outro território dessa região e de outros lugares que manda água, cargas e socorristas como se faz aqui? Então, todo mundo tem que se respeitar, vamos aguentar até o fim se agirmos em equipe. Não, e então vocês têm uma escolha simples, vocês são uma equipe. [Mas] Vocês estão se dividindo...


Alors, j’ai passé la journée avec vous, j’essaie de parler, et depuis tout à l’heure je m’égosille moi aussi pour parler. Si quelqu’un m’a entendu dire « Tout va bien », levez le doigt. Bon, alors, pourquoi vous me faites dire ça ? Donc moi, je vous dis : tout le monde se bat. Vous avez vécu quelque chose de terrible, tout le monde se bat. De quelle que soit la couleur de peau. Et n’opposez pas les gens. Si vous opposez les gens, on est foutu. Parce que vous êtes contents d’être en France. Parce que si c’était pas la France, pour vous dire, vous seriez mille fois plus dans la merde ! Il n’y a pas un endroit de l’océan Indien où on aide autant les gens. C’est la réalité. Et donc on peut pas vouloir être un département français et dire que ça marche pas dès que la France est en solidarité. Quel est l’autre territoire de cette région comme ailleurs qui livre de l’eau, du fret, des soignants comme on le fait ici ? Alors, faut que tout le monde se respecte, on tiendra jusqu’au bout si on est en équipe. Non, et donc vous avez un choix simple, vous êtes une équipe. Vous vous divisez…


Curiosamente, não foi um “Mamadou”, mas um “Hamadou”, que saiu em defesa do Espantalho da Picardia, comentando numa página do Facebook: “Deve-se estimar a liberdade de expressão, a qual admiro, apesar de tudo. A senhora [que aparece em outros cortes do vídeo] se expressa e o presidente lhe responde. Aqui na África é impossível dizer suas verdades na cara de um presidente. Macron pode parecer ridículo, mas o acho realmente próximo de seu povo.” Aham, Ismael, senta lá...

sábado, 21 de dezembro de 2024

2017: Putin bane Testemunhas de Jeová


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Dedico esta publicação a meu amigo William Cardoso, que sempre nos ajuda em casa com questões de informática, com quem sempre comentei essa proibição e que volta e meia vem nos incomodar com seu “extremismo”, impelindo-me a passar agradáveis momentos em trocas de ideias sobre tudo e mais um pouco.

Um dos capítulos mais vergonhosos da escalada autoritária e sanguinária da ditadura de Vladimir Putin e de sua clique de “eleitos” na Rússia, apoiada por uma “Igreja Ortodoxa Russa” fake que apenas abençoa os crimes do Kremlin, foi a interdição das atividades das Testemunhas de Jeová (doravante JW) em março de 2017 e a consequente dissolução organizativa com, que novidade, confiscação de seus bens pelo Estado em abril seguinte. O pretexto foi uma acusação de atividades “extremistas”, mas sabemos todos que das denominações cristãs existentes na Rússia, os evangélicos, sobretudo os que têm matrizes inspiradas nos EUA, são os mais perseguidos, às vezes insidiosamente, e considerados “agentes e sabotadores estrangeiros”.

Antes mesmo da Copa da FIFA de 2018 (que pra mim, depois da aceitação do Catar e da Arábia Saudita como sedes, ficou totalmente desacreditada), e enquanto eu mesmo, confesso em autocrítica, normalizava a vida no país sem muito conhecimento, por meio desta página e do antigo canal “Pan-Eslavo Brasil” no YouTube, pessoas humildes e comuns eram enjauladas por Putin apenas devido a seu pertencimento religioso. A proibição das JW foi muito comentada ao redor do mundo, mas aparentemente esquecida, e mesmo que eu seja bastante crítico com relação a várias de suas ideias, nunca achei “extremistas” meus conhecidos JW ou de certas afiliações evangélicas, como acho alguns mais visíveis no mainstream, apoiadores de Bolsonaro ou mesmo da RCC católica, pintados como “regra” pela ex-querda pseudoiluminista. Enquanto irreligioso, não preciso elogiar nem concordar com as crenças religiosas de ninguém, mas tolerância cívica, tendo por base as leis do Brasil, é o mínimo que se espera. De todos.

Por falta de tempo e de experiência, este é um dos materiais que mais ficou “encubado” ao longo dos anos, e era pra ter saído legendado no Pan-Eslavo Brasil, e não só traduzido em texto, como se lê agora. E olha que meu canal só começou mesmo a ter um forte crescimento orgânico justamente a partir da Copa de 2018 e das eleições brasileiras no mesmo ano. Já nem lembro mais em que rede, um certo Konstantin Sedov se deu ao esforço de transcrever o vídeo da leitura da sentença, publicado no YouTube no mesmo dia, e até comentou que “o volume e a rapidez da leitura podem ter sido propositais, justamente pra dificultar o entendimento” pelos presentes e possíveis internautas. Trata-se da sessão em que um dos juízes da Suprema Corte (nosso STF) leu a “parte dispositiva” da decisão n.º “АКПИ17-238” de 20 de abril de 2017, dispondo sobre a dissolução definitiva das JW enquanto organização, embora a sentença fosse passiva de “recurso” (ah vá, né!).

O vídeo em que o juiz Iúri Grigórievich Ivanenko lê o texto segue abaixo, junto com um backup caso o canal caia de uma escada ou de uma janela por qualquer motivo. Segundo a “agência” Interfax, as atividades das JW já tinham sido proibidas em 23 de março de 2017, prevendo-se a data de 5 de abril pra análise da “reclamação administrativa” (pra quem conhece o juridiquês, desculpe por qualquer erro e corrija onde tiver certeza de que haja um!) do Ministério da “Justiça” pela Suprema Corte. Em sua própria página, hoje bastante decepada e chamada apenas de “Observatório da imprensa sobre matérias citando as JW”, os seguidores locais relatam como as sentenças contra eles, em vários casos, eram tratadas de forma leviana e sem qualquer apelo.

O relato da oficial RIA Novosti é até bem equilibrado, inclusive trazendo o outro lado, por meio dos advogados de defesa. É curioso como as JW recusam a transfusão de sangue (como se a doutrina consistisse só disso!), mas a extrema-direita global, boa parte dela idólatra de Putin, nega a eficácia das vacinas e vê nisso um “complô de dominação”... Quando meu querido Sedov transcreveu sem custo algum a fala do juiz, o YouTube não era tão avançado quanto hoje, quando, por exemplo, aparecem legendas automáticas, embora imperfeitas. Pra minha alegria, acabei achando no Google por acaso a decisão completa num portal de leis da Rússia, bastando comparar os trechos concernidos, bem como uma ação envolvendo o Conselho da Europa (que Moscou ainda integrava em 2017) contendo uma tradução em inglês da decisão, que salvei à parte no Drive, mas não usei pra cotejar:




Anunciarei a parte dispositiva da decisão. Em nome da Federação Russa, o Supremo Tribunal da Federação Russa, cidade de Moscou, 20 de abril de 2017, composto pelo juiz do Supremo Tribunal da Federação Russa, Iu. G. Ivanenko, junto ao secretário V. A. Stratienko, tendo examinado em sessão aberta do tribunal o processo administrativo sobre a reclamação administrativa do Ministério da Justiça da Federação Russa sobre a dissolução da Organização Religiosa “Centro Administrativo das Testemunhas de Jeová na Rússia”, as explicações da representante do Ministério da Justiça da Federação Russa, S. K. Borisova, e as objeções dos representantes da Organização Religiosa “Centro Administrativo das Testemunhas de Jeová na Rússia” V. M. Kalin, S. B. Cherepanov, V. Iu. Zhenkov, Iu. M. Toporov, A. S. Omelchenko e M. V. Novakov, tendo examinado os autos do caso, tendo tomado os depoimentos de testemunhas e os argumentos judiciais, o Supremo Tribunal da Federação Russa, com base nos artigos 175, 180 e 264 do Código de Processo Administrativo da Federação Russa, decidiu:

– cumprir a reclamação administrativa do Ministério da Justiça da Federação Russa;

– dissolver a Organização Religiosa “Centro Administrativo das Testemunhas de Jeová na Rússia” e as organizações religiosas locais incluídas em sua estrutura;

– converter a propriedade da organização religiosa dissolvida, remanescente após a satisfação das reivindicações dos credores, em propriedade da Federação Russa.

A decisão judicial de cumprir o pedido administrativo de dissolução da Organização Religiosa “Centro Administrativo das Testemunhas de Jeová na Rússia” está sujeita a execução imediata nos termos do encerramento das atividades da organização e de suas organizações.

A decisão pode ser submetida ao Conselho de Apelações do Supremo Tribunal da Federação Russa no prazo de um mês a partir da data de sua adoção na forma final. A decisão final será tomada nos prazos estabelecidos por lei, e uma cópia da decisão será entregue às partes do processo ou enviada a elas no prazo máximo de três dias a partir da data de sua elaboração. As partes do processo têm o direito de conhecer o conteúdo da ata da audiência e, se for o caso, apresentar comentários sobre ela. As partes compreendem o procedimento e o prazo para recorrer da decisão judicial? Declaro encerrada a sessão do tribunal.


Оглашается резолютивная часть решения. Именем Российской Федерации Верховный Суд Российской Федерации, город Москва, 20 апреля 2017 года, в составе судьи Верховного Суда Российской Федерации Иваненко Ю.Г. при секретаре Стратиенко В.А., рассмотрев в открытом судебном заседании административное дело по административному исковому заявлению Министерства юстиции Российской Федерации о ликвидации Религиозной организации “Управленческий центр Свидетелей Иеговы в России”, объяснения представителя Министерства юстиции Российской Федерации Борисовой С.К., возражения представителей Религиозной организации “Управленческий центр Свидетелей Иеговы в России” Калина В.М., Черепанова С.Б., Женкова В.Ю., Топорова Ю.М., Омельченко А.С., Новакова М.В., исследовав материалы дела, заслушав показания свидетелей и судебные прения, руководствуясь статьями 175, 180, 264 Кодекса административного судопроизводства Российской федерации, Верховный Суд Российской Федерации решил:

– административное исковое заявление Министерства Юстиции Российской Федерации удовлетворить;

– ликвидировать Религиозную организацию “Управленческий центр Свидетелей Иеговы в России” и входящие в её структуру местные религиозные организации;

– обратить имущество ликвидируемой религиозной организации, оставшееся после удовлетворения требования кредиторов, в собственность Российской Федерации.

Решение суда об удовлетворении административного иска о ликвидации религиозной организации “Управленческий центр Свидетелей Иеговы в России” подлежит немедленному исполнению в части прекращения деятельности религиозной организации “Управленческий центр Свидетелей Иеговы в России” и входящих в её структуру местных регионных организаций.

Решение может быть обжаловано в Апелляционную коллегию Верховного Суда Российской Федерации в течение месяца со дня его приятия в окончательной форме. Решение в окончательной форме будет принято в установленные законом сроки, копия решения будет вручена лицам, участвующим в деле или направлена им не позднее трёх дней со дня изготовления. Лица, участвующие в деле, вправе ознакомиться с протоколами судебного заседания и подать на него замечания если таковые будут иметься. Сторонам понятен порядок и срок обжалования судебного решения? Судебное заседание объявляется закрытым.