As palavras voam, mas os escritos ficam, já dizia Michel Temer. Se o seminário onde estudou o jovem Ioseb Dzhugashvili fosse de confissão romana, talvez ele tivesse aprendido esse ditado latino e jamais se entregado a arroubos elogiosos a colegas revolucionários que no futuro poderiam lhe dar as costas. O agora Iosif Stalin não imaginava que sua aprovação do comando militar de Leon Trotsky na Revolução de Outubro se eternizaria no periódico Pravda e seria desenterrada por futuros historiadores xeretas.
Em novembro de 1918, celebrando o aniversário da vitória bolchevique, o georgiano deixou à posteridade um relato fresco muito interessante sobre o desgaste final do Governo Provisório sucedâneo ao tsarismo e a luta armada que levou os comunistas ao poder. Até aí tudo bem. O texto só se tornaria estranho quase 100 anos depois por conta de seu reconhecimento, certamente sincero e sem dúvida justo, do papel do ex-menchevique ucraniano no êxito da revolta, sendo que ao longo dos anos 1920 os dois protagonistas travariam uma luta encarniçada pelo poder definitivo após a morte de Vladimir Lenin. Essa rixa gerou o primeiro grande racha do mundo comunista e acostumou o mundo a ver Stalin e Trotsky como antípodas desde sempre.
Dialética é enxergar as coisas além de suas aparências, em suas relações internas complexas e quase sempre contraditórias. Um mundo dividido em polos estanques é modelo do empirismo cego, e não por acaso chamado de “dialética” na língua cifrada do marxismo-leninismo triunfante na URSS. A informação que Hélène Carrère D’Encausse oferece nas páginas 123 e 124 de seu livro L’URSS de la Révolution à la mort de Staline, 1917-1953 (Paris, Seuil, 1993), de que em 1918 Stalin teria ressaltado o papel de Trotsky na Revolução de Outubro em artigo do Pravda, me fez parar a leitura e ir logo vasculhar a rede. Bastaram alguns minutos para descobrir que o artigo não somente existia, mas também havia sido adulterado para entrar nas Obras completas do líder. Os escritos ficam, e se ficam, o bicho come.
Em 6 de novembro de 1918, o jornal Pravda publicou em sua edição 241 o artigo de Stalin “Октябрьский переворот” (Oktiabrski perevorot), cujo título já faz pensar: a palavra perevorot, por exemplo, pode ser traduzida como “reviravolta”, “revolução” (na ciência, por exemplo), “golpe” (de Estado ou militar, por exemplo) ou “mudança” (política, por exemplo). Ora, Outubro foi um golpe ou uma revolução? No corpo do texto das duas versões a palavra só aparece uma vez, onde foi cômodo traduzir por “revolução”; mas notavelmente, apenas na segunda versão aparece duas vezes a expressão Oktiabrskoie vosstanie (Insurreição de Outubro), com direito a inicial maiúscula. Parece que no calor dos inícios Stalin ainda não tinha decidido criar a memória da “Grande Revolução Socialista de Outubro”, nem quis fazê-lo tão explicitamente a posteriori nos anos 1940. Assim, eu daria à tradução o título flexível e alusivo de “Revolução em outubro”.
Em essência, julguei que as alterações menores no texto das Obras completas estavam para trazer maior precisão, facilitando o entendimento, e mesmo o parágrafo que mudou de lugar corrige algo que realmente estava errado: o Governo Provisório só capitulou em definitivo entre a madrugada e a manhã de 26 de outubro (8 de novembro), e não na manhã de 25 de novembro. Porém, um novo parágrafo inicial abala o conjunto, provocando a impressão de inevitabilidade da revolta (ou golpe, ou revolução?) ante fatores relacionados à crueza da “reação”, consoante ao relato da Grande Revolução já canonizado. Mais chocante ainda é o último parágrafo dividido em dois: três figuras fundadoras desaparecem, enquanto o soviete e as tropas de Petrogrado sob a liderança de Trotsky perdem sua importância. Agora, é ler para crer.
Coloquei abaixo, completa, apenas a primeira versão, que contém minhas notas explicativas e uma das notas que aparecem nas Obras completas. Em seguida, adicionei os parágrafos modificados, separados do texto, com a outra nota das Obras completas, deixando para explicar as alterações menores nas próprias notas. A primeira versão em russo pode ser lida nesta página publicada pelo site contestador “Skepsis”, mas ela não indica todas as alterações. A segunda versão em russo foi publicada no tomo 4 das Obras completas (Moscou, OGIZ/Gospolitizdat, 1947), pp. 152-154, e também pode ser lida na rede. Na Wikipédia em russo também há um exemplar da primeira versão, com diferenças na paragrafação.
Já no fim de setembro o Comitê Central (CC) bolchevique decidiu mobilizar todas as forças do partido para organizar uma insurreição vitoriosa. Para isso, o CC resolveu formar um Comitê Militar Revolucionário em Petrogrado, (1) conseguir que a guarnição dessa capital aí ficasse e convocar o Congresso Pan-Russo dos Sovietes. Esse congresso podia ser o único herdeiro do poder. Sem dúvida a conquista prévia dos Sovietes (2) de Moscou e Petrogrado, os mais influentes na retaguarda e no front, estava no plano geral de organização insurrecional.
Via Operária, (3) o órgão central do partido, obedecendo às instruções do CC, começou a conclamar abertamente à insurreição, preparando os operários e camponeses para a batalha decisiva.
A primeira rixa (4) com o Governo Provisório ocorreu por terem fechado o (5) Via Operária. Por ordem desse governo o jornal foi fechado, e por ordem do Comitê Militar Revolucionário ele foi aberto pelo caminho da revolução. (6) Tipografias foram fechadas, comissários do Governo Provisório foram demitidos. Foi em 24 de outubro.
Em 24 de outubro, (7) em toda uma série de repartições públicas centrais, comissários do Comitê Militar Revolucionário expulsaram pela força representantes do Governo Provisório, o que fez essas repartições caírem nas mãos do comitê e todo o aparato do governo se desorganizar. Ao longo do dia (24 de outubro) toda a guarnição, todos os regimentos (8) se aliaram decididos ao Comitê Militar Revolucionário – exceto apenas algumas escolas de cadetes e a divisão blindada. A conduta do Governo Provisório revelava indecisão: somente à noite ele decidiu ocupar as pontes com batalhões de choque, tendo conseguido elevar algumas delas. Em resposta, o Comitê Militar Revolucionário movimentou guardas-vermelhos do bairro Vyborg (9) e marinheiros que, tendo liquidado e dispersado os batalhões de choque, ocuparam as mesmas pontes. Neste momento começou a insurreição aberta: toda uma série de regimentos (10) foi deslocada com a missão de cercar todo o entorno do espaço onde ficam o estado-maior e o Palácio de Inverno. O Governo Provisório estava reunido no palácio. A união da divisão blindada ao Comitê Militar Revolucionário (na alta madrugada de 24 de outubro) acelerou o bom êxito da insurreição.
Em 25 de outubro, de manhã cedo, após o bombardeio do Palácio de Inverno e do estado-maior, após o tiroteio entre tropas dos sovietes e cadetes diante do palácio, o Governo Provisório capitulou.
Em 25 de outubro se abriu o Congresso dos Sovietes, ao qual o Comitê Militar Revolucionário transmitiu o poder conquistado.
Quem animou a revolução do começo ao fim foi o CC do partido, chefiado pelo camarada Lenin. Vladimir Ilich vivia então em Petrogrado, num apartamento secreto no bairro Vyborg. Na noite de 24 de outubro ele foi chamado para o comando geral do movimento no Instituto Smolny. (11) Todo o trabalho prático para organizar a insurreição se deu sob a liderança direta do camarada Trotsky, presidente do Soviete de Petrogrado. Pode-se dizer com segurança que pela rápida união da guarnição ao Soviete e pela hábil realização dos trabalhos do Comitê Militar Revolucionário, o partido deve antes de tudo e principalmente ao camarada Trotsky. Os camaradas Antonov (12) e Podvoiski (13) foram os principais ajudantes do camarada Trotsky.
A segunda versão tinha ainda o subtítulo “24 e 25 de outubro de 1917 em Petrogrado”, e antes do primeiro parágrafo original foi adicionado este:
Eis os acontecimentos mais importantes que precipitaram a Insurreição de Outubro: a intenção do Governo Provisório, após ceder Riga, de ceder também Petrogrado, a preparação do governo Kerenski para se transferir a Moscou, a decisão dos comandantes do velho exército de enviar toda a guarnição de Petrogrado ao front, deixando a capital indefesa, e finalmente o trabalho febril do congresso negro, (14) chefiado por Rodzianko (15) em Moscou, para organizar a contrarrevolução. Tudo isso, somado à crescente ruína econômica e à indisposição do front a continuar na guerra, determinou a inevitabilidade de uma rápida e áspera insurreição organizada como única saída à situação criada.
Os dois parágrafos que começam com “Em 25 de outubro” tiveram a ordem invertida, e a redação do primeiro (que se tornou segundo) passou a ser esta, poucas alterações:
Em 26 de outubro, de manhã cedo, após o bombardeio do Palácio de Inverno e do estado-maior pelo cruzador Aurora, após o tiroteio entre tropas dos sovietes e cadetes diante do palácio, o Governo Provisório capitulou.
Agora, o fatídico último parágrafo que virou dois:
Quem animou a revolução do começo ao fim foi o CC do partido, chefiado pelo camarada Lenin. Vladimir Ilich vivia então em Petrogrado, num apartamento secreto no bairro Vyborg. Na noite de 24 de outubro ele foi chamado para o comando geral do movimento no Instituto Smolny.Papel destacado na Insurreição de Outubro tiveram os marinheiros do Báltico e os guardas-vermelhos do bairro Vyborg. Ante a excepcional coragem dessa gente, a guarnição de Petrogrado se limitou principalmente a dar apoio moral e, em parte, militar aos combatentes de vanguarda.
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(1) Em russo, “Piter”, até hoje um nome informal de São Petersburgo (Petrogrado, de 1914 a 1924).
(2) Na segunda versão: “Sovietes de Deputados”.
(3) [Nota 34 das Obras de Stalin, pp. 421-422] “Via Operária” (Rabochi Put) – Órgão central impresso do partido bolchevique, lançado após o Pravda ter sido fechado pelo Governo Provisório durante as Jornadas de Julho de 1917. Publicado de 3 de setembro a 26 de outubro de 1917, Via Operária tinha como redator-chefe I. V. Stalin.
(4) Na segunda versão: “A primeira rixa aberta”.
(5) Na segunda versão: “fechado o jornal bolchevique”.
(6) A adição de uma pequena partícula na segunda versão ressalta a ideia de reviravolta súbita, e a frase poderia ser assim retraduzida: “Por ordem desse governo o jornal foi fechado, mas por ordem do Comitê Militar Revolucionário logo foi aberto pelo caminho da revolução.”
(7) Lembrar que até 1.º de fevereiro de 1918 a Rússia usava o calendário juliano, que tinha um atraso de 13 dias em relação ao calendário gregoriano usado em todo o Ocidente.
(8) Na segunda versão: “regimentos em Petrogrado”.
(9) Em russo, “Vyborgskaia storona”. Além de várias outras acepções, a palavra storona também designava naquela época algumas regiões de São Petersburgo.
(10) Na segunda versão: “regimentos nossos”.
(11) Em russo, apenas “Smolny”, subentendendo-se que era o instituo de educação de moças nobres transferido em outubro de 1917 para Novocherkassk, cujo prédio vazio serviu de quartel-general para os bolcheviques insurretos e, até a transferência da capital para Moscou, foi estado-maior e residência do governo bolchevique, inclusive de Lenin. Atualmente pertence à administração regional.
(12) Vladimir Aleksandrovich Antonov-Ovseienko (1883-1938), ex-menchevique, um dos organizadores do assalto ao Palácio de Inverno na Revolução de Outubro ao lado dos bolcheviques, ocupou vários cargos na administração e diplomacia soviéticas. Aliado de Trotsky na oposição, foi cônsul-geral em Barcelona durante a Guerra Civil Espanhola e, mais tarde, preso e fuzilado pelo NKVD.
(13) Nikolai Ilich Podvoiski (1880-1948), bolchevique desde 1903, foi um dos organizadores militares da Revolução de Outubro e primeiro comissário de assuntos militares da Rússia soviética. Proeminente no Partido, presidiu o Sportintern (seção esportiva da Internacional Comunista), atuou em Outubro de Eisenstein no papel de si mesmo e desde 1935 prosseguiu na propaganda do regime.
(14) [Nota 33 das Obras de Stalin, pp. 421-422] Congresso negro – conferência ocorrida em Moscou de 12 a 14 de outubro de 1917 e presidida por Rodzianko. Nela participaram grandes latifundiários, industriais e usineiros, representantes do clero, generais e oficiais. A conferência se deu sob o signo da unificação das forças contrarrevolucionárias no combate ao bolchevismo e à crescente revolução.
(15) Mikhail Vladimirovich Rodzianko (1859-1924), militar e político do Império Russo, um dos fundadores do partido outubrista (grandes proprietários de terra liberais e moderados que pregavam a limitação dos poderes do tsar), tentou defender a manutenção da monarquia e participou do Governo Provisório até outubro de 1917. Após ter estado no Exército Branco, morreu no exílio.