domingo, 30 de setembro de 2018

Canções nacionalistas da Córsega (1)


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Pesquisando música folclórica da Córsega, vasta ilha do Mediterrâneo pertencente à França, acabei na verdade encontrando muitas canções de grupos tradicionais que reivindicam politicamente a independência local. O que me atraiu neles foi a sonoridade dos arranjos, a poesia das letras e o caráter de novidade na cena brasileira, sobretudo entre os jovens. Muitos sabem que boa parte dos corsos deseja se tornar um país livre, mas poucos no Brasil e outros países de fala portuguesa tiveram algum contato com a cultura e com seu lindo idioma.

Entre os conjuntos que gravam canções muito bonitas, com pedidos de autonomia ou independência local, está o L’Arcusgi (se lê “larcúji”), nome que significa “Os Arcabuzeiros”, ou “Os Atiradores”, em alusão à arma de fogo primitiva usada pelas tropas de Pasquale Paoli, reputado o Pai da Pátria corsa. Acredito que todas as músicas, gravadas em álbuns de diferentes épocas, foram compostas pelo próprio grupo, que só canta na língua corsa, da mesma ramificação do italiano entre as línguas românicas, mas muito semelhante também aos dialetos do sul da Itália. Antes de traduzi-las, me informei um pouco sobre a pronúncia e o funcionamento do idioma corso, de forma que não desse “tiros no escuro”, mas também me apoiei nos conhecimentos de italiano e até de napolitano que eu já tinha.

O grupo L’Arcusgi foi fundado em 1984 na região corsa de Bastia e define-se como “político-cultural”, solidarizando-se também com outras minorias nacionais separatistas, como se nota nas canções gravadas em basco. Ativo ainda hoje, conta com cinco músicos e nove cantores, número que variou pelo tempo, e sua principal missão declarada é defender a língua e a cultura corsas, pouco favorecidas pelo governo de Paris. Seu primeiro álbum, Resistanza, saiu em 1988, e o último, 30 anni: cantu, passione, spartera, em 2014. Eu mesmo traduzi direto do corso e legendei, tendo usado, além de traduções em francês, um dicionário bidirecional corso-francês e um conjugador de verbos.

A relação da população nativa dessa ilha de 8 722 km² com a França sempre foi tensa. Em 2013, o ministro do Interior Manuel Valls rejeitou qualquer tentativa de elevar o status da língua corsa e imputou aos ilhéus uma “cultura da violência”. O grupo terrorista local FNLC (Frente Nacional de Libertação Corsa) ameaçou então retomar as atividades armadas, mas desde 2014 não há emprego sistemático da violência. A Córsega chegou a declarar em 1735 sua independência da República de Gênova, inclusive adotando, em 1755, talvez a primeira constituição democrática da história moderna, até mesmo com o sufrágio feminino. Mas em 1768, Gênova entregou a Córsega à França, que a submeteu militarmente em 1769, derrubando a república fundada pelo general Pasquale Paoli. Este, horrorizado pelo Terror de Robespierre, chegou a estruturar um reino corso tutelado pelos ingleses em 1794-96, mas terminou seus dias exilado em Londres.

A Córsega possui um status especial dentro da República Francesa, que desde 2018 a faz ser chamada “Coletividade da Córsega”. Muito menos do que por pressão violenta, a língua corsa sempre esteve em risco pela onipresença do francês, considerado como instrumento de integração social e cultural, de forma que o corso nunca foi aceito por Paris nem mesmo como língua cooficial, tendo o francês a condição oficial isolada. Ainda hoje se tenta conservar o corso contra a extinção, mas em geral são iniciativas isoladas, justamente como a do L’Arcusgi.

A primeira canção é Lotteremu, canteremu (Lutaremos, cantaremos), que foi gravada no álbum Testimone à l’eternu, lançado em 1997, o quarto da carreira do grupo L’Arcusgi (tradução francesa). O nome da segunda canção é Un populu ùn è vintu (Um povo não é vencido), que foi gravada no álbum L’Arcusgi di Pasquale, lançado em 2005, o sexto da carreira (tradução francesa). O nome da terceira canção é Lotta ghjuventù (Lute, juventude), que foi gravada no álbum Sò elli, lançado em 1993, o segundo da carreira (tradução francesa). Mas acredito que esta gravação seja de 2002, álbum In vivu à fianc’à voi, e eu cortei uma fala inicial em francês, comentando a discriminação à língua corsa. E o nome da quarta canção é Omu cantà (O homem a cantar), que foi gravada no álbum de estreia Resistanza, lançado em 1988.

Seguem abaixo as legendagem bilíngues que eu mesmo montei, as letras originais no idioma corso, retiradas de várias fontes e nas quais fiz certas mudanças quando necessário, e as traduções em português. Nem sempre traduzi as canções literalmente, porque era impossível nos limites da expressão idiomática e poética corsa, mas acredito que consegui passar o sentido essencial:



1. Per l’omu di ’ssa terra
Chì a cunnisciutu a guerra
Aprim’u nostru core,
Spartim’u so dulore.
Per populu nigatu
Chi s’hè rivultatu
Intracciend’a so storia
Senza perde mimoria.

Ripigliu:
Lotteremu, canteremu
Cun voce è core ribelli,
Lotteremu, canteremu
Per noi è per elli,
Lotteremu, canteremu
Contr’à la sottumissione,
Lotteremu, canteremu
Sperenze è Nazione.

2. Per ’sse mamme ferite,
Nott’è ghjorn’arritte
Fighjulend’u tavulinu
Duv’ell’un posa più nimu.
A tè chì per Nazione
Dormi ind’è priggione
Aspettendu si sà
Ragiu di verità.

(Ripigliu)

3. A st’omi di valore
Difendend’u s’onore,
Di Paoli figlioli
Contr’affann’e taglioli.
Contr’à l’ingannatore
Chì sparghje u so furore
Piseremu la testa
E parendu a timpesta.

(Ripigliu)

4. Vince per ùn more
Hè scrittu in li core.
Purghjimuci la manu
E femu fronte sanu.
A lu statu francese,
Simbulu d’offese,
Li ci vole per sentenza
Un soffiu di putenza.

(Ripigliu)

Lotteremu, canteremu
Cun voce è core ribelli,
Lotteremu, canteremu
Per noi è per elli,
Lotteremu, canteremu
Contr’à la sottumissione,
Lotteremu, canteremu
Terra Corsa Nazione!

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1. Para o homem dessa terra
Que conheceu a guerra
Abrimos nosso coração
E partilhamos sua dor.
Para o povo negado
Que se revoltou
Procurando sua história
Sem perder a memória.

Refrão:
Lutaremos, cantaremos
Com voz e coração rebeldes,
Lutaremos, cantaremos
Por nós e por eles,
Lutaremos, cantaremos
Contra a submissão,
Lutaremos, cantaremos
As esperanças e a Nação.

2. Por essas mães feridas
De pé por noites e dias
Com olhos fixos na mesa
Onde ninguém mais se senta.
A você, que pela Nação
Dorme numa prisão,
Desejando conhecer
Um raio da verdade.

(Refrão)

3. A estes homens valorosos
Que defendem sua honra,
Filhos de Pasquale Paoli
Contra opressão e gangues.
Contra o corruptor
Que espalha sua fúria,
Vamos erguer a cabeça
E parar a tempestade.

(Refrão)

4. Vencer para não morrer
Está escrito nos corações.
Estendemo-nos as mãos
E fazemos toda uma frente.
Ao Estado francês,
Símbolo de ofensas,
Devemos sentenciar-lhe
Um sopro de força bruta.

(Refrão)

Lutaremos, cantaremos
Com voz e coração rebeldes,
Lutaremos, cantaremos
Por nós e por eles,
Lutaremos, cantaremos
Contra a submissão,
Lutaremos, cantaremos
A Nação da Terra Corsa!



Ripigliu:
Un populu ùn hè vintu
Tantu chì lotterà.
Un populu ùn hè vintu
Tantu chì lotterà.

1. A forza di dice
È a forza di fà
Tuttu per cunvince
Di a nostra indignità,
A forza di dice
Ch’ùn c’hè più nunda à fà,
Ch’à populu vintu
Nimu ùn lu pò salvà.

A forza di lampacci
Un’à unu in priggiò,
Cun li sò basterdacci,
Muti eranu i sgiò,
U populu intimuritu
Ùn vulia parlà,
Ascultava u banditu
Chì ci vole ingannà.

(Ripigliu)

2. Mà a voce di a notte
Ripiglia à tunà,
Saetta da li monti
Sempre pronte à pichjà
Quandu l’inghjustizia
Ci vole castigà,
U populu, u fratellu,
A santa libertà.

Mà a voce di l’alba
Ci dice di sperà.
Rinasce a fratellenza
Fiatu di dignità
Di donn’è omi arritti
Per a verità.
L’idea indipendenza
Mai ùn cascherà.

(Ripigliu)

3. Mà u sognu ùn hè mortu:
A fiaccula libertà
In core d’ogni corsu
A strada si ferà.
S’adduniscenu l’omi
È cresce a vulintà
Di fà l’unione corsa
Per inseme lottà.

Mà u sognu ùn hè mortu:
U sole luce digià
È u populu unitu
Ripiglia à marchjà.
In pettu à lu francese,
Sta sola verità:
Un populu ùn hè vintu
Tantu chì lotterà.
Un populu ùn hè vintu
Tantu chì lotterà.

(Ripigliu)

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Refrão:
Um povo não é vencido
Enquanto puder lutar.
Um povo não é vencido
Enquanto puder lutar.

1. De tanto dizerem
E de tanto fazerem
Tudo para convencer
Que éramos indignos,
De tanto dizerem
Que nada mais adiantava,
Que a um povo vencido
Ninguém pode salvar.

De tanto nos lançarem
Um a um na prisão,
Aliarem-se a criminosos
E calarem nossos chefes,
O povo amedrontado
Não queria falar nada,
Só escutava o bandido
Que deseja nos enganar.

(Refrão)

2. Mas a voz da noite
Voltou a ressoar como
Raio vindo dos montes
Sempre pronto a bater
Quando a injustiça
Quiser castigar a nós,
Ao povo, ao irmão
E à santa liberdade.

Mas a voz do alvorecer
Nos chama à esperança.
Renasce a fraternidade,
Um sopro de dignidade,
Entre mulheres e homens
De pé buscando liberdade.
O ideal independentista
Nunca vai se extinguir.

(Refrão)

3. Mas o sonho não morreu:
A chama da liberdade
No coração de cada corso
Vai trilhar seu caminho.
As pessoas se reúnem
E aumenta a vontade
De unir toda a Córsega
Para lutarmos juntos.

Mas o sonho não morreu:
O Sol já está raiando
E o povo unificado
Recomeça sua marcha.
Faz frente aos franceses
Esta única verdade:
Um povo não é vencido
Enquanto puder lutar.

(Refrão)



Intorna una bandera
Un pugnucciu s’hè pisatu
Mughjend’à la terr’entera:
“Babbu ghjè incarceratu,
Ma sò d’un populu fieru
E per ellu lotteraghju!”

Francia è to sole sumente
Sò schiavitur’è affani
Annacquate di surgente
Sanguinose tutti ’anni
Ch’imbruttanu l’innucente
E prutège l’assassini.

Intorna una bandera
Mille pugni sò pisati
Strident’a la terr’entera:
“Libertà per l’inghjuliati!
Corsica Nazione era,
Ùn ci simu sminticati!”

Francia tutt’è to milizie
Un ghjorn’anu d’à cascà,
E tutte lè to inghjustizie
Approntati a pagà!
Aspettendu ssè nutizie,
Sempre fronte si ferà.

Lotta ghjuventù,
L’avvene si tù!
Lotta ghjuventù,
L’avvene si tù!

Intorna quessa bandera
Populu si piserà,
Cantend’à la terr’entera,
L’alba di a so Libertà
Fendu risplend’a lumera
Infine di l’unità.

Francia tandu morerà,
In l’umanu a cuscenza
Una scelta si ferà:
Ùn abbia tantu speranza
Chì corsu ùn si scurderà
Di tant’anni di suffrenza!

Lotta ghjuventù,
L’avvene si tù!
Lotta ghjuventù,
L’avvene si tù!

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Em torno de uma bandeira,
Um pequeno punho erguido
Grita para a Terra inteira:
“Meu papai está preso,
Mas meu povo é orgulhoso
E vou combater por ele!”

Você, França, traz sementes
Só de escravidão e opressão
Regadas todos os anos
Por fontes sanguinolentas
Que atormentam inocentes
E encobrem assassinos.

Em torno de uma bandeira,
Mil punhos levantados
Clamam para a Terra inteira:
“Liberdade aos humilhados!
Havia uma Nação Corsa,
Disso não nos esquecemos!”

França, todo seu exército
Um dia haverá de tombar,
E todas as suas injustiças
Prepare-se para ressarcir!
Esperando isso acontecer,
Sempre vamos enfrentá-la.

Lute, juventude,
Você é o futuro!
Lute, juventude,
Você é o futuro!

Em torno dessa bandeira,
O povo vai se levantar
Cantando à Terra inteira.
A aurora de sua Liberdade
Fará resplanceder a luz
Da tão esperada unidade.

A França então vai morrer
E a consciência humana
Vai se fazer uma escolha:
Não tenha tanta esperança
De que o corso vá esquecer
Tantos anos de sofrimento!

Lute, juventude,
Você é o futuro!
Lute, juventude,
Você é o futuro!



Quand’u ferru si face pisante,
Chì l’oppressione mena,
Quandu curaggiu vole fughje
L’incarceratu canta
È u so cant’hè di sole.

Per un grombulu di ghjustizia,
Per un palmu di libertà,
Per un soffiu di dignità
Ascolta st’omu cantà,
Chì lu so cant’hè di sole.

Duve l’omu si stà mutu,
Duve lu temp’hè fughjitu,
Duve a luce hà paura,
L’incarceratu canta
È u so cant’hè di ventu.

Per un grombulu di ghjustizia,
Per un palmu di libertà,
Per un soffiu di dignità
Ascolta st’omu cantà,
Chì lu so cant’hè di ventu.

Per un populu inghjuliatu,
Per a Patria nigata,
Per l’avvene chì si face
L’incarceratu canta
È u so cant’hè di lotta.

Per un grombulu di ghjustizia
Per un palmu di libertà
Per un soffiu di dignità
Ascolta st’omu cantà
Chì lu so cant’hè di lotta.

Ascolt’ ascolta, zitellu,
U ventu di a rivolta,
U cantu di a cuncolta
Sbucciat’in la stagione
Di a Corsica Nazione.

2x:
Per un grombulu di ghjustizia,
Per un palmu di libertà,
Per un soffiu di dignità
Ascolta st’omu canta.

È stu cantu fallu toiu.

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Quando a espada fica pesada,
Quando a opressão agride,
Quando a coragem quer fugir,
O encarcerado canta
Uma canção feita de Sol.

Por um grão de justiça,
Por um palmo de liberdade,
Por um sopro de dignidade
Escute este homem cantar,
Pois é um canto feito de Sol.

Onde o homem emudeceu,
Onde o tempo se evadiu,
Onde a luz sente medo,
O encarcerado canta
Uma canção feita de vento.

Por um grão de justiça,
Por um palmo de liberdade,
Por um sopro de dignidade
Escute este homem cantar,
Pois é um canto feito de vento.

Por um povo humilhado,
Pela Pátria negada,
Pelo futuro que se produz
O encarcerado canta
Uma canção feita de luta.

Por um grão de justiça,
Por um palmo de liberdade,
Por um sopro de dignidade
Escute este homem cantar,
Pois é um canto feito de luta.

Escute, escute, menino,
O vento da revolta,
O canto da congregação
Que florescem na estação
Da Nação Corsa.

2x:
Por um grão de justiça,
Por um palmo de liberdade,
Por um sopro de dignidade
Escute este homem cantar.

E este canto é culpa tua [da França].