segunda-feira, 6 de novembro de 2017

A ortografia russa antes da Revolução


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Por Erick Fishuk

Introdução

Amigas e amigos! Infelizmente, por causa da correria do doutorado, não pude carregar vídeos novos no canal Eslavo (YouTube) sobre a história da URSS e do comunismo pra marcar os 100 anos da Revolução Russa! Porém, como não quero deixar a data passar em branco, decidi misturar os interesses meus e talvez os de quem frequenta este blog, e escrevi esta postagem a respeito da ortografia da língua russa usada até 1918, quando houve a reforma determinada pelos bolcheviques. Espero que vocês gostem, e que este seja um bom material informativo.

O alfabeto cirílico russo tomou sua forma mais ou menos atual sob o reinado do imperador Pedro 1.º, o Grande, no início do século 18, o qual escolheu pessoalmente quais letras seriam mantidas e quais se abandonariam. Basicamente, como a tendência estava sendo retirar a influência da Igreja sobre as leis e a administração, e a influência do eslavo eclesiástico sobre o russo formal e escrito, a literatura foi aos poucos se apossando de temas profanos, e a língua foi se tornando (me permitam dizer) mais “russa” (o dialeto monástico tinha muitos traços búlgaros), menos hermética e mais próxima do falar popular. As letras que serviam mais pra reproduzir palavras sagradas emprestadas do grego caíram em desuso, e as poucas que ficaram não impedem brutalmente um falante moderno de ler textos da era tsarista.

A última grande reforma da ortografia russa ocorreu em 1918, quando foi alterada a grafia de algumas formas gramaticais e foram retiradas do alfabeto algumas letras sem valor prático. Dessa forma, a ortografia ficou bem mais próxima da fala real (ainda que hoje se mantenham algumas discrepâncias), abrindo caminho à difusão do letramento que se daria durante o período soviético. Mesmo durante a Era Stalin, houve algumas oscilações nas regras, mas em 1956 a grafia tomou a forma definitiva conservada até hoje. Eu tirei da Wikipédia russa o material fundamental pra este texto, em especial dos verbetes “Орфография русского языка” (Ortografia da língua russa), “Русская дореформенная орфография” (A ortografia russa antes da reforma), “Реформа русской орфографии 1918 года” (A reforma de 1918 da ortografia russa) e “Орфография русского языка до 1956 года” (A ortografia da língua russa até 1956).


Antecedentes

Inicialmente, quem escrevia russo o fazia conforme regras pessoais e individuais. Devemos lembrar os seguintes fatos a respeito da língua: 1) Até a fundação da URSS, a esmagadora maioria da população era analfabeta e inculta, então imaginem como devia ser até o século 18, mesmo no seio da nobreza. 2) Até o século 18, como eu disse acima, a língua literária, administrativa e (tal como ainda hoje) litúrgica era o eslavo eclesiástico, uma forma simplificada e um tanto russificada do antigo eslavônio, dialeto codificado pelos santos Cirilo e Metódio pra traduzir textos sagrados e evangelizar a maior parte dos povos eslavos; este idioma artificial, por sua vez, tinha como base o dialeto falado em torno de Tessalônica, mais ou menos próximo ao atual macedônio, ambos de extração eslava meridional (o russo é eslavo oriental). 3) Até as amplas reformas de Pedro, o Grande, a língua russa era essencialmente uma língua falada, e pelo povo, pois enquanto a escrita era em eslavo eclesiástico, boa parte da nobreza era educada em francês, e às vezes só falava este idioma; apenas no começo do século 18 lançou-se o processo de padronização da língua russa literária moderna, baseada no dialeto de Moscou (que faz parte do grupo central de dialetos russos), mas com influências também dos dialetos do norte e do sul. 4) A literatura russa como uma instituição consolidada, portanto, só vai surgir no século 18, até atingir seu ápice e idade de ouro no século 19.

Entre os primeiros grandes trabalhos que tentaram sistematizar a escrita da língua russa, estão um manual do poeta, tradutor e filólogo Vasili Trediakovski, saído em 1748, e a famosa e pioneira Gramática russa (1755) de Mikhail Lomonosov, químico e físico que atuava como uma espécie de polímata à la Leonardo da Vinci. Foi este intelectual que deu seu nome à atual Universidade Federal de Moscou (MGU). Em 1873, o filólogo Iakov Grot alçou o princípio morfológico, em algum grau influído pela fonética, como guia pra ortografia, enquanto deram-lhe ainda mais peso os linguistas Aleksandr Gvozdev, Aleksandr Tomson, Mikhail Peterson e Dmitri Ushakov, um dos artífices da reforma de 1918. Em 1904, no âmbito da Academia de Ciências, criou-se uma comissão especial de ortografia, cuja subcomissão concluiu em 1912 um projeto de reforma ortográfica, efetivado apenas em 1918.

Embora o projeto de reforma fosse anterior às Revoluções Russas de 1917, pra todos os efeitos a mudança na ortografia passou a ser algo associado aos bolcheviques e à sua destruição do tsarismo. Por isso mesmo, os núcleos da emigração política liberal ou “branca”, exilados em diversos países do Ocidente capitalista, utilizaram a velha grafia até a segunda metade dos anos 40, por vezes até os anos 60, não raro com mudanças, como a eliminação do tviordy znak em fim de palavra e das letras fita e izhitsa. Na Rússia soviética, o grau de implantação das novas regras variava conforme o controle vermelho se expandia, mas na própria URSS algumas obras científicas chegaram a sair à moda antiga até o fim dos anos 20. Atualmente, apenas a Igreja Orotodxa Russa do Exterior, sediada em Nova York, ainda edita livros com as normas passadas, enquanto na Rússia é mais reivindicada por grupos monarquistas e usada em lugares, inclusive comerciais, com alusões históricas, onde muitas vezes vem até com erros no emprego.

A principal mudança, que vou explicar em mais detalhes adiante, foi a supressão das letras “iat” (que representava uma vogal primitiva do proto-eslavo e do eslavônio, que evoluiu pra diferentes sons nas línguas eslavas), “fita”, “izhitsa” (que transcreviam letras gregas sem som equivalente em russo) e “i decimal” (cujo nome se deve a seu uso como o número 10 antes da adoção dos algarismos indo-arábicos). Outra mudança de vulto foi a retirada da letra “tviordy znak”, o sinal duro, do final de palavras que terminavam em vogal dura, em contraposição às que terminavam em “miagki znak” (Ь ь), o sinal brando; de fato, ambas as letras primitivamente representavam vogais fracas cujo som real até hoje é motivo de debate. Em 1956, quando se traçaram as regras atuais, fixou-se a pontuação, mudou-se a grafia de algumas palavras e regulou-se o uso da letra “iô”, até então oscilante.


A ortografia pré-1918

Eu pressuponho que a leitora ou leitor deste texto já tenha algum conhecimento da língua russa, ou ao menos do alfabeto. Mas creio que a explicação poderá ser acompanhada por qualquer pessoa instruída, com as ocasionais recorrências a material externo. O alfabeto cirílico russo atual possui 33 letras (vocês podem conhecê-las nesta postagem minha, e os acentos aqui presentes são apenas um auxílio à pronúncia), mas até 1918 possuía 35. Por quê? Estas duas letras não eram consideradas: “Ё ё” () e “Й й” (i krátkoie, ou i curto). Havia quatro letras que foram depois abolidas: “І і” (и десятеричное, i desiateríchnoie, ou i decimal), “Ѣ ѣ” (ять, iat), “Ѳ ѳ” (фита, fitá) e “Ѵ ѵ” (ижица, ízhitsa). O “i decimal” era contado entre o И (i) e o К (ka), e as outras letras apareciam no fim do alfabeto: Ы, Ь, Ѣ, Э, Ю, Я, Ѳ, Ѵ.

As letras da ortografia antiga contudo, não recebiam os nomes simples que têm hoje (com poucas exceções), mas nomes feitos por palavras que começavam com essas letras. Eles eram os seguintes: аз (az), буки (búki), веди (védi), глаголь (glagól), добро (dobró), есть (iest), живете (zhivéte), земля (zemliá), иже (ízhe), и десятеричное (i desiateríchnoie = І), како (káko), люди (liúdi), мыслете (mysléte), наш (nash), он (on), покой (pokói), рцы (rtsy), слово (slóvo), твердо (tvérdo), ук (uk), ферт (fert), хер (kher), цы (tsy), червь (tcherv), ша (sha), ща (scha), ер (ier = Ъ), еры (ierý = Ы), ерь (ier’ = Ь), ять (iat), э (e), ю (iú), я (iá), фита (fitá), ижица (ízhitsa).

As letras Ё е Й apenas não entravam formalmente no alfabeto, mas eram usadas exatamente como hoje. A grafia “й” era chamada “и с краткой” (i s krátkoi, i com breve/braquia, o mesmo sinal usado hoje sobre vogais breves no ensino de latim). Curiosamente, o izhitsa não foi formalmente abolido, porque no decreto reformador sequer havia menção a ele. Os nomes “ier” das atuais letras tviordy znak (Ъ, sinal duro) e miágki znak (Ь, sinal brando) se devem aos nomes que possuíam quando eram vogais do eslavônio, cujos sons reais hoje são desconhecidos. As duas vogais, que se fundiram no eslavo eclesiástico, eram genericamente chamadas “iers”. Vejam também o nome das duas primeiras letras: az e buki. A combinação delas gerou a palavra “азбука” (ázbuka), um sinônimo de “alfabeto” que também significa “cartilha de alfabetização” e “abecê/abecedário” (como “princípios de um ofício ou atividade”). Embora seja comum os russos usarem hoje “алфавит” (alfavít), azbuka é particularmente usado pra indicar os abecedários cirílicos das línguas eslavas.

Quais eram os sons das letras excluídas do alfabeto, e quando deviam se usar? O “i decimal”, como a letra “iota” do alfabeto grego, servia nos textos medievais pra indicar o número dez (10), ambas por virem na décima posição do abecedário. Daí esse nome inusitado. Em alguns textos anteriores ao século 19, a minúscula chegou a ser escrita com dois pontos em cima (ї), mas a grafia com apenas um seria depois padronizada. O “i decimal”, até 1918, era usado em russo basicamente nos seguintes casos: 1) antes de vogais (que em russo são as letras А, Е, Ё, И, О, У, Ы, Э, Ю, Я, bem como o iat até a reforma) e antes de Й; 2) na palavra “міръ” (mir), com o sentido de “mundo”, “planeta Terra”, em contraste com “миръ” (também “mir”), significando “paz” ou “comunidade agrária”, hoje se usando a grafia “мир” em ambos os casos. No primeiro caso, temos os exemplos de “исторія” (istória, história) e “русскій” (rússki, russo), agora “история” e “русский”.

Em 1918, o “i decimal” foi plenamente substituído pelo izhe (И), hoje chamado simplesmente i. A letra ainda é usada em bielo-russo, ucraniano (que usa também a versão com dois pontos, representando o ditongo “yi”) e nas línguas cazaque e komi. A regra do uso antes de vogal não se aplicava a palavras compostas, como “семиэтажный” (semietazhny, de sete andares) e “восьмиугольникъ” (vosmiugolnik, octógono). Conforme a etimologia popular, o nome da cidade de Vladímir também se escrevia “Владиміръ”, mas mesmo antes da reforma a grafia com И se fixou. No começo de palavra (sempre antes de outra vogal) e entre vogais, seu som era o do “i” semivocálico, hoje representado pela letra Й e pela qual o “i decimal”, nesses casos, foi substituído: іодъ > йод (iod, iodo), маіоръ > майор (maiór, major).

A letra “Ъ ъ” se chama tviórdy znak (sinal duro) no russo moderno, porque é usada somente quando se quer evitar a palatização de uma consoante antes de vogal branda (Я, Е, Ё, Ю), após alguns prefixos – съезд (siézd, congresso), объятие (obiátie, abraço) – e dentro de certos radicais importados – субъект (subiékt, sujeito), адъютант (adiutánt, ajudante de campo). Porém, seu emprego era bem mais amplo antes de 1918, quando atendia, além disso, pelo nome ier (ер), em alusão ao fato de ser uma antiga vogal dura (traseira) no proto-eslavo e no eslavônio. Perdendo seu som antigo, manteve-se na ortografia do eslavo eclesiástico e do russo, na qual jamais era pronunciada. Basicamente, usava-se no fim de toda palavra terminada em consoante (домъ/dom, народъ/naród, врачъ/vrach), exceto se já terminada em “sinal brando” (путь/put, стиль/stil, лань/lan) ou em Й (май/mai, покой/pokói), bem como na palavra “сверхъчувственный” (sverkhchúvstvenny, suprassensível) e no fim de elementos seguidos de hífen (изъ-за, iz-za; контръ-адмиралъ, kontr-admiral).

Fora os casos mencionados ao iniciar o parágrafo anterior (houve um breve intervalo que vou explicar depois), todos os usos descritos acima do tviordy znak foram suprimidos, o que se pode considerar um enorme avanço, dada a quantidade de tinta e o volume de folhas que ocupavam ao mesmo tempo sua compleição larga e seu uso constante! Ainda mais sabendo que há muitíssimas palavras em russo terminadas em consoante simples, todas masculinas... Atualmente, o diário de grande circulação Kommersant ainda utiliza o sinal no fim da palavra, que também serve como abreviação do título: “Коммерсантъ” (“Ъ”). O jornal foi fundado em 1909, mas fechado em 1917 após a censura bolchevique à imprensa, e reaberto em 1989.

A antiga letra mais difícil de se explicar e utilizar é o iat (Ѣ ѣ), talvez o sinal que mais simboliza a Rússia antiga. No eslavônio de Cirilo e Metódio, provavelmente representava o som “iê”, com duração longa, mas pra alguns especialistas seu som equivalia ao do inglês cat, ou seja, um meio-termo entre “á” e “é”. Os que defendem a primeira opção se baseiam na evolução pra “iê” ou “ié” que teve em russo, tcheco e croata, e os favoráveis à segunda citam a evolução sofrida pelo eslovaco e a adoção, por línguas não eslavas, de algumas palavras do proto-eslavo que em eslavônio iam ter iat e naquelas línguas iam ter “a”. Mesmo perdendo seu possível som original na maioria das línguas eslavas, continuou a ser escrita nas diversas variantes do eslavo eclesiástico e, por isso e sobretudo, nas primeiras formas escritas das línguas eslavas orientais, nas quais o iat adquiriu sons próprios. Com o tempo, a própria letra cairia em desuso (no búlgaro, chegou a ser usada até 1945), e em 1918 quase sempre seria substituída pela letra Е (ié) na língua russa. O estudo do uso do iat nos vários idiomas eslavos é uma rica ferramenta de comparação entre a evolução histórica de cada um.

Em que casos se empregava o iat no lugar do ? Cabe dizer, primeiramente, que embora houvesse regras determinadas, com poucas exceções, seu uso devia no essencial ser decorado, assim como o uso do H ou do C/SS em português, e com tal objetivo eram correntes poemas mnemônicos, que continham quase todas as palavras em questão. Era empregado em 128 raízes vocabulares da língua russa, bem como em alguns sufixos e terminações, a começar por um caso bem simples: a terceira pessoa do singular do verbo “быть” (byt, ser, estar, haver), “есть”, hoje só usada no sentido de “há”, “existe(m)” e na construção equivalente ao verbo “ter”, é homófona ao verbo “есть” (iest, comer), por isso o último era grafado “ѣсть”. O atual pronome “все” (vse, todos, todas) também era escrito “всѣ”, enquanto a grafia “все” equivalia ao atual “всё” (vsio, todo, tudo).

O número de ocorrências é indigesto a quem não é iniciada(o), portanto, à leitora ou leitor curioso listo apenas os mais interessantes de saber, lembrando que na maioria dos casos, pra simples leitura, basta trocá-lo pela atual letra :

  • A terminação dos casos dativo e prepositivo no singular: “о столѣ” (o stolé, a respeito da mesa), “въ/къ школѣ” (v/k shkóle, à/para a escola), “о морѣ” (o móre, a respeito do mar), “о счастьѣ” (o schástie, sobre a felicidade). Não substituía o possível Е que existisse no caso nominativo ou acusativo desses e outros nomes. Nomes estrangeiros terminados em Е (pronunciado “é”, e não “ié”), sempre indeclináveis, não usavam iat: “въ кафе” (v kafé, no café/bar), “на шоссе” (na shossé, na estrada/rodovia), “въ фойе” (v foié, na antessala/foyer) etc.
  • As formas oblíquas “мне” (mne), “тебе” (tebé) e “себе” (sebé) dos pronomes pessoais “я” (, eu) e “ты” (ty, tu, você) e do pronome reflexivo “себя” (sebiá), que servem aos casos dativo e prepositivo: “мнѣ, тебѣ, себѣ”.
  • As formas singulares do caso instrumental “кем” (kem), “чем” (chem), “тем” (tem) e “всем” (vsem) dos pronomes “кто” (kto, quem), “что” (chto, o quê), “тот” ou “то” (tot ou to, aquele ou aquilo) e “весь” ou “всё” (ves ou vsio, todo ou tudo), que eram grafadas “кѣмъ, чѣмъ, тѣмъ, всѣмъ”. Em todos os casos do plural dos pronomes “тѣ > те” (te, aqueles/as) e “всѣ > все” (vse, todos/as), também se usava o iat. Notar bem que o prepositivo de “что” (о чёмъ, o chom) e de “весь” ou “всё” (о/обо всёмъ, o/óbo vsiom) já se escreviam com “iô”.
  • O numeral “двѣ > две” (dve, duas), derivados como “двѣсти > двести” (dvésti, duzentos) e “двѣнадцать > двенадцать” (dvenádtsat, doze) e suas formas ordinais também se escreviam com iat.
  • Todos os casos do plural feminino do numeral “обе” (óbe, ambas), ou seja, “обѣ”, “обѣихъ > обеих” (obéikh, acusativo animado, genitivo e prepositivo), “обѣимъ > обеим” (obéim, dativo) etc.
  • A combinação ЕЙ que provenha de sufixação, histórica ou não, bem como os derivados dessas palavras: “индѣецъ > индеец” (indéiets, índio), “индѣйскій > индейский” (indéiski, de índio/adjetivo), “индѣйка > индейка” (indéika, peru), “змѣй > змей” (zmei, dragão, pipa de empinar), “змѣя > змея” (zmeiá, cobra, serpente), “змѣиться > змеиться” (zmeítsia, serpentear, serpear) etc. Por vezes, contra a regra, também se escrevia “копѣйка > копейка” (kopéika, copeque), e em outros casos só se usava o Е.
  • O prefixo “нѣ- > не-” em palavras de sentido indefinido: “нѣкто” (nékto, alguém, um fulano, um tal de, um certo), “нѣчто” (néchto, algo, alguma coisa, um quê), “нѣкій” (néki, um certo, um verdadeiro, um tal de), “нѣсколько” (néskolko, algum, alguns/quantidade), “нѣкогда” (nékogda, outrora, não se sabe quando), “нѣкоторый” (nékotory, algum, um certo) etc. A palavra “некогда” (nékogda) significando “não há tempo (de)” já era grafada como hoje.
  • O prefixo “внѣ- > вне-” com o sentido de “ex-”, “extra-”, “fora”, “não”: “внѣплановый” (vneplánovy, fora dos planos, não planejado), “внѣпартійный” (vnepartíiny, apartidário, suprapartidário, apolítico), “внѣочередной” (vneocherednói, extraordinário) etc.
  • Prenomes e sobrenomes com raízes que exigem o iat, como “Свѣтлана” (Svetlana), “Нѣжинскій” (Nezhinski), “Онѣгинъ” (Onegin), bem como os nomes “Алексѣй” (Aleksei), “Глѣбъ” (Gleb), “Елисѣй” (Ielisei), “Еремѣй” (Ieremei), “Матвѣй” (Matvei), “Рогнѣда” (Rogneda) e “Сергѣй” (Sergei); os gentílicos “нѣмцы” (némtsy, alemães), “печенѣги” (pechenégi, pechenegues, antigo povo da Ásia Central) e o já citado “индѣйцы” (índios, mas nunca indianos); os nomes geográficos “Вѣна” (Viena), “Бѣлгородъ” (Belgorod), “Бѣлградъ” (Belgrado), “Днѣпръ” (Dnepr), “Днѣстръ” (Dnestr), lugares poloneses com “-ie-” e outros; e o mês de abril (апрѣль, aprel).

Eram raríssimos os casos em que o iat se pronunciava como outras vogais, mas eles existiam:

  • Era pronunciado como (e foi trocado por) И (“i”) no pronome pessoal da 3.ª pessoa do plural “они” (oní, eles, elas), que hoje é usado pros três gêneros, mas se escrevia “онѣ” quando se referia apenas ao feminino (elas); quando “они” se referia a substantivos femininos e ao mesmo tempo de outros gêneros, mantinha-se essa forma.
  • Caso idêntico quando se tratava do numeral “одни” (odní, uns, umas), que é o plural dos três gêneros, mas se escrevia “однѣ”, bem como com iat nos outros casos gramaticais, quando se referia a substantivos femininos. Explicando com a grafia atual, isso acontecia quando se usava “uns/umas” com substantivos plurais (pluralia tantum) cujo gênero feminino era depreendido da forma do genitivo plural, que não terminava em “-ов” ou “-ев”: “брюки” (briúki, calças) no nominativo, “брюк” (briuk) no genitivo; “бусы” (búsy, colar) no nom., “бус” (bus) no gen.
  • Por regra, o iat não substituía o Ё, mas dentre as poucas palavras em que isso ocorria (que incluem também os derivados), selecionei: “гнѣзда” (gniózda, ninhos, tocas, covis), “звѣзды” (zviózdy, estrelas), “издѣвка” (izdióvka, escárnio, chacota), “смѣтка” (smiótka, sagacidade, sutileza, jeito) e “сѣдла” (siódla, selas, selins). Após 1918, todos passaram a se escrever com Ё.

Isso sem contar que, além das regras que mandavam evitar o iat perto de certas letras e em certos morfemas e as inúmeras exceções a elas mesmas, muitas vezes não havia acordo entre os acadêmicos sobre o uso dessa letra ou de outras em determinadas palavras! Imaginem a confusão e o hermetismo que não foram abolidos após a revolução...

A letra fitá (Ѳ ѳ) se empregava em palavras russas, que não eram poucas, emprestadas do grego antigo por meio do eslavônio e do eslavo eclesiástico, nas quais se usava a letra “teta” (Θ θ), pronunciada desde os últimos séculos antes de Cristo (e no grego moderno) como o TH do inglês thing e o Z na maior parte da Espanha, ou seja, linguodental. O fita se pronunciava como o “Ф ф” moderno (F), e por ele foi trocado com a reforma, em diversos nomes próprios, topônimos, gentílicos, termos gramaticais, religiosos e científicos. Na primeira grande reforma ortográfica, Pedro 1.º inclusive substituiu em 1707-08 o Ф pelo fita em todos os casos, mas em 1710 a dualidade foi restaurada, até ser de novo eliminada em 1918, desta vez em favor do Ф. Mais de uma centena de nomes próprios do Antigo Testamento, em geral hebraicos e de uso geral raro, também se escreviam com fita.

Eis alguns substantivos na grafia antiga e sua tradução: Аѳанасій (Atanásio), Аѳина (Atena), Варѳоломей (Bartolomeu), Голіаѳъ (Golias), Марѳа (Marta), Меѳодій (Metódio), Пиѳагоръ (Pitágoras), Руѳь (Rute), Тимоѳей (Timóteo), Іудиѳь (Judite), Ѳемистоклъ (Temístocles), Ѳеодоръ/Ѳёдоръ (Teodoro), Ѳеофилъ (Teófilo); Аѳины (Atenas), Виѳлеемъ (Belém), Геѳсиманія (Getsêmani), Голгоѳа (Gólgota), Коринѳъ (Corinto), Мараѳонъ (Maratona), Ѳаворъ (Tabor), Ѳессалоники (Tessalônica), Ѳракія (Trácia); коринѳяне (coríntios), скиѳы (citas), эѳіопы (etíopes); анаѳема (anátema), апоѳеозъ (apoteose), ариѳметика (aritmética), каѳедра (cátedra), киѳара (cítara), левіаѳанъ (leviatã), логариѳмъ (logaritmo), миѳологія (mitologia), орѳографія (ortografia), эѳиръ (éter). Contudo, se o “teta” grego fosse pronunciado como T, e não como F, ele se tornava o “Т т” cirílico: аметистъ (ametista), антипатія (antipatia), тезисъ (tese).

E o ízhitsa (Ѵ, ѵ), coitado, é o café-com-leite dessa história: última letra do alfabeto pré-1918, era tão pouco usado que por vezes aparecia até entre parênteses no abecedário, e as reformas ortográficas nem se incomodavam em excluí-lo explicitamente! Era usado apenas em palavras relacionadas à Igreja, tiradas diretmente do grego antigo, e substituía o “ípsilon” (Υ υ) dessa língua, que antes da era cristã já se pronunciava não mais como o U francês ou o Ü alemão, mas como nosso “i”. Os vocábulos mais comuns eram “мѵро > миро” (míro, crisma/óleo de unção religiosa) e “сѵнодъ > синод” (sinód, sínodo), mas também se encontrava, no início do século 20, em “ѵпакои > ипакои” (ipakoí, canto de missas ortodoxas especiais), “ѵподіаконъ > иподиакон” (ipodiákon, subdiácono), “ѵпостась > ипостась” (ipostás, hipóstase), “полѵелей > полиелей” (polieléi, canto ortodoxo dos salmos 134 a 136 nos ritos especiais) e “сѵмволъ > символ” (símvol, a oração do Credo numa Igreja específica). Até Pedro, o Grande, quis suprimir essa letra, mas até 1802 foi um vaivém de supressões e restaurações, até que desistiram de tirar, de tão rara que era... Na reforma de 1918 esqueceram de mencioná-la, o que não ocasionou sua abolição oficial, mas a restrição da circulação de textos religiosos a fez sumir de fato, substituída pelo И onde fosse o caso.


Mudanças de caráter gramatical

Antes de 1918, as diferenças ortográficas não se limitavam ao uso de letras antiquadas, mas ao modo como se escreviam certos morfemas gramaticais. Os prefixos terminados com a letra З, por exemplo (из-, воз-, раз-, роз-, низ- = iz-, voz-, raz-, roz-, niz-), conservavam-na antes de radicais começados em С (S), enquanto hoje ela também se torna С: “разсказъ > рассказ” (rasskáz, conto), “разсуждать > рассуждать” (rassuzhdát, raciocinar), “возстановить > восстановить” (vosstanovít, restaurar) etc. Os prefixos “без-, через-, чрез-” (bez-, cherez-, chrez-) mantinham a letra final mesmo antes de consoantes surdas: “безполезный > бесполезный” (bespolézny, inútil), “черезчуръ > чересчур” (chereschúr, em demasia, em excesso) etc.

Quando, no nominativo singular masculino, os adjetivos, pronomes, particípios ou numerais terminassem em -ЫЙ ou -ІЙ (hoje -ИЙ), a forma acusativa singular dos masculinos animados e a forma genitiva singular dos masculinos e neutros deveria terminar, respectivamente, em -АГО ou -ЯГО, e não -ОГО ou -ЕГО, como atualmente. Exs. “каждый” (kázhdy, cada, todo) > “каждаго”, hoje “каждого” (kázhdogo); “синій”, hoje “синий” (síny, azul-marinho) > “синяго”, hoje “синего” (sínego). Após Ж, Ч, Ш e Щ, o sufixo -АГО se tornaria -ЕГО, e não -ОГО: “лучший” (lúchshi, o melhor) > “лучшаго”, hoje “лучшего” (lúchshego). Nos demais casos, como os adjetivos em -ОЙ tônico e os pronomes “этотъ > этот” (étot, este) e “самъ > сам” (sam, mesmo, próprio), já se usava a grafia atual: “большой” (bolshói, grande) > “большого” (bolshógo), “этого” (étogo), “самого” (samogó).

Duas terminações de caso que apareciam alternativamente eram -ІЮ junto com o atual -ЬЮ no instrumental singular dos substantivos femininos terminados em -Ь, e -ЬИ junto com o atual -ЬЕ no prepositivo singular dos substantivos neutros com a mesma terminação no nominativo. Exs. “кость” (kost, osso) > “костію”, hoje “костью” (kóstiu); “платье” (plátie, vestido) > “платьи”, hoje “платье”.

Hoje em dia, no nominativo plural, todos os adjetivos têm a mesma terminação nos três gêneros: -ЫЕ (adjetivos duros) e -ИЕ (adjetivos brandos). Mas quando o adjetivo modificava substantivos femininos e/ou neutros, as terminações no plural eram -ЫЯ (dura) e -ІЯ (branda): “русскія пѣсни > русские песни” (rússkie pésni, canções russas), “новыя кресла > новые кресла” (nóvye krésla, poltronas novas), “новыя пѣсни и кресла > новые песни и кресла” (nóvye pésni i krésla, canções e poltronas novas). As terminações -ЫЕ (dura) e -ІЕ (branda) se mantinham antes de nomes masculinos, ou femininos e/ou neutros acompanhados de masculinos: “новые столы” (nóvye stolý, mesas novas), “хорошіе дома > хорошие дома” (khoróshie domá, casas novas), “новые журналы и книги” (nóvye zhurnály i knígi, revistas e livros novos). As mesmas regras valiam pros substantivos plurais (femininos, em especial), como já visto na seção sobre o iat.

O pronome russo “её” (ieió, “неё”/neió após preposições) pode ter hoje três significados: as formas genitiva e acusativa do pronome pessoal “она” (oná, ela) ou a forma possessiva (“dela”, ou “seu/sua/seus/suas” referindo-se a um possuidor feminino). Até 1918, como genitivo e possessivo, escrevia-se “(н)ея”, e como acusativo, “(н)ее”. Exs. “лишиться ея > её” (lishítsia ieió, privar-se dela, gen.), “любить ее > её” (liubít ieió, amá-la, acus.), “ея мужъ > её муж” (ieió muzh, seu marido/o marido dela, poss.).

Essas são, enfim, as principais características da ortografia da língua russa na época do tsarismo, antes de 1918, entre várias outras que a diferenciavam do que se tornaria a norma no período da URSS. Deve-se lembrar que antes da Revolução Russa, também as teorias e práticas eram muito diversas, portanto diferentes autores podiam prescrever diferentes normas, e uma mesma palavra podia aparecer de várias formas em vários textos. Outra característica que vale a pena mencionar, pra quem lê textos antigos, é a ocorrência de -ЪИ- (tviordy znak e “i”), geralmente no encontro entre um prefixo e uma raiz, sendo pronunciado como Ы e assim passado a grafar-se desde 1915: “съиграть > сыграть” (sygrát, jogar um jogo), “предъидущій > предыдущий” (predydúschi, anterior, precedente) etc. Também era comum, e isso eu vi pessoalmente até mesmo em livros soviéticos dos anos 20 e 30, escrever-se “итти” (itti), e não “идти” (idti), como é a norma atual, pro infinitivo do verbo “ir a pé”.


História e conteúdo da reforma de 1918

Como eu escrevi inicialmente, a reforma ortográfica da língua russa não foi uma invenção bolchevique, nem sequer republicana. As primeiras diretivas foram elaboradas em 1904 no seio da Academia Imperial de Ciências, até o trabalho da subcomissão concernente ser aprovado em 1911 e publicado em 1912, mas a reforma só foi anunciada e recomendada em maio de 1917 (sob o Governo Provisório). O decreto tornando definitiva a virada foi publicado e assinado no comecinho de 1918 (pelo calendário ocidental), sob a responsabilidade de Anatoli Lunacharski, Comissário do Povo para a Educação sob o regime comunista, numa iniciativa que sofreu interessante continuidade através de três regimes políticos discrepantes. As mudanças gerais são as já arroladas: retirada das letras fita, iat e “i decimal” (e o sumiço informal do izhitsa); supressão do “sinal duro” após consoantes finais e sem função separadora; regulação do uso de С e З no final de prefixos; transformação das terminações adjetivas masculinas e neutras -АГО em -ОГО ou -ЕГО, e -ЯГО em -ЕГО, e das terminações adjetivas femininas e neutras -ЫЯ e -ІЯ em -ЫЕ e -ИЕ; supressão das formas particulares femininas “онѣ”, “однѣ” e derivadas (agora “они”, “одни” etc.); e fusão das formas pronominais femininas “(н)ея” e “(н)ее” em “(н)её”.

Na prática, também se alteraram normas de gramática e pronúncia, pois por vezes as formas abolidas de “они”, “одни” e “(н)её”, seguindo a etimologia do eslavo eclesiástico, também eram diferenciadas na fala, sobretudo em poesia. A partir de 15 de outubro de 1918, todos os documentos e publicações do governo saíram na nova ortografia, o que foi facilitado pelo monopólio estatal que foi imposto à imprensa, e não foram aprovados decretos estipulando aulas obrigatórias a quem já dominava a velha escrita. Mas alguns livros científicos relacionados à reedição de obras e documentos antigos, bem como edições cuja preparação começou antes da revolução, ainda seguiram as regras anteriores até 1929 (à exceção das folhas de rosto e prefácios já atualizados). Do ponto de vista prático, as vantagens da reforma foram evidentes, mas houve quem a criticasse do ponto de vista linguístico, filosófico e estético, e até a associasse aos bolcheviques, mesmo estando fora das discussões políticas. Nas zonas dominadas pelo Exército Branco na guerra civil, a maioria dos textos ainda se imprimia à antiga, e na emigração ocidental apenas nos anos 50 passou-se de todo ao novo, diante da “segunda grande onda” de exilados da URSS.

Notavelmente, após a aprovação da reforma, começou-se a praticar algo que ela não previa, e até mesmo desaconselhava: a substiuição do “sinal duro” (Ъ) por um simples apóstrofo (’), como também reparei em muitos livros da Era Stalin, ou até por um apóstrofo duplo (”) em documentos datilografados. Palavras como “подъём” (podióm, subida, ascensão) e “адъютант”, por exemplo, eram usualmente escritas “под’ём” e “ад’ютант”. O uso do apóstrofo com função separadora é a regra oficial nas línguas bielo-russa e ucraniana.


Retificações feitas em 1956

Ao longo dos anos 30, resoluções oficiais trouxeram mudanças pontuais na hifenização, abreviação e pontuação, em 1934 a letra Й entrou no alfabeto logo após o И (mas de fato, muito poucas palavras começam em “i curto”) e em 1938 foi proibido o uso do apóstrofo com função de “sinal duro”. No texto da reforma de 1918, dizia-se apenas que o uso da letra Ё quando o Е era pronunciado “iô” era “desejável, porém não obrigatório”, mas em 1942 o Ё entrou oficialmente no alfabeto e seu uso se tornou obrigatório. De fato, pouquíssimas palavras começam em “iô”, e as palavras com as duas versões, com ponto e sem ponto, são misturadas na mesma seção do dicionário. Finalmente, em 1956, o uso do Ё, ou seja, dos pontos em cima do Е, tornou-se facultativo com a finalidade de indicar a pronúncia correta (e muitas publicações atuais sequer fazem a distinção).

Outra mudança adotada em 1956 foi a obrigatoriedade do uso do hífen em nomes compostos de cores (como “светло-жёлтый”, svetlo-zhólty, amarelo-claro), e sua eliminação em nomes geográficos (como “Чехо-Словакия”, Tchecoslováquia, hoje “Чехословакия”, е “Юго-Славия”, Iugoslávia, hoje “Югославия”). Além disso, modificou-se a ortografia de diversas palavras individuais, como a já mencionada “итти”, que virou de vez “идти”, e reduziu-se o número de casos em que se deviam obrigatoriamente usar as terminações -у/-ю no genitivo singular dos substantivos masculinos, ao invés do -а/-я regulares. A normatização mais relevante, obviamente, foi a normatização do alfabeto cirílico russo com 33 letras (10 vogais, 20 consoantes, uma semivogal e dois sinais sem som próprio – “duro” e “brando”) como conhecemos e aprendemos na atualidade.


Bragança Paulista, 4-5 de novembro de 2017