sábado, 7 de abril de 2018

Nadine Koutcher e Gulnara Shafigullina


Link curto para esta postagem: fishuk.cc/ivc2012



Estes quatro vídeos são bem interessantes, sugeridos pra legendagem ainda em 2016, mais ou menos, pela minha amiga Mariana, mas que só tive tempo de legendar no segundo semestre de 2017. São as apresentações das cantoras líricas Nadine Koutcher, de Belarus, e de Gulnara Shafigullina, da Rússia, na final de 2012 da International Vocal Competition (IVC, Competição Vocal Internacional), único concurso do gênero na Holanda desde 1954. Segundo a descrição contida no canal YouTube do próprio concurso, ele é um dos mais renomados do mundo quanto à vocalização erudita e faz parte da Federação Internacional das Competições Internacionais de Música. Tendo chegado em 7-16 de setembro de 2017 à sua 51.ª edição, a IVC é focada na atuação individual dos cantores, em seu poder vocal e seus projetos futuros. O canal a arroga como uma das principais portas de entrada internacionais dos jovens talentos da música erudita, inserindo-os no meio artístico, institucional e empresarial concernente. O IVC possui um site oficial, mas também esta página com vídeos.

No primeiro vídeo, Nadine Koutcher canta o poema “Колыбельная песня” (Kolybelnaia pesnia), Canção para/de Ninar, escrito em 1860 por Apollon Nikolaievich Maikov (1821-1897), publicado em 1872 e musicado pelo célebre Piotr Chaikovski em 1873. No segundo vídeo, ela canta o poema “К ней” (K nei), Rumo a ela, escrito em abril de 1908 por Andrei Bely (pseudônimo de Boris Nikolaievich Bugaiev, 1880-1934) e musicado por Sergei Vasilievich Rakhmaninov (1873-1943). No terceiro vídeo, Gulnara Shafigullina entoa a canção “Они отвечали” (Oni otvechali), Elas responderam (ou “respondiam”, se for ao pé da letra), com poema originalmente francês de Victor Hugo, tradução russa do poeta e tradutor Lev Aleksandrovich Mei (1822-1862) e música também de Rakhmaninov. E no quarto vídeo, ela canta “Здесь хорошо” (Zdes horosho), Aqui é bom (ou “tão bom”, pra incrementar), da poetisa, ensaísta e tradutora Glafira Adolfovna Rinks (1870-1942), publicado em 1895, de novo melodia de Rakhmaninov. Rinks era mais conhecida, entre outros, pelo pseudônimo “Galína Gálina” (coloquei acentos pra precisar a pronúncia, já que em cirílico são iguais), e por volta de 1895 estava envolvida em movimentos estudantis, mas se retirou de público depois de 1917.

Eu mesmo traduzi os versos, cortei os trechos dos vídeos e legendei. Essas traduções de poesia são literais, e não poéticas, ou seja, tentei passar ao máximo apenas o significado pretendido. A ordem das duas apresentações de Koutcher está invertida, mas Shafigullina cantou na ordem mesma em que estão os vídeos. Nesta página está a atuação completa de Koutcher, e nesta página está a filmagem integral de Shafigullina, cantora que atualmente reside na Holanda e tem também um site pessoal. Seguem abaixo as quatro legendagens, que postei no meu antigo canal do YouTube, as explicações sobre elas, as letras em russo e as traduções em português:


As chamadas “canções de ninar”, tanto como modelo musical quanto estilo literário infantil, são um gênero muito estimado e refinado na Rússia desde o século 19. Extraído do ciclo Canções neo-gregas, o poema Canção para Ninar, assim como Mãe e filhos, Primavera e Capinzal, integra o livro Palavra pátria, de K. D. Ushinski, a obra mais popular depois da cartilha de alfabetizar. As canções que musicaram esses poemas também se tornaram muito difundidas, tendo entrado no repertório de todos os corais infantis. O texto tem evidentes traços arcaizantes, como o uso da palavra ditia pra “bebê” ou “criança”, quando o moderno é rebionok, e a conjunção ali significando “ou”, “e”, “será que”. Eu copiei a letra em russo desta página, que tem uma breve história da canção e uma variante levemente diferente.

Спи, дитя моё, усни!
В няньки сон к себе мани:
В няньки я тебе взяла
Ветер, солнце и орла.

Улетел орёл домой;
Солнце скрылось под водой;
Ветер после трёх ночей
Мчится к матери своей.

Ветра спрашивает мать:
“Где изволил пропадать?
Али звёзды воевал?
Али волны всё гонял?”

“Не гонял я волн морских,
Звёзд не трогал золотых, –
Я дитя оберегал,
Колыбелечку качал!”

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Nana, nana, criancinha!
Chame o sono pra te ninar:
Eu chamei pra te ninarem
O vento, o Sol e a águia.

A águia voou pro ninho;
O Sol sumiu debaixo d’água;
O vento, depois de três noites,
Sopra rumo à própria mãe.

A mãe pergunta pro vento:
“Onde é que você foi parar?
Estava batendo nas estrelas
Ou ficou movendo as ondas?”

“Não mexi as ondas do mar,
Não feri as estrelas douradas;
Fui cuidar de uma criança
Balançando seu bercinho!”


A canção é bem forte e dramática, e exigiu elaborada interpretação por Koutcher, novamente com Paul Plummer no piano. Este poema pertence à chamada “época de prata” da literatura russa, e tem várias referências à natureza: o orvalho, por exemplo, é chamado de “pérolas”. O vocabulário também é um pouco antigo, porque se usa krasnye (plural de krasny) não exatamente no sentido moderno de “vermelhas”, já que não fazem sentido “luzes vermelhas” na noite natural; mas no velho sentido de “belas”, “boas” ou “radiantes” (conservado, por exemplo, em checo). Há ainda uma referência mitológica grega ao “Lete” (em russo, Leta), rio cujas águas levariam, se bebidas, ao esquecimento de vidas passadas, ou das coisas pretéritas em geral. Copiei desta página a letra em russo, classificada como “romança”, ou seja, uma canção sentimental, embora nas legendas eu tenha mudado um pouco a quebra de linhas.

Травы одеты
Перлами.
Где-то приветы
Грустные
Слышу, – приветы
Милые...

Милая, где ты,
Милая?...

Вечера светы
Ясные, –
Вечера светы
Красные...
Руки воздеты:
Жду тебя...

Милая, где ты,
Милая?

Руки воздеты:
Жду тебя...
В струях Леты,
Смытую
Бледными Леты
Струями...

Милая, где ты,
Милая?

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A relva está coberta de pérolas.
Tristes saudações nalgum lugar
Eu ouço, saudações queridas...

Querida, onde você está?...

As luzes claras da noite,
As luzes lindas da noite...
Braços ao alto: te espero...

Querida, onde você está?...

Braços ao alto: te espero...
Levada na correnteza do Lete,
Pela pobre correnteza do Lete...

Querida, onde você está?...


O poema de Victor Hugo se chama Autre guitare (Outro violão), e talvez aluda ao fato de ser um jogo de perguntas e respostas, onde um cantor ou cantores (no caso, os homens) responde a outro ou outros (aqui, as mulheres), como trovadores ou, no Brasil, repentistas. O texto francês saiu como o de número 23 da coletânea As luzes e as sombras (1840), que granjeou vasto respeito ao escritor e cujo título é uma alusão ao mundo de beleza, amor e alegria (les rayons, gênero masculino) que convive com o lado triste, morto e esquecido (les ombres, gênero feminino) pra formar o todo da vida. As “luzes” são uma alegoria do conhecimento, que era missão civilizatória do poeta levar às “sombras”, à ignorância, mas acredito até que no poema temos a metáfora dos vivos pedindo conselho aos mortos, ou do saber racional dando brecha à experiência intuitiva.

O mais interessante é que em russo, o poema só faz sentido na ortografia pré-1918, sob a qual o poema foi escrito, ou seja, em russo se escrevia “они” pra “eles” e “онѣ” pra “elas”, mas ambos se diziam oni (pron. “aní”). Hoje, a 3.ª pessoa do plural pros três gêneros em russo é “они” escrito e falado. Em poesia, essa letra iat abolida pelos bolcheviques podia ser pronunciada “ié”, como em outras palavras, o que resultava ser a pronúncia como se o pronome moderno fosse escrito “оне” (one, pron. “anié”). Até hoje em polonês, oni significa “eles” e one é usado pra feminino e/ou neutro, quando não há entre os referentes um substantivo masculino. Portanto, este poema é um dos casos raros em que se perde o sentido com a ortografia moderna, embora a própria Shafigullina pronuncie oni pra ambos. Como em francês, “luzes” é masculino (lutchi) e “sombras” é feminino (teni) em russo, o que mantém o efeito pretendido, mas o nome do poema ficou Elas responderam, e não Outro violão. Leia mais sobre a ortografia pré-1918 neste artigo que redigi.

A versão musical em russo, como as anteriores, também é classificada como “romança”, ou seja, uma canção sentimental, e o próprio poema francês recebeu muitas traduções e melodias em outros países. Eu copiei desta página o texto em russo, ampliado em relação ao francês, nas duas ortografias e com as partituras. A coleção As luzes e as sombras completa de Hugo pode ser lida nesta página, com Autre guitare no número XXIII. Abaixo, o texto em russo moderno (com o pronome à antiga indicado), em russo antigo e a tradução:

Спросили они:
«Как в летучих челнах
Нам белою чайкой скользить
На волнах,
Чтоб нас сторожа не догнали?»
«Гребите!» – они [онѣ] отвечали.

Спросили они:
«Как забыть навсегда,
Что в мире
Юдольном есть бедность, беда,
Что есть в нём гроза и печали?»
«Засните!» – они [онѣ] отвечали.

Спросили они:
«Как красавиц привлечь
Без чары:
Чтоб сами на страстную речь
Они нам в объятия пали?»
«Любите!» – они [онѣ] отвечали.

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Спросили они:
«Какъ въ летучихъ челнахъ
Намъ бѣлою чайкой скользить
На волнахъ,
Чтобъ насъ сторожа не догнали?»
«Гребите!» – Онѣ отвѣчали.

Спросили они:
«Какъ забыть навсегда,
Что въ мірѣ
Юдольномъ есть бѣдность, бѣда,
Что есть въ немъ гроза и печали?»
«Засните!» – онѣ отвѣчали.

Спросили они:
«Какъ красавицъ привлечь
Безъ чары:
Чтобъ сами на страстную рѣчь
Онѣ намъ въ объятія пали?»
«Любите!» – онѣ отвѣчали.

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Eles perguntaram:
“Como em canoas voadoras
Podemos fluir como gaivota branca
Sobre as ondas,
Para os guardas não nos alcançarem?”
“Remem!”, elas responderam.

Eles perguntaram:
“Como esquecer para sempre
Que o mundo
Mortal tem pobreza e desgraça,
Que ele tem terror e agonia?”
“Adormeçam!”, elas responderam.

Eles perguntaram:
“Como atrair lindas moças
Sem álcool:
Para elas mesmas caírem nos
Nossos braços com fala de amor?”
“Amem!”, elas responderam.


Nada tenho de especial a comentar, a não ser que temos várias figuras poéticas, como a famosa expressão “Deus e eu”, usada pra indicar uma absoluta solidão ou isolamento e presente também na música sertaneja, como em Victor & Leo. Há também usos da linguagem formal, como a palavra da, literalmente “sim”, sendo usada como a conjunção aditiva “e”, o emprego do verbo vzglianut ao invés de smotret pra “olhar” e a função do caso instrumental como termo de comparação com alguma coisa (ogniom = como fogo). Quero crer ainda que “o rio ardendo como fogo” alude a um possível cair da tarde, em que a luz avermelhada do céu se reflete no espelho d’água. A versão musical em russo, como as anteriores, também é classificada como “romança”, ou seja, uma canção sentimental, como se nota pela atuação interpretativa da cantora, praticamente como um atriz. Eu tirei desta página o texto em russo, que tem também as partituras.

Здесь хорошо…
Взгляни, вдали огнём
Горит река;
Цветным ковром луга легли,
Белеют облака.

Здесь нет людей…
Здесь тишина…
Здесь только Бог да я.
Цветы, да старая сосна,
Да ты, мечта моя!

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Aqui é tão bom...
Olhe ao longe o rio
Ardendo como fogo;
Os prados viraram tapete florido,
As nuvens branquejam.

Aqui não há ninguém...
Aqui é tudo quieto...
Aqui só estão Deus e eu.
Flores, um velho pinheiro
E você, meu sonhinho!