quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Trotsky – Aos trabalhadores da URSS


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Este é um dos últimos textos de Leyba Bronshteyn (Leon Trotsky) que estava guardado em meus backups aguardando tradução. Como disse antes, muita coisa desse período, vinda das mais variadas personalidades, não achei digna de traduzir e apenas transferi os originais pra minha biblioteca pública. Porém, um texto do dissidente ucraniano me chamou a atenção e decidi trazer uma versão em português: trata-se da “Carta aos trabalhadores da URSS” (Письмо рабочим СССР), escrita em março de 1929 e publicada em Paris, em julho seguinte, na primeira edição (n. 1-2) do Boletim da Oposição (bolcheviques leninistas).

É preciso rolar um pouco pra baixo a referida página até acharmos a carta em questão. Porém, o site como um todo é um grande portal de referência sobre a obra e a militância de Trotsky, e se você sabe russo, pode se deliciar com os originais disponíveis! O estudo do Boletim da Oposição diretamente do original seria uma atividade tão saudável quanto a exploração de suas Obras completas, caídas em domínio público e também digitalizadas há poucos anos. Não sou um fã de Trotsky nem do regime soviético como um todo, mas a leitura de seus escritos é tão mais saudável quanto seus atuais “detratores”, em geral stalinistas sem erudição, se valem de um mero copia-e-cola da propaganda da década de 1930 e a usam como “material primário confiável”.

O boletim dos exilados foi publicado em russo até o n. 87 de agosto de 1941, sucessivamente em Paris, Berlim, Paris de novo (nazismo obrigando) e enfim Nova York (após invasão alemã da França). Entre outras figuras, nele também contribuiu Christian Rakovski, soviético de etnia búlgara também imolado por Stalin, biografado genialmente por Pierre Broué e que me foi apresentado pelo prof. Alvaro Bianchi. Mantive um estilo mais formal do português e adicionei explicações entre colchetes, abrindo uma única nota de rodapé excepcional.

Ainda sobre a tradução, a palavra russa “rabóchi” pode ser traduzida mais estritamente como “operário”, mas no texto inteiro, inclusive no título, acabou ficando “trabalhador” mesmo. Trotsky assina de “Constantinopla”, que não hesitei em atualizar como Istambul, onde ele viveu parte de seu exílio iniciado em 1929. Por fim, onde se encontrar “PC da URSS”, é minha tradução, e igualmente a mais consagrada, de “VKP”, significando “KP” Partido Comunista e “V” vsesoiúznaia, ou seja, “de toda a União” (ou apenas “soviético”, se quiser). “PCUS”, tradução literal da sigla “KPSS”, refere-se apenas ao partido a partir de fins de 1952.



Caros camaradas!

Escrevo-lhes para lhes dizer mais uma vez que os Stalin, os Iaroslavski & Cia. estão os enganando. Estão lhes dizendo que recorri à imprensa burguesa para travar uma luta contra a República Soviética, em cuja formação e defesa trabalhei de mãos dadas com Lenin. Estão os enganando. Eu recorri à imprensa burguesa a fim de defender os interesses da República Soviética contra a mentira, o engano e a traição de Stalin et caterva.

Estão os mandando condenar meus artigos. Acaso vocês os leram? Não, vocês não os leram. Estão lhes dando uma tradução mentirosa, forjada de pequenos trechos isolados. Meus artigos foram publicados em russo numa brochura individual do jeito exato em que eu os escrevi. Exijam que Stalin os reimprima sem abreviações nem falseamentos! Ele não terá coragem. É mais provável que ele tema a verdade. Quero expor aqui o conteúdo básico de meus artigos.

1. Na resolução da GPU sobre meu exílio, afirma-se que lidero a “preparação de uma luta armada contra a República Soviética”. No Pravda, as palavras sobre uma luta armada foram omitidas. Por quê? Porque no Pravda (n. 41, 19 de fevereiro de 1929) Stalin não ousou repetir o que foi afirmado na resolução do GPU. Porque ele sabia que ninguém acreditaria nele. Após a história com o oficial de Wrangel, após ter sido desmascarado o agente provocador enviado secretamente por Stalin para propor aos oposicionistas uma conspiração armada, depois de tudo isso ninguém acreditará que os bolcheviques leninistas que desejam convencer o partido da justeza de suas visões estejam preparando uma luta armada. Foi por isso que Stalin não teve a coragem de mandar publicar no Pravda o que foi afirmado na resolução da GPU de 18 de janeiro. Mas afinal, em tal caso, de que serviria inserir essa óbvia mentira na resolução da GPU? Não para a URSS, mas para a Europa, e para o mundo inteiro. Por meio da agência TASS, Stalin cotidianamente colabora sistematicamente com a imprensa burguesa do mundo inteiro, difundido sua calúnia contra os bolcheviques leninistas. De outra forma, Stalin não podia explicar o exílio e as incontáveis prisões como prova da preparação de uma luta armada pela oposição. Com essa monstruosa mentira, ele causou um enorme dano à República Soviética. Toda a imprensa burguesa falou sobre como Trotsky, Rakovski, Smilga, Radek, I. N. Smirnov, Beloborodov, Muralov, Mrachkovski e muitos outros que construíram e defenderam a República estão agora preparando uma luta armada contra o Poder Soviético. Está claro até que grau tal pensamento deve enfraquecer o Poder Soviético aos olhos do mundo inteiro! Para justificar as repressões, Stalin é obrigado a criar narrativas monstruosas que estão causando um dano incalculável ao Poder Soviético. Foi por isso que considerei indispensável falar à imprensa burguesa e dizer ao mundo inteiro: não é verdade que a oposição esteja se preparando para conduzir uma luta armada contra o Poder Soviético. A oposição conduzir e conduzirá uma luta implacável pelo Poder Soviético contra todos os seus inimigos. Essa minha declaração foi reproduzida em dezenas de milhões de exemplares em línguas do mundo inteiro. Ela serve para consolidar a República Soviética. Stalin quer reforçar sua própria situação, enfraquecendo a República Soviética. Eu quero reforçar a República Soviética, desmascarando as mentiras dos stalinistas.

2. Há muito tempo já, Stalin e sua imprensa difundem no mundo inteiro a informação de que eu supostamente teria declarado que a República Soviética se tornou um Estado burguês, que o poder proletário morreu e coisas assim. Na Rússia, muitos trabalhadores sabem que essa é uma calúnia maliciosa, baseada em citações falseadas. Desmascarei essa falsidade dezenas de vezes em cartas que transmiti de mão em mão. Mas a imprensa burguesa mundial acredita nisso ou finge que acredita. Todas as citações falseadas por Stalin passeiam pelas colunas dos jornais do mundo inteiro, demonstrando como se Trotsky admitisse a inevitabilidade da morte do Poder Soviético. Graças ao enorme interesse da opinião pública mundial, sobretudo das amplas massas populares, pelo que está se passando na República Soviética, os jornais burgueses, impelidos por seus interesses mercadológicos, por sua ânsia em circular e pela pressão dos leitores, estão se vendo obrigados a publicar meus artigos. Nesses artigos, afirmei ao mundo inteiro que o Poder Soviético, apesar da política errônea da direção de Stalin, está profundamente enraizado nas massas, é muito forte e sobreviverá a seus inimigos.

Não se deve esquecer que a esmagadora maioria dos trabalhadores na Europa, em especial nos EUA, continuam se informando pela imprensa burguesa. Impus como condição que meus artigos fossem publicados sem quaisquer alterações que fossem. É verdade que determinados jornais em alguns países desobedeceram a essa condição, mas a maioria a obedeceu. Em todo caso, todos os jornais viram-se obrigados a publicar que, apesar das mentiras e calúnias dos stalinistas, Trotsky está convencido da profunda força interior do regime soviético e acredita firmemente que os trabalhadores, por meios pacíficos, conseguirão mudar a atual política mentirosa do Comitê Central.

Na primavera de 1917, Lenin, confinado em seu isolamento suíço, valeu-se do trem “blindado” dos Hohenzollern para lançar-se junto aos trabalhadores russos. A imprensa chauvinista investiu contra Lenin, chamando-o nada menos do que mercenário alemão e “Herr Lenin” [“senhor” em alemão]. Confinado pelos termidorianos no isolamento em Istambul, vali-me do trem blindado da imprensa burguesa para dizer a verdade ao mundo inteiro. Tola em sua devassidão, a investida dos stalinistas contra “Mister Trotsky” constitui uma mera repetição da investida burguesa e socialista revolucionária [ligada aos “SR”] contra “Herr Lenin”. Eu, assim como Ilich e com um tranquilo desdém, encararei a opinião pública dos filisteus e burocratas cuja alma se encarna em Stalin.

3. Em meus artigos distorcidos e falsificados por Iaroslavski, contei como, por que e sob que condições fui expulso da URSS. Os stalinistas estão espalhando na imprensa europeia o boato de que eu teria sido mandado ao exterior por solicitação própria. Também desmascarei essa mentira. Contei que fui expulso para o exterior à força, por meio de um acordo prévio entre Stalin e a polícia turca. E aqui atuei não somente nos interesses de minha proteção pessoal contra calúnias, mas também e antes de tudo nos interesses da República Soviética. Se os oposicionistas visassem deixar as fronteiras da União Soviética, ficaria claro para o mundo inteiro que supostamente teríamos considerado irremediável a situação do governo soviético. Entretanto, não há sequer resquícios disso. A política de Stalin desferiu terríveis golpes não somente na revolução chinesa, no movimento operário inglês e em toda a Comintern, mas também na estabilidade interna do regime soviético. Isso é indiscutível. Porém, a causa não foi abalada de forma alguma. Em nenhuma hipótese a oposição está se preparando para fugir da República Soviética. Recusei-me categoricamente a deixar o país, sugerindo que me trancassem na cadeia. Os stalinistas não ousaram recorrer a esse método, pois temiam que os trabalhadores se obstinassem em obter minha soltura. Preferiram chegar a um acordo com a polícia turca e forçaram minha deportação para Istambul. Expus isso para o mundo inteiro. Cada trabalhador bem-pensante dirá que se Stalin, por meio da TASS, alimenta diariamente a imprensa burguesa com calúnias contra a oposição, então eu era obrigado a agir para desmentir essas calúnias.

4. Em dezenas de milhões de exemplares, contei ao mundo inteiro que fui exilado não pelos trabalhadores russos, não pelos camponeses russos, não pelo Exército Vermelho soviético, não por aqueles com quem conquistamos o poder e combatemos ombro a ombro em todas as linhas de frente da guerra civil; fui exilado pelos apparatchiks que tomaram o poder em suas mãos, se transformaram numa casta burocrática que está ligada pelo encobrimento mútuo. Para defender a Revolução de Outubro, a República Soviética e o nome revolucionário dos bolcheviques leninistas, eu disse para o mundo inteiro a verdade sobre Stalin e os stalinistas. Lembrei mais uma vez que Lenin, em seu “Testamento” cuidadosamente elaborado, chamou Stalin de desleal. Essa palavra é compreensível em todas as línguas do mundo. Ela designa um indivíduo inescrupuloso ou desonesto que é dirigido por impulsos vis em suas ações, um indivíduo no qual não se deve confiar. Foi assim que Lenin caracterizou Stalin, e estamos vendo novamente quão correta estava sua advertência. Para um revolucionário, não há crime maior do que enganar seu próprio partido e envenenar a consciência da classe operária com mentiras. Todavia, nisso consiste a principal ocupação de Stalin. Ele está enganando a Comintern e a classe operária mundial, imputando à oposição ações e intenções contrarrevolucionárias para com o Poder Soviético. Foi exatamente por essa inclinação interna a tal modo de agir que Lenin chamou Stalin de desleal, foi exatamente por isso que ele propôs ao partido remover Stalin de seu posto. Depois de tudo o que aconteceu, é tão mais necessário agora esclarecer perante o mundo inteiro como se expressava a deslealdade, isto é, a falta de escrúpulos e a desonestidade de Stalin para com a oposição.

5. Os caluniadores (Iaroslavski e outros agentes de Stalin) fazem barulho a respeito dos dólares americanos. Em outras condições, é pouco provável que valesse a pena reclinar-se até esse lixo. Mas a imprensa burguesa mais malévola se deleita em revirar a sujeira de Iaroslavski. Para não deixar nada sem esclarecer, também falarei, por essa razão, sobre os dólares.

Transmiti meus artigos à agência americana de imprensa em Paris. Dezenas de vezes, tanto Lenin quanto eu demos a esse tipo de agências entrevistas e declarações escritas com nossas visões sobre essas e outras questões. Graças a meu exílio e a suas circunstâncias secretas, o interesse por esse caso foi colossal no mundo inteiro. A agência esperava ter bons lucros e me propôs metade do ganho. Eu lhe respondi que não pegaria nenhum tostão para mim, mas que a agência deveria, seguindo minha indicação, transmitir metade de seu ganho com meus artigos, e que com esse dinheiro eu editaria em russo e em línguas estrangeiras toda uma série de obras de Lenin (seus discursos, artigos cartas) qte tinham sido proibidas da República Soviética pela censura de Stalin. De forma equivalente, com esse dinheiro publicarei toda uma série de documentos partidários principais (atas de conferências e congressos, cartas, artigos etc.) que são escondidos do partido somente porque escancaram o quão infundado é Stalin em teoria e política. É essa a literatura “contrarrevolucionária” (nas palavras de Stalin e Iaroslavski) que estou preparando para publicação. No tempo devido, será publicado um relatório preciso sobre os valores para isso despendidos. Cada trabalhador dirá que é imensuravelmente melhor usar o dinheiro recebido, na forma de tributo casual, da burguesia para publicar as obras de Lenin do que usar o dinheiro tirado dos trabalhadores e camponeses russos para difundir calúnias sobre os bolcheviques leninistas. Não se esqueçam, camaradas: o “Testamento” de Lenin ainda é considerado na URSS um documento contrarrevolucionário por cuja difusão prendem e exilam. Não é por acaso: Stalin está travando uma luta em escala internacional contra o leninismo. Não sobrou quase nenhum país no mundo onde permanecessem hoje à frente de um partido comunista os revolucionários que lideraram esses partidos no tempo de Lenin. Quase todos eles foram expulsos da Internacional Comunista. Lenin dirigiu os quatro primeiros congressos da Comintern. Elaborei junto com Lenin todos os documentos básicos da Comintern. No 4.º Congresso (1922), Lenin bipartiu comigo o informe básico sobre a Nova Política Econômica [a famosa NEP] e as perspectivas da revolução internacional. Após a morte de Lenin, quase todos os participantes, em todo caso, sem exceção, todos os participantes influentes dos quatro primeiros congressos, foram expulsos da Comintern. Por toda à parte, à frente dos partidos comunistas, encontram-se pessoas novas, aleatórias, que ainda ontem estavam no campo dos adversários e inimigos. Para conduzir uma política antileninista, a primeira coisa necessária era derrubar a direção leninista. Stalin fez isso, apoiando-se na burocracia, nos novos círculos pequeno-burgueses, no aparelho de Estado, na GPU [antecessora do NKVD e, mais tarde, do KGB], nos meios materiais do Estado. Isso se produz não somente na URSS, mas também na Alemanha, na França, na Itália, na Bélgica, nos Estados Unidos, na Escandinávia, resumidamente, em quase todos os países, sem exceção. Somente um cego pode não entender o sentido do fato de os colaboradores e companheiros de luta mais próximos de Lenin no PC da URSS e em toda a Comintern, todos os participantes e dirigentes dos partidos comunistas nos difíceis primeiros anos, todos os participantes e dirigentes dos quatro primeiros congressos terem sido, quase sem exceção, removidos dos postos, difamados e expulsos. Essa luta selvagem contra a direção leninista é necessária aos stalinistas para conduzirem uma política antileninista.

Enquanto os bolcheviques leninistas eram fulminados, o partido era tranquilizado pelo fato de que a partir de então ele seria monolítico. Vocês sabem que o partido está agora mais dividido do que nunca. E isso ainda não é o fim. No caminho stalinista não há salvação. Só é possível conduzir uma política à la Ustrialov [ustriálovskaia] (1), ou seja, consequentemente termidoriana, ou uma política leninista. A posição centrista de Stalin está inevitavelmente conduzindo à acumulação de enormes dificuldades econômicas e políticas e à destruição e esfacelamento definitivos do partido.

Ainda não é tarde para mudar de rumo. É preciso mudar abruptamente e política e o regime partidário no espírito da plataforma da oposição. É preciso cessar a vergonhosa perseguição aos melhores leninistas revolucionários no PC da URSS e em todo o mundo. É preciso restaurar a direção leninista. É preciso condenar e erradicar os métodos desleais, isto é, inescrupulosos e desonestos do aparelho stalinista. A oposição está pronta para ajudar com todas as forças o núcleo proletário do partido a realizar essa tarefa vital. A caçada selvagem, as calúnias nefastas e as repressões estatais não podem obscurecer nossa relação com a Revolução de Outubro ou com o partido internacional de Lenin. Permanecemos ambos [o PC da URSS e a Comintern] fiéis até o fim – nas prisões stalinistas, no desterro ou no exílio.

Saudações bolcheviques

L. Trotsky.
Istambul, 29 de março de 1929.


(1) Referência a Nikolái Vasílievich Ustriálov (1890-1937), jurista, filósofo e político russo, precursor do “nacional-bolchevismo” e fuzilado junto a vários seguidores durante os “grandes expurgos”. Inicialmente um constitucional democrata (“cadete”), entrou para o lado dos “brancos” na guerra civil e por volta de 1921, em Praga, desenvolveu ideias encorajando a imigração a retornar à URSS e aceitar os bolcheviques. Como o novo regime, a seu ver, evoluiria para uma espécie de nacionalismo burguês, preferiu não aderir ao comunismo e se denominou “nacional-bolchevique”, refletindo sua eslavofilia de origem. As ideias de Ustrialov, atacadas por Lenin e Trotsky, ganharam aceitação limitada na URSS nas décadas de 1920 e 1930, e ele mesmo passou anos exilado na Manchúria. Voltou em 1935, tendo depois dificuldades para refazer sua vida (passado “branco” em seu rastro), até finalmente ser mandado para o GULAG.



segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Filha 3 de Putin: “Destruiu minha vida”


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Em 4 de agosto, a imprensa alemã confirmou o que há alguns dias o canal dos colaboradores do finado Aleksei Navalny sugeriram conforme depoimento de conhecidos: a desconhecida filha bastarda de Vladimir Putin critica abertamente a invasão da Ucrânia pela Rússia. Luiza, como é mais conhecida, nasceu em 2003, quando o já sucessor de Boris Ieltsin ainda era casado com a ex, Liudmila, e tinha as filhas jovens Iekaterina e Maria, nascidas na década de 1980.

Ou seja, o maior crítico da “degeneração ocidental” simplesmente “pulou a cerca”: babado radiativo na Eurásia! Há algum tempo eu queria falar sobre ela, e finalmente surgiu a oportunidade: após passar um tempo “escondendo a cara” nas redes sociais, “Luiza” (que não está no Canadá... entendeu?) finalmente voltou a se mostrar, mas num grupo fechado do Telegram. Ela tem também um Instagram privado, caso você queira tentar...

Me baseei nas versões publicadas no Daily Mail e no Sun (edição EUA), cujos textos são parecidos (o original do Bild é pra assinantes). Traduzi ambas e fiz uma fusão dos dois textos, com imagens tiradas também de outros sites. Reparou que a matéria cita três nomes usados por Luiza (nenhum deles contendo... “Putina”)? A metamorfose, pelo menos, foi uma habilidade puxada do pai, rs.

Por anos, o Kremlin também tentou blindar as duas filhas “legítimas”, que hoje atuam como cientistas usando outros sobrenomes e têm cada vez mais aparecido na TV estatal como “especialistas” entrevistadas. A versão do Sun tem uma surpresa: um vídeo mostrando o rosto de Ivan Putin, que seria, segundo “Dosié”, seu filho mais velho com Alina Kabaieva, ex-ginasta e suposta companheira atual! Eles teriam também o caçula Vladimir, e originalmente não havia imagens suas...



A suposta filha secreta de Vladimir Putin quebrou o silêncio sobre o pai pela primeira vez numa série de publicações enigmáticas nas redes sociais. Ielizaveta Krivonogikh, 22 anos, também conhecida como Luiza Rozova, desabafou sobre um homem que “destruiu” sua vida e revelou seus pensamentos sobre a guerra do ditador na Ucrânia. Luiza, formada em arte, DJ e moradora de Paris, fez alusão ao “homem que tirou milhões de vidas e destruiu a minha”. As publicações não mencionam Putin explicitamente, mas no contexto de relatos generalizados sobre as ações de seu pai na guerra e sobre sua identidade, suas palavras foram inferidas como uma repreensão amarga ao líder.

Luiza também publicou uma selfie sua num carro, com a legenda: “É libertador poder mostrar meu rosto ao mundo novamente. Isso me lembra quem eu sou e quem destruiu minha vida”, relata o Bild, que tem acesso ao “Art of Luiza”, canal privado da moça no Telegram. Em seu Instagram, Luiza fazia questão de esconder o rosto, mas ultimamente voltou a compartilhar fotos suas por inteiro. Ela não especifica quando ou onde foram tiradas, mas a mais recente foi nos últimos dias, numa filial da rede de cafeterias russa Surf Coffee.



Luiza nasceu em 3 de março de 2003, em São Petersburgo, e acredita-se que seja filha de um caso entre Putin e sua ex-faxineira Svetlana Krivonogikh, sancionada pelo Reino Unido em 2023 e, segundo a mídia russa independente, integrante do círculo íntimo de Putin. As alegações sobre a identidade de seu pai foram tornadas públicas pela primeira vez pelo projeto investigativo anti-Kremlin “Proekt” em 2020. Krivonogikh teria obtido, em circunstâncias desconhecidas, uma fortuna considerável após o nascimento de Luiza, alimentando especulações de que o dinheiro teria vindo de Putin pra comprar seu silêncio. Embora a certidão de nascimento de sua filha omita o nome do pai, ela menciona seu patronímico “Vladimirovna”, uma pista sobre suas possíveis origens.

Luiza já teve contas de mídia social publicamente visíveis na Rússia, que a mostravam viajando pelo mundo em jatos particulares, tocando em clubes exclusivos e usando roupas de grife. Mas então, pouco antes da Rússia invadir a Ucrânia, sua conta foi repentinamente excluída. Ela se mudou pra Paris e se formou na Escola de Gestão Cultural e Artística do ICART em junho de 2024. Ao deixar a Rússia, ela escreveu no Instagram: “Não consigo dar uma volta extra em minha amada São Petersburgo. Não consigo visitar meus lugares e estabelecimentos favoritos.” No entanto, mais de três anos após a invasão inicial da Rússia, Luiza ressurgiu nas redes sociais com uma imagem completamente diferente. Ela parece ter se tornado mais política e falou abertamente contra a guerra na Ucrânia, ao mesmo tempo em que denunciava o luxo.



A suposta filha de Putin também adotou o nome Ielizaveta Rudnova, supostamente inspirado em Oleg Rudnov, um dos falecidos comparsas de Putin, numa tentativa de esconder sua verdadeira identidade. Há relatos de que ela estaria trabalhando na L Galerie (em Belleville) e na Espace Albatros (em Montreuil), ambas galerias de arte em Paris que sediam exposições antiguerra. Dizem que seu papel como gerente de galeria inclui ajudar a organizar exposições e fazer vídeos. Mas a tentativa de Luiza de se inserir nos círculos dissidentes de Paris não ocorreu sem resistência.

A artista Nastia Rodionova, que fugiu da Rússia em 2022, fez uma declaração furiosa e cortou laços com as duas galerias às quais Luiza é associada. Em publicação no Facebook, escreveu: “É importante dizer que acredito na presunção de inocência e que os filhos não são responsáveis pelos crimes de seus pais. Mas com a guerra atingindo seu ápice, é inadmissível permitir que uma pessoa que vem de uma família de beneficiários do regime [de Putin] entre em confronto com as vítimas desse regime. Precisamos saber com quem estamos trabalhando e decidir se estamos prontos pra isso. Minha resposta pessoal neste caso é não.”

Luiza defendeu sua posição e escreveu: “Sou realmente responsável pelas atividades de minha família, que nem consegue me ouvir?” Dmitri Dolinski, diretor da L Association, que controla o Studio Albatros e a L Galerie, apoiou o engajamento de Luiza. Ele disse ao Times: “Ela se parece com Putin, mas outras 100 mil pessoas também se parecem. Não vi nenhum teste de DNA.” Outros colegas a apoiaram, chamando-a de “pessoa culta” e “excelente trabalhadora”. Mas Rodionova reagiu, insistindo que as vítimas da guerra não deveriam ser forçadas a dividir o espaço com ninguém ligado ao regime, seja ela suposta filha ou não.





segunda-feira, 28 de julho de 2025

O semipresidencialismo da França


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Trago aqui dois artigos da Rádio França Internacional (RFI) muito interessantes pra entendermos o sistema político da França, que é chamado “semipresidencialista”, em que presidente e primeiro-ministro compartilham várias funções e que, por isso, se distingue do presidencialismo (Brasil, EUA etc.) e do parlamentarismo (várias monarquias ou repúblicas europeias). O primeiro se chama “Seis perguntas pra entender o regime semipresidencialista na França”, escrito por Olivier Favier e publicado em junho de 2022, época em que Emmanuel Macron foi reeleito presidente do país. O segundo se chama “Os poderes do presidente, uma história francesa”, escrito por Arnaud Jouve em abril de 2017 (antes da primeira eleição de Macron) e reeditado cinco anos depois.

Eu mesmo fiz as traduções e não vou indicar novamente o título de cada artigo, separando os dois por uma ilustração. Mantive os links apenas quando achei necessário e caso eles ainda funcionassem, e observações minhas estão entre colchetes. Nem sempre fui totalmente literal e muitas vezes adaptei o texto a meu próprio estilo ou a expressões mais naturais em português, sem com isso prejudicar o sentido. Igualmente, substituí o “presente histórico” pelo pretérito perfeito dos verbos quando possível e não mexi na divisão de parágrafos, mantendo-os mesmo se parecessem longos demais.

Estando nós no fim de julho de 2025, e não em meados de 2022, cabe lembrar que, após as eleições desse ano, Macron não conseguiu uma maioria parlamentar. Isso o impeliu a dissolver a Assembleia Nacional em 9 de junho de 2024, mas os deputados aliados, comprimidos entre uma esquerda multifacetada e a extrema-direita, se reduziram ainda mais, levando à sucessiva troca de premiês. Mesmo assim, dado o temperamento do presidente, ele não optou pela coabitação, escolheu apenas figuras mais ou menos próximas e, além de apelos à renúncia, quase provocou uma crise de regime.



Desde a instalação da 5.ª República em 1958, o presidente está no centro da vida política. Sua eleição pelo sufrágio universal em dois turnos é de longe aquela em que a abstenção é a mais baixa e segue sendo um marcador essencial da história do país, a ponto de um jurista poder ter falado dele como um “monarca republicano”. A realidade, porém, é mais complexa. Quais são seus reais poderes e responsabilidades? E, sobretudo, como eles se equilibram com os do Parlamento e do governo?

O que é a separação de poderes? As democracias representativas – nas quais os cidadãos delegam por eleição o direito de representar-lhes por um período determinado – são construídas sobre o princípio fundamental da separação dos poderes legislativos, executivos e judiciários. Teorizada na Antiguidade por Tucídides e, depois, pelo filósofo inglês John Locke, conhecemos a separação dos poderes, sobretudo, pela interpretação que dela fez Montesquieu no Espírito das leis em 1748. Ele vangloria seus méritos desta forma: “Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder.” Se a 5.ª república respeita esse princípio, ela é uma das raras constituições a mencionar o Executivo antes do Legislativo. Em outras palavras, a condução da política nacional e a aplicação das leis passam na frente de sua redação, sua adoção e o controle do Executivo.

Por que se fala em regime semipresidencialista? O termo “regime semipresidencialista”, frequentemente associado à 5.ª República, é um conceito de Maurice Duverger, especialista em direito constitucional. Ele designa um regime que incorpora, ao mesmo tempo, características do regime parlamentarista e do regime presidencialista. O primeiro designa os regimes em que a separação dos poderes é flexível, ou seja, baseada no diálogo constante, especialmente entre Governo e Parlamento. Num regime presidencialista, por sua vez, essa separação é estrita: o presidente não é responsável perante o Parlamento e também não pode dissolvê-lo – esse é o regime que vigora nos EUA. A França de hoje corresponde a esse meio-termo. O chefe de Estado é eleito pelo sufrágio universal direto e tem prerrogativas próprias, mas o Governo por ele designado é responsável perante o Parlamento.

O que ocorre quando o presidente não é apoiado por uma maioria na Assembleia Nacional? Com a revisão constitucional de outubro de 2000, o mandato de sete anos foi reduzido a cinco. Portanto, essa nova duração é idêntica à de uma legislatura da Assembleia Nacional. Essa decisão foi tomada num contexto bem preciso. De fato, em 1997, Jacques Chirac dissolveu a Assembleia um ano antes dela terminar seu mandato, visando assegurar uma maioria mais ampla. Foi um erro de cálculo, pois a esquerda ganhou as eleições. O presidente teve que nomear o socialista Lionel Jospin como chefe de Governo até o fim de seu mandato, que também terminou em 2002. Assim, nesse ano, a eleição presidencial precedeu em dois meses as eleições legislativas, um cenário que terminou se reproduzindo a cada cinco anos, até que os dois mandatos, o do chefe de Estado e o da Assembleia, chegassem a seu fim. Em tal conjuntura, o presidente recém-eleito geralmente se beneficia de um estado de Graça, em outras palavras, obtém a maioria absoluta na Assembleia. Mas nem sempre é isso que ocorre.

O que acontece quando o presidente só obtém uma maioria relativa na Assembleia Nacional? Diz-se que a maioria é relativa o grupo ou os grupos que a compõem são inferiores à metade do conjunto dos deputados eleitos. Isso ocorreu duas vezes na história da 5.ª República. Em 1988, o socialista François Mitterrand foi reeleito. Ele dissolveu a Assembleia Nacional, majoritariamente de direita, mas só conseguiu 275 deputados num total de 575. Os 25 deputados comunistas, aliados de seu primeiro mandato, recusaram-se a apoiá-lo. Num discurso que se tornou célebre, François Mitterrand recusou todo alarmismo: “A partir de agora, a situação parlamentar é comparável àquelas da maior parte das democracias europeias, em que o mesmo tipo de problema se apresenta.” Pra fazer suas leis serem votadas, os sucessivos governos socialistas vão precisar encontrar alianças de circunstância a sua esquerda (com o Partido Comunista) ou à sua direita com a União do Centro. Essa política de abertura ao centro também se concretizou pela entrada no Governo de personalidades políticas de centro-direita ou vidas da sociedade civil. Na sequência das eleições legislativas de 2022, Emmanuel Macron se vê confrontado com uma situação muito parecida, diante da recusa do grupo Republicanos, a sua direita, de juntar-se a sua maioria e da coesão da oposição de esquerda reunida na NUPES [NFP desde 2024].

Quais são as prerrogativas do presidente? Como vimos, o presidente pode dissolver a Assembleia Nacional antes do fim da legislatura. Ele nomeia o Primeiro-Ministro, mas só o escolhe se contar com uma maioria na Assembleia. A seguir, ele nomeia os ministros conforme proposta do chefe de Governo. Também é a ele que incumbe demitir o premiê. Ele pode submeter um projeto de lei a um referendo e anunciar ou não que vai renunciar se o resultado do referendo for contrário a suas expectativas. Ele pode, em caso de crise grave, obter os plenos poderes conforme o artigo 16 da Constituição – na prática, esse dispositivo foi ativado uma única vez, em 1961, por um período de cinco meses. Ele nomeia três dos membros do Conselho Constitucional, bem como seu presidente. Se ele dispor de uma maioria relativa e, melhor ainda, absoluta e, portanto, de um governo alinhado a seu programa, ele inicia as reformas que vão ser decididas pelo governo e votadas pelo Parlamento. Em períodos de coabitação, seus poderes ficam reduzidos. Ele segue sendo “chefe das Forças Armadas”, mas suas prerrogativas em matéria de defesa, justiça e diplomacia são partilhadas com o chefe do Governo e os ministros encarregados dessas áreas. Ele preserva o direito de promulgar leis, assinar ordenações e decretos deliberados pelo Conselho de Ministros.

Quais são os poderes do Governo e da Assembleia Nacional? O chefe do Governo é nomeado pelo presidente da República, sendo responsável perante a Assembleia Nacional. Assim, em períodos de coabitação, a Constituição, que via de regra atua em favor do presidente, dá lugar a uma leitura mais favorável ao Primeiro-Ministro. Com efeito, o texto determina que é o Governo que “determina e conduz a política da nação”. Todas as leis, exceto as votadas por referendo, normalmente devem ser adotadas pelo Parlamento, sejam elas de iniciativa sua ou do Governo. Todavia, por uma lei de habilitação, o Parlamento pode permitir ao governo legislar por decreto pra executar seu programa. Assim, o Governo pode demandar sua confiança pra promulgar uma lei sem que ela seja votada pelo Parlamento. A partir daí, a Assembleia dispõe de 24 horas pra apresentar uma moção de censura. Finalmente, é costume do Governo apresentar uma moção de confiança à Assembleia Nacional, por uma declaração de política geral, no período que segue sua nomeação. Se, em caso de coabitação, esse procedimento é sistemático – então, ele toma uma feição de investidura –, ele pode ser evitado quando a maioria é frágil. A partir daí, é menos arriscado deixar ao Parlamento a iniciativa de uma moção de censura se ele desejar derrubar o Governo ao invés de encarar o perigo de frente. Antes de ser votada, uma moção de censura deve ser deposta por no mínimo um décimo dos deputados. A seguir, ela deve ser adotada pela maioria da Assembleia Nacional. Das 58 moções de censura discutidas desde 1958, apenas uma foi adotada. Foi em 1962, em oposição à eleição do presidente da República pelo sufrágio universal direto. Então, o General De Gaulle respondeu dissolvendo a Assembleia. Após as eleições, apoiado numa maioria reforçada, ele renomeou Georges Pompidou, seu Primeiro-Ministro.

[No fim de julho de 2024, pela modalidade apresentada, o número de moções já alcançava as 62. Conforme outra modalidade, invocada pelo próprio premiê, o número chegou a 52, tendo derrubado o governo Michel Barnier em dezembro de 2024.]



A Constituição conheceu diversas evoluções que deram ao presidente, sob a 5.ª República, um lugar primordial no funcionamento das instituições francesas, enquanto ele praticamente não passava de uma autoridade moral sob a 3.ª e a 4.ª Repúblicas. Vamos retraçar a evolução do papel do chefe do Estado através da história republicana, num momento em que a França escolhe um novo presidente.

A história começa após a Revolução de 1789, com a 1.ª República (entre setembro de 1792 e maio de 1804), oficialmente denominada República Francesa. Em 21 de setembro de 1792, os deputados da Convenção, reunidos pela primeira vez, decidiram por unanimidade abolir a monarquia na França e, assim, anunciar uma nova era de governança. Mas oficialmente, a República jamais foi proclamada. Em 22 de setembro de 1792, foi tomada a decisão de datar as atas do ano 1 da República, e em 25 de setembro de 1792 a República foi declarada una e indivisível.

A 1.ª República vai passar por três formas de governo: a Convenção Nacional (1792-1794), o Diretório (1795-1799) fundado pela constituição do ano 3, e o Consulado (1799-1804) originado do golpe de Estado de 18 de brumário [9 de novembro de 1799] e que termina com a coroação de Napoleão 1.º e a instauração do Primeiro Império. Na Constituição do ano 12, precisa-se que o governo da República é confiado a um imperador hereditário. A seguir, o uso do termo República caiu em desuso.

2.ª e 3.ª Repúblicas – A 2.ª República foi o regime político da França de 24 de fevereiro de 1848, data da proclamação provisória da República em Paris, a 2 de dezembro de 1851, com o golpe de Estado de Luís Napoleão Bonaparte. Ela foi sucedida pela Monarquia de Julho e substituída pelo Segundo Império. Essa 2.ª República, original por sua brevidade e pelo fato de ser o último regime a ser instituído como resultado de uma revolução, aplicou pela primeira vez o sufrágio universal (masculino) na França e aboliu definitivamente a escravidão nas colônias francesas.

Sob a 2.ª República, o presidente era eleito por sufrágio universal direto e tinha poderes muito importantes, embora a Constituição não regulasse as modalidades de seus poderes. Ele podia dizer que era responsável perante o povo, e isso bastava pra lhe dar certas responsabilidades. “Sufrágio universal direto e responsabilidades favoreceram a eleição de Luís Napoleão Bonaparte… e a recaída no Império. E isso deixou alguns traços quando se chegou à 3.ª República, que seria talvez a história mais imediata na evolução dos poderes do presidente da República até hoje”, resume Véronique Champeil-Desplats, professora de direito constitucional, que prossegue: “Sob a 3.ª República, o papel do presidente foi envolvido antes de tudo, essencialmente, pelo clima de espera. De fato, após a queda do Segundo Império, ainda não se sabia realmente se seria feita a opção pela República ou se haveria a volta da monarquia.”

As leis que enquadraram o poder até 1875 foram pensadas pra ser provisórias, e as três leis constitucionais de 1875, que definem o quadro da 3.ª República, foram elaboradas pra esperar, pra ver se a direção era rumo a monarquia ou a República. Por essas razões, o estatuto do Presidente era então percebido como o de uma espécie de monarca republicano. Era chamado de presidente da República, mas detinha todos os poderes das monarquias constitucionais. Então, o presidente era poderoso: podia convocar, adiar, dissolver as câmaras, ele tinha a inciativa das leis, o poder regulamentar, podia exigir uma nova deliberação, tinha o poder do indulto...

Mas as coisas vão evoluir. A grande virada da 3.ª República foi a crise de 16 de maio de 1877, com o confronto direto entre o presidente Mac Mahon, um monarquista, e a maioria republicana na Assembleia e no Senado. Essa crise institucional vai conduzir à dissolução da Câmara dos Deputados, mas foi eleita uma maioria republicana. Mac Mahon tomou ciência da nova maioria e se submeteu. Dois anos mais tarde, os republicanos ganharam o Senado, e desta vez Mac Mahon foi obrigado a renunciar, e renunciou. O que era um direito maior do presidente da República, o direito de dissolução e a possibilidade de intervir institucionalmente na vida política, vai desaparecer. Na sequência, o presidente não será mais do que uma autoridade moral. “Um inaugurador de crisântemos”, como se dirá pra zombar dos poderes agora muito limitados do presidente.

4.ª República – No fim da 2.ª Guerra Mundial, foi proposto um referendo aos franceses. Basicamente, foram feitas duas perguntas: “Você aprova o governo provisório que lhe é proposto?” e “Você consente que a Assembleia seja uma Assembleia Constituinte?”. Essa consulta vai estar na origem de uma 4.ª República que, à imagem da Terceira, vai dar ao presidente uma autoridade puramente moral.

Essa “fraqueza” do presidente sob a 3.ª República e sua incapacidade de agir perante a Alemanha foram apontadas pelo general De Gaulle quando a guerra acabou. Nesse momento de sua história, a França estava em total reflexão sobre seu futuro, e foi eleita uma Assembleia Constituinte. Mas essa Assembleia é majoritariamente de esquerda, o que desagrada ao general, que vai fazer uma espécie de contraproposta durante seu célebre discurso de Bayeux proferido em 16 de junho de 1946. Enquanto a Assembleia se orienta na direção de um reforço de seu próprio poder e de um enfraquecimento do poder do executivo, De Gaulle preconiza, inversamente, uma presidência forte, que possa governar mesmo sem ter maioria na Assembleia, ao mesmo tempo querendo manter um elo direto com o povo, sem depender do Parlamento. Mas é preciso esperar até 1958 pra que seu desejo se realize.

5.ª República – No período de abril a maio de 1958, uma sucessão de demissões e de governos postos em minoria quanto à questão da Guerra da Argélia criou situações de bloqueio e de crises. O então presidente René Coty buscou uma saída pra crise chamando o general De Gaulle, que tinha sobre a questão argelina uma imagem de neutralidade igualmente palatável aos partidários da Argélia francesa e aos favoráveis à independência. O general aceitou ser o homem providencial, o presidente do Conselho, impondo como condição a mudança de Constituição. A ideia foi aceita, ele foi empossado pela Assembleia Nacional e pediu que lhe fosse conferido, em 1.º de junho de 1958, o poder de elaborar uma nova Constituição.

A Constituição de 4 de outubro de 1958 introduziu a França numa 5.ª República. Mas ainda foi um colégio de altos políticos, de notáveis, que elegeu o presidente. De Gaulle se tornou o primeiro chefe de Estado dessa 5.ª República, com poderes reforçados pela nova Constituição. O presidente pode, por exemplo, exercer poderes sem ter o aval do governo, entre os quais a dissolução da Assembleia Nacional, a nomeação do primeiro-ministro, os poderes de crise (artigo 16 da Constituição), o recurso ao referendo etc. Mas outra etapa importante vai proteger esse poder presidencial. Como precisa Véronique Champeil-Desplats, depois da tentativa de o assassinarem em Petit-Clamart, o general teria se questionado sobre as condições de eleição do chefe de Estado. “Após o atentado de Petit-Clamart, o general De Gaulle concluiu que sem dúvida seus sucessores não herdariam sua legitimidade, e como os poderes conferidos pelo texto constitucional são importantes, era preciso que o presidente da República tivesse uma legitimidade pessoal, própria e direta […] e ele vai revisar a Constituição pra estabelecer o sufrágio universal direto”. A eleição direta do presidente pelo povo vai reforçar seu poder, dando-lhe um lugar primordial no funcionamento das instituições francesas.

Posteriormente, essa concentração do poder foi reafirmada de diversas maneiras pelos diferentes presidentes que se sucederam sob a 5.ª República. Excetuados os períodos de “coabitação”, em que coexistem um presidente da República e uma maioria política que lhe faz oposição na Assembleia Nacional (como foi o caso nos períodos 1986-1988, 1993-1995 e 1997-2002), ou a diminuição, após o referendo de 24 de setembro de 2000, da duração do mandato presidencial de sete pra cinco anos, o presidente foi se tornando cada vez mais poderoso. É a mais alta autoridade administrativa. Ele zela, usando sua arbitragem, pelo respeito à Constituição e garante o funcionamento regular dos poderes públicos e a continuidade do Estado (artigo 5.º da Constituição). Ele é o chefe das Forças Armadas, seu papel em matéria de defesa é predominante e ele tem a autoridade sobre a força de dissuasão nuclear (artigo 15), sobre a diplomacia (artigo 14) e dispõe de poderes de crise (artigo 16) destinados a salvaguardar a democracia e a restabelecer o funcionamento dos poderes públicos nos melhores prazos.

Rumo a uma 6.ª República? – Essa hiperconcentração do poder presidencial, segundo alguns, é um indício de adoecimento da democracia. Em 2017, enquanto a França escolhia seu novo presidente, vários movimentos políticos tinham expressado o desejo de uma refundação constitucional, visando a uma 6.ª República que repartisse melhor os poderes.

Existem vários projetos. Por exemplo, a 6.ª República preconizada pelo socialista Arnaud Montebourg não era aquela de Jean-Luc Mélenchon, candidato da França Insubmissa (LFI) à presidência em 2017 e, novamente, em 2022. Mas eles partilham uma mesma constatação, como explicava então Paul Allies, professor emérito de ciência política da Universidade de Montpellier e presidente da Convenção pela 6.ª República. “Nos encontramos num ciclo, ainda não interrompido, de reforço sem fim do poder do presidente da República, que pode ser qualificado como presidencialismo, mas de forma alguma como regime presidencialista ou mesmo semipresidencialista, segundo as qualificações passadas ou presentes de alguns. Não nos encontramos de forma alguma num sistema de tipo americano, em que os contrapoderes vêm limitar consideravelmente o poder presidencial, sem falar no federalismo, em que cada Estado da federação constitui um contrapeso ao poder de Washington. Assim, temos na França um sistema oposto, em que nunca terminamos de ver os poderes do presidente se concentrarem e se centralizarem na própria pessoa do presidente.”

Outros, ao contrário, avaliam que a 5.ª República resistiu bem e que uma nova carta magna não tem razão de ser, mesmo que ela possa continuar sendo retocada com o passar do tempo. Segundo esses adversários de uma 6.ª República, a Constituição atual segue sendo notavelmente uma garantia de estabilidade política numa época de incertezas. E seja como for, nenhum dos dois finalistas das eleições presidenciais francesas – Marine Le Pen e Emmanuel Macron – é adepto de uma mudança de Constituição.



sábado, 26 de julho de 2025

Carta de Arlo Tatum a Peiro Catallo


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Aniversário do primeiro manual de esperanto


Por volta de junho de 2015, estava fazendo pesquisas pra meu mestrado no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL/Unicamp), quando uma das funcionárias com quem eu tinha amizade, talvez a Silvia Modena, me disse que havia no acervo alguns materiais de movimentos pacifistas em esperanto, quando soube que eu falava esse idioma. Eram realmente poucas coisas, algumas não catalogadas, mas ajudei Silvia e suas colegas com a tradução do conteúdo, quando muito ao menos pra entender do que se tratava. A ela sou pessoalmente grato por ter, por sua vez, me ajudado várias vezes em que necessitava, e à equipe do AEL em geral por me ter permitido copiar algumas dessas coisas em esperanto – e, tacitamente, publicá-las.

Do que guardei, achei interessante lançar apenas esta carta escrita em 1958 a um certo Peiro Catallo, sobre quem não achei nenhuma informação nos motores de busca comuns (teria havido erro de datilografia?), morador da cidade de São Paulo e falante do esperanto. O remetente era Arlo Tatum (1923-2014), americano radicado no Reino Unido e conhecido por ter liderado diversas organizações pacifistas e antimilitaristas, inclusive a Internacional dos Resistentes à Guerra (WRI), da qual ele era secretário-geral quando escreveu a carta. Fundada nos Países Baixos em 1921 e atualmente sediada em Londres, a WRI (ou IRG) tem como atividades principais a orientação a objetores de consciência, o apoio a movimentos antiguerra não violentos e o combate à militarização juvenil.

Cantor lírico de formação, Tatum dedicou a maior parte de sua vida às atividades antimilitares e pacifistas, mas não se sabe ao certo por que ele escreveu ao cidadão brasileiro (imigrante?) e qual era a função deste no movimento internacional. Fica óbvio que ele é fluente em esperanto, língua que esteve na origem da própria WRI, e além do obituário escrito por sua esposa pro Guardian, há a nota de pesar da WRI. Tendo dado a forma final à tradução no início de julho de 2015, espero que sua publicação possa ajudar um pouco nessa história e, se alguma alma caridosa colaborar, a descobrir quem é Peiro Catallo...

Adendo (3/8/2025): Parece que meu apelo foi ouvido! Uma nobre alma que leu estas linhas e a quem sou muito grato me enviou um e-mail dizendo que provavelmente não há nenhum “Peiro”, mas que pode se tratar de Pedro Catallo (1901-1969). Militante anarquista de São Paulo, deixou extensa obra teatral e textos de crítica social, mas parece ter sido esquecido pelos estudiosos do movimento operário brasileiro. Ainda ativo, o Centro de Cultura Social (CCS), do qual Catallo foi destacado militante, começou a republicar suas obras no primeiro semestre deste ano, mas somente pela propaganda e pelo portal é impossível saber qual era sua relação com o esperanto ou com a WRI/IRG. De fato, o idioma também era popular entre os anarquistas, sobretudo espanhóis, e deixo apenas o link acima disponível pra quem deseje se aprofundar.



28 de abril de 1958

Peiro Catallo,
Rua Cesário Galeno, 430,
Tatuapé - Saõ Paulo [sic], Sp.,
Brasil.


Caro amigo,

Desejei lhe escrever porque a perigosa situação internacional obriga a que nós todos, que pensamos seriamente na questão da paz mundial, colaboremos no objetivo de encontrar soluções pacíficas a esses problemas que nosso mundo enfrenta.

Por isso, a Internacional dos Resistentes à Guerra julga oportuno tentar na atualidade ampliar sua influência no Brasil. Embora nossa organização seja totalmente pacifista e abarque apenas membros pacifistas, damos boas-vindas à cooperação e apoio de todos os que queiram trabalhar efetivamente pela paz mundial. Segue anexa uma folha volante [panfleto] que explica a base de nossa organização.

Atualmente só podemos publicar livretos em esperanto uma vez por ano, em parte porque menos de 600 pessoas em nossa lista de assinantes conseguem usar a língua internacional. Porém, quanto mais crescer o número de pessoas solicitando nossa literatura em esperanto, tanto mais nos será possível publicá-la.

Gostaria de manter contato regular conosco? Nossa publicação trimestral “La Militrezistanto” [“O Resistente à Guerra”] aparece em inglês, francês e alemão. Se você entende alguma dessas línguas, nós a enviaríamos com prazer, juntamente com nossas publicações em esperanto, sempre que elas aparecerem. Temos também um suprimento limitado de material em espanhol.

Peço-lhe que responda a esta carta e nos encoraje em nosso trabalho. Talvez você aproveite para especificar em que língua você gostaria de receber as publicações da IRG. Se recebermos bastantes respostas a esta carta, estou certo de que a IRG desejará muito abreviar o prazo entre nossas publicações em esperanto.

Cordialmente a serviço da paz,



Arlo Tatum
Secretário-Geral



28 Aprilo, 1958

Peiro Catallo,
Rua Cesário Galeno, 430,
Tatuapé - Saõ Paulo [sic], Sp.,
Brasil.


Kara amiko,

Mi volis skribi al vi ĉar la ganĝera [sic; danĝera] internacia situacio necesigas ke ni ĉiuj, kiuj serioze pripensas la problemon de mondpaco, kunlaboru kun la celo trovi pacajn solvojn de tiuj problemoj, kiujn frontas nia mondo.

La Internacio de Militrezistantoj tial sentas ke taŭgas provi plivastigi ĝian influon en Brazilo je la nuna tempo. Kvankam ni estas tute pacifista organizaĵo, kaj la anaro entenas nur pacifistojn, ni bonvenigas la kooperon kaj subtenon de ĉiuj, kiuj volas labori efektive por mondpaco. Enmetita estas flugfolio, kiu klarigas la bazon de nia organizaĵo.

Nuntempe ni povas eldoni libretojn en Esperanto nur unufoje ĉiujare, parte ĉar malpli ol 600 personoj sur nia elsendlisto kapablas uzi la internacian lingvon. Tamen, ju pli la nombro da personoj dezirantaj nian literaturon en Esperanto kreskas, des pli kreskos nia ebleco eldoni ĝin.

Ĉu vi ŝatus regulan kontakton kun ni? Nia kvaronjara eldonaĵo “La Militrezistanto” aperas en la angla, franca, kaj germana lingvoj. Si [sic; se] vi komprenas iun el ĉi tiuj lingvoj, ni plezure sendus ĝin al vi, aldone al niaj Esperantaj eldonaĵoj kiam ajn ili aperas. Ni havas ankaŭ limigitan provizon de materialo en la hispana lingvo.

Mi petas vin, respondu al ĉi tiu letero kaj kuraĝigu nin en nia laboro. Eble vi prenus la okazon mencii en kiu lingvo vi volus ricevi eldonaĵojn de la I. de M. Se sufiĉe multaj respondas al ĉi tiu letero, mi estas certa ke la I. de M. tre deziros mallongigi la tempon inter niaj Esperantaj eldonaĵoj.

Via en la servo de paco,



Arlo Tatum
Ĝenerala Sekretario


quinta-feira, 24 de julho de 2025

Nem perca tempo com esse cara


Endereço curto: fishuk.cc/kobori



Pegou a referência, ordinário???


José Kobori é um renomado e experiente economista, empresário e analista financeiro, tendo trabalhado e lecionado em várias instituições, embora eu mesmo nunca tenha ouvido falar dele. Porém, dado meu interesse em geopolítica e atualidades, cada vez mais cortes de suas participações em “mesacasts” bananeiros me têm sido recomendados pelo YouTube, e muitas vezes o mesmo vídeo aparece sucessivas vezes. Os mais recorrentes são aqueles que têm miniaturas apelativas como “Me arrependi” ou “Fui liberal toda a minha vida”.

Nunca cliquei neles, mas há alguns dias decidi entrar no próprio canal de Kobori e verificar quais seriam suas contribuições originais, sobretudo numa visão de esquerda, pra entender a economia contemporânea. Os primeiros vídeos, então mais recentes, tinham caráter mais político, falando da diplomacia do TACO e da sabotagem do Bananinha, e quanto a isso não discordei em nada; nem mesmo no que tinha de puxação de saco da Jararaca e sua encenação como “arauto da soberania”.

Mas quão grande não foi minha decepção em ver, como um dos interlocutores, Elias Jabbour, passador de pano do Hamas e de Putin e trovador da ditadura chinesa. E na pior provocação: uma blusa ostentando a sigla DDR e o brasão da Alemanha Oriental, um dos países europeus mais repressores do século 20, cujo governo fuzilava quem simplesmente tentava pular o Muro de Berlim. Banalização do stalinismo inaceitável pra quem conhece o Stasi, comparável, portanto, à banalização da tortura cometida pelos militares brasileiros nos “anos de chumbo”:



Também vi um título que mencionava apoio ao ICL, grupo hoje pra mim intolerável por diversas razões. E um vídeo de seis minutos que tinha “Democracia chinesa” como parte do título confirmou minhas suspeitas iniciadas com a presença de Jabbour: Kobori faz parte daquele seleto grupo de intelectuais dedicados à propaganda de ditaduras com coloração “de esquerda” e cujo discurso antiamericano fajuto engana muita gente. Claro que a compreensão da China é muito mais complexa que seu sistema político, até porque a “democracia” tupiniquim não é perfeita, não justificando, porém, sua demolição total. O problema é que ele simplesmente usa os mesmos chavões comunistas que escuto desde o início da década de 2010 no Facebook e, depois, em outras redes, que de tão simplórios nem merecem discussão.

Não vou linkar o vídeo, e você que procure se sentir vontade. Já começa ruim: diz que as “fontes ocidentais” em geral, especialmente a mídia comercial, só passam uma imagem negativa e devem ser descartadas. Certamente ele fala de nosso próprio jornalismo, bastante superficial e pouco erudito, pois no exterior grande parte da mídia liberal, seja privada ou estatal, dá uma imagem muito matizada sem por isso justificar as violações de direitos humanos. Mas quais são as fontes de Kobori, então? Pasme, os apologistas Jabbour e Felipe Durante, além de (ai, historiadores!) “fontes oficiais do governo”. Sim, ele viola um dos princípios mais caros ao próprio Karl Marx, que nos recomenda jamais confiar totalmente no que os próprios personagens de uma época dizem sobre si mesmos...

Um princípio que, além de asqueroso e batido, é completamente ilógico, é reivindicar a “democracia chinesa” (tá, eles não se reivindicam uma democracia “estilo ocidental”, mas vamos poupar neurônios) como superior à “democracia brasileira que só serve ao 1% mais rico da população”. Vamos combinar: ou a democracia existe ou não existe. Ela pode ser imperfeita e deve ser aperfeiçoada em qualquer caso, mas ainda assim é muito melhor do que qualquer ditadura perfeita.

A história mostra que regimes autoritários (comandados por uma pessoa, grupo ou classe) podem trazer prosperidade até certo ponto, mas fracassam em suprimir contradições ou conhecer perfeitamente as necessidades gerais sem ampliar sua audiência. Essa imagem de “democracia pra poucos” recalca o fato de que ela deve ser ampliada, abrigar o máximo possível de diversidade, pois todo grupo de aventureiros que toma o poder “em nome do povo” ou “dos trabalhadores” – já que é impossível todos governarem ao mesmo tempo – inevitavelmente vai se alienar da realidade e cometer excessos injustificáveis.

E como o povo pode não governar, mas pode se fazer ouvido, nada como ler os comentários que Kobori, até agora, não censurou nem filtrou em seu vídeo. Exceto pelo gado que sempre vai mugir conforme o capim com que sonha, as pessoas que ainda conservam seu bom senso e trazem até detalhes bastante reveladores falam por mim. Deixam a mensagem de que certamente, por mais que a “ex-querda” vá o tietar como uma “justificação intelectual” (aquele famoso “Não quero argumentar, tó aqui o link pra você ler ou assistir!”), esse futuro candidato a celebridade política não merece nosso tempo livre:











terça-feira, 22 de julho de 2025

A Revolução Russa (N. Sukhanov)


Endereço curto: fishuk.cc/sukhanov1917

Embora meu primeiro serviço de tradução tenha sido publicado em 2017 na coletânea Manifestos vermelhos e outros textos históricos da Revolução Russa, sob a coordenação de Daniel Aarão Reis (a quem sempre vou ser grato por essa oportunidade), esta semana decidi trazer à página alguns dos textos que foram aí publicados, pois certamente sofreram alguma alteração dos editores e algum dia o livro pode se tornar raridade. Em 2022 eu já tinha publicado minhas traduções que não saíram na coletânea, mas agora trago meus outros originais, ainda que sob o risco de estar infringindo algum direito autoral. Infelizmente, nem todos os documentos em russo me foram fornecidos com a indicação da fonte, portanto, ela quase sempre vai estar ausente, mas quando a base mesma da tradução tiver sido conservada, ela vai aparecer após minha tradução ao português, com a ortografia atualizada.

Hoje encerro a série com trechos selecionados das memórias de Nikolái Nikoláievich Sukhánov (nascido em família alemã com o sobrenome Himmer, 1882-1940), ex-menchevique preso em 1931, deportado pra Sibéria em 1935 e fuzilado sob a duvidosa acusação de colaboração com a espionagem nazista e de “agitação antissoviética”. Engenheiro agrônomo e economista de profissão, foi preso várias vezes pela monarquia por atividades ligadas aos socialistas revolucionários. Sem estar ligado a partidos, se opôs à entrada na 1.ª Guerra Mundial, juntou-se aos mencheviques de esquerda após a revolução e, ao contrário de Iuli Martov, apoiou as negociações de paz. Trabalhou pro Estado bolchevique e passou a apoiar suas posições, mas nunca foi admitido no Partido Comunista.

Sukhanov escreveu de 1919 a 1921 suas famosas Notas sobre a revolução, consideradas um relato fidedigno mesmo por quem discordava do conteúdo. Ele as publicou em sete volumes (em russo) em Berlim, em 1922, mas só em 1955 elas apareceram em inglês, num só tomo e com texto resumido. Por razões que desconheço, me foi enviada parte da tradução francesa dessa edição em inglês, La Révolution russe 1917, datada de 1966 e da qual traduzi. Como não tive tempo de fazer novas revisões, me responsabilizo por eventuais erros ou imprecisões. Qualquer observação é bem-vinda, bastando escolher um dos canais de comunicação que apresento no menu à direita da página.



3. O primeiro dia da revolução começava. [...]

Ao longo da estrada, encontrei destacamentos de soldados sem oficiais, misturados à multidão. Os passantes contavam que esses soldados cediam facilmente seus fuzis e que, em grande quantidade, já se haviam reunido armas nos centros operários. [...]

[...] obtive a principal notícia desta manhã: tendo sido promulgado o ukaz que dissolvia a Duma, esta havia se recusado a aceitar e havia elegido um “Comitê Provisório da Duma”, composto de representantes de todas as frações, exceto da direita.

[...] Esse “Comitê da Duma” havia sido elegido com um único objetivo, declarado publicamente: a “restauração da ordem na capital e das ligações com as organizações e instituições públicas”...

A formação desse comitê era certamente um ato revolucionário do “bloco progressista”, mas de forma alguma significava a adesão da Duma à revolução ou um ato de solidariedade com o povo que atacava a fortaleza do tsarismo.

Ao contrário, apoiando seu bloco progressista, a burguesia só buscava preservar a dinastia dos Romanov e a ditadura plutocrática consolidada.

Com seu ato revolucionário de desobediência, ela esperava controlar o movimento insurrecional, modificar levemente o velho estado de coisas sem pôr em xeque o regime político, e assim salvar o tsarismo.

[...] Rodzianko, o porta-voz do grupo, pôs-se em contato com os principais comandantes militares para pedir-lhes que apoiassem a Duma junto ao tsar.

[...] Por sorte, a própria revolução popular acelerava sua iniciativa de modificar de hora em hora toda a conjuntura política, invalidando os arranjos dos liberais, generais e plutocratas e ultrapassando os horizontes políticos dos burgueses da Duma.

Soube também da história, depois bem conhecida, dos regimentos Volkinski e Litovski cujos homens haviam retomado a ação empreendida pelo Pavlovski; eles foram seguidos pelos homens do regimento Izmailovski. Por volta da uma hora, já se contavam ao lado do povo 25 mil homens da guarnição de São Petersburgo. Os regimentos amotinados se dirigiram à Duma e outra parte das tropas rebeldes seguiu para a prisão de Kresty e para a prisão preventiva para libertar os presos políticos. [...]

Dirigindo-se à Duma, os regimentos Volkinski e Litovski agiam sem um objetivo claro; talvez quisessem demonstrar solidariedade ao “Parlamento Revolucionário” dissolvido pelo tsar, talvez respondessem ao desejo de seus chefes de tornar a Duma, burguesa e patriótica, o centro político do movimento. Em todo caso, até então visivelmente mantida à margem do movimento, a Duma se tornou com esse ato seu centro geográfico e político.

[...]

Os representantes da esquerda – Kerenski, Chkheidze, Skobelev – receberam com discursos de boas-vindas os primeiros soldados da revolução. Os soldados responderam lhes prestando as honras militares. Assim, tomando já uma feição definida, a revolução integrava os elementos que formavam as colunas da antiga ordem, tornava-se popular e nacional no sentido mais amplo do termo.

[...]

Por volta das duas horas, observava-se no palácio de Tauride um grupo político muito diferente: deputados da esquerda, sindicalistas e cooperativistas, militantes socialistas e membros do grupo operário do Comitê Central da Indústria de Guerra, tendo à frente K. A. Gvozdev, libertado naquela manhã pelas unidades insurgidas.

Esses militantes formaram um “Comitê Executivo Provisório do Soviete dos Deputados Operários”, cuja única função era convocar para aquela noite, às sete horas, no palácio de Tauride, os deputados do Soviete eleitos ilegalmente nos dias anteriores, este sem objetivo concreto, mas para encarar toda eventualidade.

[...]

O Comitê Executivo Provisório do Soviete era formado por Gvozdev, Bogdanov, Kapelinski, Grinevich, Chkheidze, Skobelev, Frankorusski e, talvez, algum outro.

Após deixar meu escritório por volta das duas horas, vagueei pelas ruas e observei os atos revolucionários que podia encontrar. Destacamentos militares, com ou sem bandeira vermelha, passavam, rumavam sabe-se lá para onde, participavam de encontros coletivos, fraternizavam com a multidão. Os rostos brilhavam de excitação, porém reinavam uma certa confusão e uma inquietude quanto à situação presente e a seu desfecho. Não se deve esquecer que, entre esses soldados, em regra não havia nenhum oficial, nem mesmo oficiais subalternos. A expectativa de um combate contra as tropas ainda leais aumentava a tensão. Por fim, todos exageravam a importância de certos choques que ocorreram.

[...] viam-se correr pelas ruas carros cheios de homens armados. Além do rio, bem longe à esquerda, colunas de fumaça subiam por sobre a cidade e viam-se as chamas de um grande incêndio. Era o Tribunal Regional que queimava; a multidão enlouquecida o havia saqueado e incendiado simultaneamente à prisão preventiva.

[...] esforcei-me em explicar a Shliapnikov a situação tal como eu a via, mas fiquei convencido, mais uma vez, que os bolcheviques não vislumbravam nenhuma solução e estavam totalmente despreparados para os acontecimentos.

[...] Víamos carros e caminhões ocupados por soldados, operários, estudantes, moças jovens (com ou sem a braçadeira da Cruz Vermelha). Toda essa gente enlouquecida gritava, mexia os braços, certamente não tinham nenhuma noção do que estavam fazendo. Os fuzis eram apontados para os passantes e um tiro acidental podia ser disparado à menor distração.

[...] precipitamo-nos rumo ao palácio de Tauride. Continuava-se ouvindo disparos ao longe. Perto do palácio, a animação era ainda maior. Uma multidão aglomerada, dividida em grupos, espremia-se nas calçadas e no asfalto, não se percebiam oradores nem discursos. Uma longa fila de carros aguardava, homens armados entravam neles, notavam-se também muitas mulheres, alguns desses veículos tinham metralhadoras de mão. Tudo isso ocorria em desordem, em meio a gritos e brigas; visivelmente havia um monte de gente querendo de repente mandar e muitos poucos dispostos a obedecer.

Adentramos no palácio, envoltos por um espesso cordão de soldados. Essas enormes construções absorviam sem dificuldade e sem que fossem notadas várias centenas de pessoas que iam e vinham parecendo ocupadas, mas aborrecidas de não ter nada a fazer: eram os deputados, senhores da casa. Mas eles eram minoria; toda a população de São Petersburgo que tinha ou queria ter um papel na vida política começava a se reunir lá.

Mas, por outro lado, o que havia sido feito? Haviam sido ocupadas as estações para evitar um movimento de tropas enviadas do front? Haviam sido ocupadas a Tesouraria, o Banco Estatal, o Telégrafo? Haviam sido presos os membros do governo tsarista? Haviam sido destruídos o departamento de polícia e a Okhrana?

Atualmente, sei muito bem que nada havia sido feito nem havia à disposição qualquer força que permitisse fazer o que quer que fosse. Que diferença da forma minuciosa com que foi executada mais tarde a revolução de Outubro!

[...] Não havia nenhum plano estratégico ou agentes executores. Em suma, o exército revolucionário carecia de qualquer coesão. A situação era crítica, podia-se ainda temer que as forças tsaristas esmagassem a revolução.

Da cidade, chegavam vagos rumores sobre anarquia, pilhagens e incêndios.

[...] a situação dos soldados. Ocorria que estes eram cada vez mais numerosos e passeavam até o interior do palácio; eles se apressavam em grupos e rodavam pelos salões como carneiros sem pastor. [...]

Antes de abrir-se a sessão do Soviete, eu queria muitíssimo conhecer os sentimentos dos meios burgueses e a atitude de seus líderes diante do poder revolucionário. [...]

A resposta de Miliukov – não lembro as palavras, mas retomo o sentido – foi a seguinte: “Antes de tudo, pertenço a um partido cujos atos dependem da decisão de uma coletividade mais ampla, a saber o bloco progressista. Sem ele, meu partido não pode empreender nem decidir nada. Enquanto oposição responsável, naturalmente aspiramos ao poder, mas dentro da legalidade. A via revolucionária não era a nossa...” [...] Essa resposta refletia precisamente nosso movimento liberal com sua cauda de raposa e suas presas de lobo, sua covardia, sua morosidade e seu espírito reacionário. Na hora decisiva e à luz das considerações elementares que eu havia expressado, o representante mais qualificado da burguesia progressista só respondia com essa evasiva e com essa vontade de agir no seio de antiga ordem consolidada, como se a revolução não tivesse ocorrido. Estava claro que a burguesia não aderiria à nossa revolução, mesmo aparente e provisoriamente. As forças democráticas deviam estar prontas a tomar sobre si mesmas o esforço de continuar até o final, tendo contra si as forças reunidas do tsarismo e de todas as classes possuidoras.

[...]

Falei umas verdades a Braunstein, meu velho camarada de deportação, um menchevique e um economista cogitado. Ele ainda estava influído pelo que havia visto na cidade: “Está começando uma anarquia absoluta, dizia ele. Os soldados estão pilhando, guiados por policiais e agentes da Okhrana. A polícia, os alunos da Escola Militar e todas as forças do antigo regime estão se mobilizando. Tiros são disparados das janelas e dos sótãos para provocar a multidão. A primeira coisa que o Soviete deve fazer é garantir a proteção da cidade e cessar a anarquia. É essa a questão que deve ser posta primeiro na ordem do dia, senão o movimento será esmagado.”

[...] o salão se sessões que estava lotando. N. D. Sokolov estava agitado, dava instruções, posicionava os delegados. Com autoridade, mas sem justificativa exata, ele explicava a uns que eles teriam um voto deliberativo ou consultivo, a outros que eles não teriam voto nenhum. [...]

[...] No momento em que se abriu a sessão, havia uns 250 deputados, mas novos grupos não paravam de adentrar o salão, sabe Deus com que mandatos, poderes e objetivos!

Entre os candidatos à mesa diretora, foram eleitos sem oposição os deputados da Duma Chkheidze, Kerenski e Skobelev, além de quatro secretários, dentre os quais o operário Penkov, menchevique de esquerda. [...]

No barulho e agitação gerais, ao longo de debates desorganizados, desde sua primeira sessão o Soviete cumpriu uma tarefa fundamental: a criação de um centro único de toda a democracia de São Petersburgo, centro investido de uma autoridade soberana, capaz de agir rápida e energicamente.

Mas a elaboração da ordem do dia logo foi interrompida por soldados que exigiram a palavra para ler seu informe; essa exigência foi aprovada com entusiasmo.

De pé sobre um banquinho, fuzil na mão, emocionados e gaguejantes, concentrados em transmitir as poucas frases da mensagem que lhes haviam incumbido, talvez sem entender a importância dos fatos que eles relatavam, em linguagem simples e rústica, sem ênfase, os delegados dos soldados narraram um após o outro o que ocorria em sua unidade. Como que fascinado, o salão escutava.

“Viemos dos regimentos Volkinski..., Pavlovski..., Litovski..., Keksgolmski..., de engenheiros..., de caçadores..., do regimento da Finlândia..., de granadeiros...”. O nome de cada regimento recebia tempestuosos aplausos. “Nós nos reunimos... nos incumbiram de dizer... Os oficiais desapareceram... Não queremos mais servir contra o povo, estamos nos unindo a nossos irmãos operários, todos unidos para defender a causa popular... Daremos nossa vida para isso... Nossa assembleia geral recomendou saudar...”

E, com uma voz embargada pela emoção, sob as ovações da assembleia agitada, o delegado acrescentou: “Viva a revolução!”

Logo se propôs e se aceitou, sob uma tempestade de aplausos, fundir como um só o exército revolucionário e o proletariado da capital, criando um organismo único que se chamaria “Soviete dos Deputados Operários e Soldados”.

[...]

Em seguida, Frankorusski resumiu em algumas palavras a situação do abastecimento em São Petersburgo. Ele propôs elegerem oficialmente uma comissão que se ocupasse disso; não houve nenhuma discussão a respeito; essa comissão foi logo composta por especialistas, todos socialistas, com V. G. Groman à frente, e ela deixou de imediato a sessão para começar seu trabalho.

Braunstein então interviu e propôs que em cada fábrica se formasse uma milícia (cem homens para cada mil operários), criassem-se comitês de bairro e se nomeasse em cada bairro um comissário com plenos poderes para restaurar a ordem e combater a anarquia e as pilhagens. [...]

Em decorrência da questão da proteção da cidade, pôs-se naturalmente a necessidade de um manifesto do Soviete à população. Nesse momento, era essencial dar à cidade e, na medida do possível ao interior, informações e algumas diretivas elementares.

Enquanto um de meus vizinhos propunha elegerem uma “comissão literária” incumbida de redigir imediatamente o manifesto e submetê-lo à aprovação da assembleia, a seção foi novamente interrompida. Um jovem soldado correu para o meio do salão e, sem fôlego, levantando seu fuzil e o agitando sobre a cabeça, exclamou a feliz notícia:

“Camaradas e irmãos, estou lhes trazendo a saudação de todos os homens do regimento Semionovski. Todos nós decidimos, sem nenhuma exceção, juntar-nos ao povo...” [...] Ninguém o impediu de encerrar seu interminável discurso. Uma onda de entusiasmo romântico percorria a assembleia desviada de suas funções prementes. Era de fato uma notícia importante: o regimento Semionovski representava um dos suportes mais seguros do tsarismo. As más lembranças de 1905 haviam se dissipado sob a luz de um novo sol.

Melhor ainda, delegados de outras unidades recém-insurgidas, estando na sala e não tendo ousado pedir a palavra, instigados pelo exemplo do jovem soldado, fizeram-se então conhecer e apresentaram seu informe: regimento de cossacos, divisão de carros blindados, batalhão eletrotécnico, regimento de metralhadores... A revolução se desdobrava e se reforçava a cada instante.

[...]

A multidão era muito densa, dezenas de milhares de homens haviam vindo saudar a revolução. Os salões do palácio não podiam comportar mais gente e, nas portas, os cordões da Comissão Militar mal conseguiam conter uma multidão ainda mais numerosa. Muito poucos soldados mantinham a ordem; outros, sentados no chão, com os fuzis dispostos em feixes, jantavam com pão, arenques e chá; mais longe, outros já dormiam. A dois passos da porta de entrada, amontoavam-se sacos de farinha. O chão, onde a neve se misturava com a lama, havia ficado escorregadio. Reinava a desordem. Pela porta soprava um vento impiedoso, pairava no ar um cheiro de botas e capotes militares.

[...]

Soube então que a fortaleza de Pedro e Paulo havia caído, capitulado sem nenhum tiro. O governo tsarista estava encerrado no Almirantado, protegido por unidades que continuavam fiéis por pouco tempo ainda. A terceira notícia era a mais importante: Kronstadt inteira havia aderido à revolução.

Apenas uma nota errada, mas de monta, destoava incômoda nesse concerto de êxitos: as tropas dirigidas contra a capital estavam em pleno movimento, o 17.º regimento de infantaria já havia chegado, havia ocupado a estação Nicolau e havia ocorrido um combate. É verdade que essa expedição terminou num fragoroso fracasso: todas as unidades “fiéis” só obedeciam a seus chefes até as estações; logo aderindo à revolução, agora eram os comandantes que deviam lhes obedecer.

[...] soube que Rodzianko havia voltado e que sua tentativa de mediação com o poder tsarista havia fracassado.

A revolução popular, não desejando esperar as forças inimigas se mobilizarem, havia avançado tão grandemente que, daí em diante, haviam se evidenciado inúteis as intrigas de bastidores. A partir de então, as classes possuidoras tinham a certeza de que a tática tendente a manipular a revolução por meio de uma frente única com as forças tsaristas se tornava arriscada; era preciso substituí-las por uma tentativa de utilizar a revolução sob o pretexto de tomar suas rédeas.

Um dos deputados radicais, irrompendo no recinto em que havíamos nos instalado, transmitiu-nos com ar de mistério uma importante “notícia política”: após conferenciar com o Comitê da Duma, Rodzianko havia se fechado em seu escritório, bem ao lado do nosso, e pedia alguns minutos para refletir.

Não tínhamos tempo a perder. Era quase meia-noite e trabalhávamos com nossa ordem do dia fazia 15 minutos, quando Miliukov entrou no recinto. Ele caminhou diretamente para a nossa mesa, com um ar solene e um sorriso nos lábios: “Foi tomada uma decisão, disse ele, nós tomaremos o poder...”

Eu não questionava o que significava esse “nós”, mas senti que havia se criado uma situação nova e favorável. O barco da revolução, até então sacudido pelas intempéries, içando enfim suas velas e conseguindo uma estabilidade entre os recifes, tomava a direção rumo a um ponto ainda distante, invisível na neblina, mas garantido. Tendo se assegurado a sobrevivência todo o aparelho de Estado, a revolução não seria sufocada pela fome e pelo caos. Era preciso que daí em diante os democratas cuidassem de conservar a revolução e derrotar uma ditadura burguesa, em prol da verdadeira vitória da democracia.

A burguesia da Duma tinha dois objetivos claros: submeter as forças da revolução e impregnar praticamente todo o aparelho militar. Assim se definia a política do primeiro governo revolucionário e se esboçava sua atitude para com a democracia encarnada no Soviete dos Deputados Operários.

[...] Em seguida, houve um rápido debate sobre a questão da imprensa. Lembro-me de duas intervenções contrárias, a de Steklov e a de Sokolov. O primeiro sugeria a interdição da imprensa nos dias seguintes, ressaltando o perigo de uma intervenção reacionária; o segundo, aludindo ao princípio da liberdade, declarava que restabelecer as condições normais de vida só ajudaria a consolidar a revolução.

Eu partilhava totalmente este último ponto de vista e, durante toda a revolução, mesmo nos momentos mais críticos, defendi a plena liberdade de imprensa, que só devia, a meu ver, dar satisfações aos tribunais.

Chegou-se a um compromisso: autorizar a circulação de jornais sob a responsabilidade do redator.

[...]

Eram quase seis horas. Através da vidraça, penetrava uma luz esbranquiçada. Do salão Catarina chegava um ruído de botas e se ouviam comandos breves. Poderia se pensar que os destacamentos organizados desfilavam devagar.

Eu adormeci, ou talvez, simplesmente cochilei. Havia passado o primeiro dia da revolução.


4. Fui acordado por dois soldados que rasgavam ritmicamente com suas baionetas a tela do retrato de Nicolau 2.º pintado por Repin. Algum tempo depois, por sobre a poltrona do presidente, não havia mais do que uma moldura vazia, que assim continuou pendurada nesse salão da revolução durante vários meses.

[...] Diziam-me que a situação estava melhorando. Para começar, não se ouvia falar de nenhuma ação militar. E depois, em São Petersburgo, os oficiais voltavam a seus postos e a comissão recebia deles em massa oferecimentos de serviço. Além disso, a ocupação da fortaleza de Pedro e Paulo havia se tornado um fato consumado: a guarnição inteira, encabeçada pelo comandante, havia reconhecido os poderes do Comitê da Duma. [...]

Obviamente, a adesão dos oficiais à revolução tinha uma enorme importância. Nesse momento, a revolução não dispunha de nenhuma formação que pudesse substituir o corpo de oficiais, salvar o exército de uma desintegração total e impedi-lo de transformar-se em fator de anarquia ou de ditadura. [...] visto que a liquidação do tsarismo não podia se realizar sem a burguesia, menos ainda contra a burguesia, era importante neutralizar essa força.

[...]

Mas, quanto ao âmago dessa questão, as aspirações dos meios dirigentes da burguesia e as da democracia não somente diferiam, mas também suas divergências se tornariam o ponto de partida de uma luta profunda e obstinada. [...]

Na esperança compreensível de tornar o corpo de oficiais um serviçal fiel da burguesia, o Comitê Provisório desejava que a soldadesca continuasse sendo o que sempre foi, ou seja, ferramentas sem vontade, “fuzis automáticos”.

[...]

Estava fora de questão o retorno à velha obediência passiva e cega da massa democrática. Estavam sendo erguidos para o Estado novos fundamentos, que implicavam necessariamente novas inter-relações dentro do exército e uma estrutura nova que inviabilizasse o uso dos soldados para uma agressão contra o povo.

[...]

A multidão, civis e soldados misturados, afluía ao palácio como no dia anterior. Pessoas vindas da cidade nos disseram que a ordem estava longe de ser reimposta. Lojas, armazéns e apartamentos haviam sido saqueados em vários bairros, e o motim continuava. Os criminosos, libertados com os presos políticos um dia antes, lideravam os rebelados, pilhando e incendiando. As ruas estavam perigosas: os agentes de polícia, os porteiros, a polícia secreta e a guarda civil davam tiros escondidos nas guaritas. Alguns incêndios mal apagados ainda ardiam.

[...]

A sessão desse primeiro Comitê Executivo, esse Comitê que lançou as bases da revolução e que, durante dois meses, teve o destino dela em suas mãos, podia se abrir.

[...]

Na manhã de 28 de fevereiro, os representantes de partidos vieram se juntar aos membros eleitos do Comitê Executivo. [...]

Qual era a tendência dominante dentro do Comitê Executivo? Embora o acaso houvesse predominado nas votações da primeira sessão, deve-se ressaltar que a maioria era de esquerda e se compunha basicamente de representantes do movimento de Zimmerwald. Quanto à direita, a ala militarista, que de início não tinha muito peso, mas foi depois tomando uma importância especial, compunha-se principalmente de representantes de partidos enviados ao Comitê Executivo por seus órgãos centrais e munidos apenas de um voto deliberativo.

[...] Mas, a partir do dia seguinte, sua composição aumentou com a adição de nove representantes da recém-formada “seção dos soldados”.

Não tendo opção política definida, esses homens constituíam um pântano. Quando se formou a maioria socialista-revolucionária, vários deles a apoiaram, na medida em que eram atraídos por um “partido camponês”.

Contudo, sem deslocar o centro de gravidade do Comitê Executivo e sem modificar sua fisionomia geral, esses novos soldados tornaram bastante movediço o chão em que caminhava a maioria de esquerda.

Durante as primeiras semanas da revolução, não se viu no Comitê nenhum dos líderes reconhecidos pelos partidos socialistas, nenhuma das futuras figuras centrais da revolução. Eles estavam afastados pelo exílio ou pelas fronteiras. Porém, os primeiros dirigentes do Comitê Executivo logo ficaram em minoria e na oposição. Os papéis centrais foram dados aos velhos chefes provados, mas já eram representantes de outras tendências que imprimiam à política do Soviete uma direção nova.

A sessão do Comitê Executivo se abriu às onze horas. Era uma atividade frenética e cansativa, mas nem nessa sessão nem nas dos dias seguintes foi possível seguir qualquer cronograma de trabalho. A cada cinco minutos os debates eram cortados por “declarações a se fazerem imediatamente”, “questões de excepcional importância” e “moções ligadas ao destino da revolução”!

Na maioria das vezes, esses assuntos extraordinários não eram nada importantes. Mas nos primeiros dias, não somente era impossível combater essa praga, mas também seria sido perigoso repeli-las impensadamente.

Na própria sessão não havia nenhuma ordem, nem mesmo um presidente fixo. [...]

[...] Também não havia um secretário permanente e as atas das sessões não eram redigidas. É verdade que elas só revelariam o caos, comunicados urgentes sobre toda espécie de perigos e excessos contra os quais não tínhamos condições de lutar. Dávamos ordens sem esperar que elas fossem cumpridas, enviávamos destacamento sem ter certeza de que eles seriam formados e executariam suas missões.

No salão vizinho onde estavam os membros do Soviete, ouvia-se cada vez mais barulho, era ensurdecedor. Via-se chegar empregados das comunicações, professores, engenheiros, vendedores, médicos, advogados, atores...

Sem dúvida, os representantes intelectuais mais conscientes da burguesa haviam sido atraídos para a direita, ao Comitê da Duma, e percebiam que o “Soviete de Deputados Operários” era uma fonte de anarquia que formava um obstáculo para conquistarem o regime de liberdade que Guchkov e Miliukov haviam se incumbido de estabelecer para eles. Mas a massa estava tomada de entusiasmo revolucionário. Como em 1905, todo mundo das classes médias havia se tornado socialista do dia para a noite e se sentia irresistivelmente atraída pelo Soviete. O fato de que o poder real, ou antes a força real, estava nas mãos dele contribuía sobremaneira à sua popularidade.

O poder formal pertencia ao Comitê da Duma, que se apressava em dividir as funções entre os deputados do Bloco Progressista, aos membros do Partido Progressista e, fato característico, os trabalhistas, promulgando durante a noite e o dia de 28 de fevereiro toda uma pilha de decretos, nomeações, portarias e manifestos. Mas essa era a expressão de um mero poder no papel, ou, como se queira, de um poder moral. Nessas horas de crise, o Comitê da Duma em nada era capaz de governar o Estado, carecendo de qualquer força real para conseguir restabelecer a ordem e uma vida normal na cidade.

Somente o Soviete tinha os meios de agir; ele começava a controlar a massa de operários e soldados e tinha à sua disposição as organizações obreiras, quaisquer que fossem suas tendências... [...]

[...] No fim das contas, alguns dias depois, os efetivos do Soviete atingiam a cifra absurda de uns dois mil membros. Disso resultaram várias inquietações e dificuldades para o Comitê Executivo, que devia montar uma organização correta do Soviete e normas adequadas de representação. Dada sua composição numérica e qualitativa, o Soviete era claramente incapaz de agir efetivamente, mesmo como Parlamento, e cumpria uma função exclusivamente moral.

Era ao Comitê Executivo que cabia realizar com suas próprias forças todo o trabalho corrente e elaborar um programa de governo. A aprovação desse programa pelo Soviete era claramente uma simples formalidade. [...]

“E então, o que se passa no Soviete?”, perguntei um dia a alguém que saía de lá. Meu informante teve um gesto fatalista: “É um comício. Fala quem quiser e do que quiser!”

Tive de atravessar várias vezes o salão de sessões. No começo, o quadro lembrava o do dia anterior: os deputados estavam sentados em cadeiras e bancos em volta da mesa, no meio do salão e pelas paredes. Algumas horas depois, as cadeiras haviam desaparecido do salão, elas ocupavam muito espaço, as pessoas em pé transpiravam e se espremiam umas nas outras. Os membros da Mesa Diretora ficavam de pé sobre uma mesa e toda uma penca de expectadores se pendurava nos ombros do presidente, impedindo-o de dirigir a assembleia. No dia seguinte ou no próximo, as mesas também haviam sumido e as sessões tomaram um aspecto definitivo de comícios num turbilhão.

[...] A salvação estava em que o tsarismo, privado de forças, estava desmoronando como um castelo de cartas. Porém, a revolução continuava carente de forças militares.

Era indispensável garantir o bom funcionamento de um dos ramos mais importantes da economia soviética em vias de formação, qual seja o gráfico. Na noite do dia anterior, V. D. Bonch-Bruievich, ajudado por não sei que voluntários, havia ocupado a gráfica Kopeika, que na sequência serviu à impressão do Izvestia. Era uma das melhores gráficas de São Petersburgo, que devia ser conservada para o Soviete. Bonch-Bruievich havia aí instalado uma guarda e empregado alguns operários. Mas não havia orçamento para pagá-los, nem provisões, nem segurança. Os operários desapareciam uns após os outros, num momento decisivo, o Soviete podia se encontrar privado desse meio essencial de ação sobre a população.

Bonch-Bruievich começou enviando ao Comitê Executivo uma nota escrita nos termos mais enérgicos, e depois veio em pessoa exigindo que garantissem à gráfica meios financeiros, víveres e um exército. Fui encarregado de acertar a questão com Bonch. Era então indispensável aprovisionar os cem homens da gráfica, algo bem difícil. Foram precisas longas horas de trabalho para organizar, com dificuldade, a instalação de uma guarnição e a distribuição de víveres. Em todo caso, o cansaço que me deram esses esforços me mostrou em que condições o Comitê Executivo trabalhava durante essas primeiras horas da revolução.

[...]

Naquele dia, houve perto das cinco horas um alerta falso: escutou-se no pátio um ou dois tiros. Isso não era nada incomum, mas o pânico foi bastante indecoroso no salão abarrotado do Soviete. Todos gritavam: “Os cossacos!” Os oficiais e os outros militares sequer sonhavam em fugir, mas se jogaram no chão. Ninguém sabia o que devia fazer, qual era seu posto, como defender a revolução e o palácio de Tauride. Se realmente tivesse se tratado de um ataque dos cossacos, é certo que não podia ter havido salvação de parte alguma e que a revolução teria parado por aí.

[...] Mas sem inimigo à vista e ninguém a atacar, ficou evidente que se tratava de um alerta falso. [...]

A agudeza da situação geral diminuía a cada hora. Soube-se que Moscou já havia aderido e que a revolução havia sido aí facilmente realizada, com a ajuda da guarnição.

A Rússia estava livre. A autocracia havia acabado. Era o fim da Okhrana, e depois da clandestinidade. Havia às nossas vistas algo diferente, impressionante, desconhecido. Tais eram os pensamentos que atravessavam meu espírito em meio a eventos irrelevantes que aparentemente em nada se relacionavam com a grande vitória do povo. Mas, por alguns instantes, cada um de nós pensava: é um sonho, é um encanto, não vamos acordar?

[...] no dia seguinte, sua próxima reunião.

[...] durante o dia todo, grupos formados espontaneamente haviam apresentado mandados de prisão que eles mesmos haviam redigido, assinados pelos membros do Comitê Executivo. Recusar-se a assinar em tais circunstâncias teria significado aceitar violências arbitrárias, até mesmo excessos, dirigidos contra vítimas talvez inocentes; conceder implicava, em certos casos, sustentar uma ação oportuna, e em outros, garantir a segurança daqueles que eram alvo de suspeitas. Numa atmosfera de paixões desenfreadas, havia mais chances de provocar injustiças opondo-se à prisão do que a aprovando. Em todo caso, posso afirmar que não me lembro de nenhum caso de prisão efetuada por ordem do Comitê Executivo.

Desde o início, a revolução se achava forte demais para julgar necessário defender-se com procedimentos desse tipo. Os métodos da autocracia só voltaram a florescer mais tarde, sob o governo de coalizão, e predominaram vastamente com os bolcheviques.

[...]

Pela primeira vez fiquei sozinho e andei pelas ruas de uma cidade livre da Rússia nova. Refletia sobre os diversos problemas que então urgiam, mas meus pensamentos eram atravessados por impulsos de alegria, de orgulho triunfante e também de um certo assombro diante das coisas imensas, explosivas, incompreensíveis que haviam se realizado nesses últimos dias.

[...]

Sim, a causa da revolução havia triunfado! Lembrei-me dos soldados que naquela manhã haviam arrancado o retrato de Nicolau 2.º. Nicolau ainda estava em liberdade e ainda se dizia Tsar. Mas onde estava o tsarismo? Sumiu, afundou num só golpe! Para edificá-lo foram precisos três séculos, e para destruí-lo, três dias.


5. Por volta das dez horas retomei o caminho do palácio de Tauride. A multidão se espremia nas ruas diante das proclamações do Poder Executivo e do Comitê Provisório da Duma. Ao chegar, soube que o trem do tsar, enquanto rumava para Tsarskoie Selo, havia sido detido na estação de Dno pelas tropas revolucionárias.

Assim, a questão da aniquilação dos Romanov se achava posta na ordem do dia. Mas a estruturação de um novo Estado e da futura política da democracia me parecia um desafio mais importante. Todo mundo falava do Tsar e da decisão a tomar a seu respeito.

[...]

Quais eram os objetivos da burguesia ao tomar o poder? E, por outro lado, quais eram as condições indispensáveis para a vida política da democracia?

As posições e intenções da Rússia dos possuidores não se prestavam a qualquer dúvida. Elas se limitavam a liquidar o despotismo com a ajuda do movimento popular (e, de preferência, sem ele!), a consolidar a ditadura do capital e da renda fundiária, nos quadros de um regime político dito “liberal”, e a criar um parlamento onipotente no qual a maioria burguesa estaria garantida. A Rússia dos possuidores queria parar a revolução nessa fase, após ter transformado o Estado em instrumento de sua dominação de classe e o país, em oligarquia de capitalistas, no modelo da Inglaterra e da França, as “grandes democracias ocidentais”. Toda movimentação para além desse projeto devia ser sufocada por todos os meios.

[...]

Para a democracia soviética, aquela dos soldados, dos camponeses, dos operários, da pequena burguesia e do proletariado, os objetivos eram mais nuançados, ou até opostos uns aos outros.

Os marxistas do grupo de Potresov haviam chegado à conclusão de que nossa revolução era uma revolução burguesa. Disso deduziam que todas as intenções e todos os objetivos da burguesia eram legítimos; portanto, a guerra também era um fenômeno inevitável; por fim, a classe operária e o campesinato deviam restringir suas reivindicações e seu programa. No fundo, essa posição implicava simplesmente ceder o poder a Guchkov e Miliukov, incondicionalmente, ou seja, realizar seu programa liberal e imperialista a exemplo do Ocidente.

Os elementos bolcheviques e socialistas revolucionários estavam crentes numa revolução socialista mundial, inevitável ao terminar a guerra. Para eles, a insurreição popular na Rússia representava não apenas a liquidação do absolutismo tsarista, mas também a destruição do poder do capital. Em posse da força real, o povo insurgido devia desde já o utilizar até o fim, tomar em mãos o poder de Estado e se dedicar com rapidez a aplicar o programa máximo e a suspender a guerra. Recusando um governo burguês nos quadros da revolução, dever-se-ia cuidar para prevenir as condições nas quais se poderia transmitir-lhe o poder.

Os representantes desse ponto de vista eram totalmente fracos dentro do Comitê Executivo, tanto em número quanto em qualidade. Quando se debateu a questão, esses elementos, por assim dizer, não se fizeram notar e uniram forças com os adeptos da terceira tendência, à qual eu mesmo me alinhava.

Eu pensava que, enquanto a evolução histórica da Europa entrava na fase de liquidação do capitalismo, devíamos considerar a marcha de nossa própria revolução à luz desse fato.

É certo que, embora realizada pelas massas democráticas, nossa revolução não tinha nem forças reais nem a organização indispensável para uma transformação socialista imediata da Rússia. Realmente, só poderíamos erigir no país uma ordem socialista tendo ao fundo uma Europa socialista, e com a ajuda dela. Mas estava fora de cogitação consolidar a ditadura burguesa no país.

Se a revolução não podia imediatamente dar o socialismo à Rússia, ela devia ao menos guiá-la em sua direção. E para isso, era preciso desde então estabelecer e consolidar a ditadura das classes democráticas. A democracia soviética devia provisoriamente devolver o poder à classe possuidora, sem a qual ela não poderia dominar a técnica de governo nas desastrosas condições da derrocada, mas devia, ao mesmo tempo, garantir-se a mais completa liberdade para combatê-la assim que possível.

Restava o problema de saber se a classe burguesa aceitaria tomar o poder enquanto o partido socialista estivesse na oposição. Devíamos obrigá-la a aceitar o poder deixando-lhe a esperança de ganhar a luta que poderíamos promover contra ela.

Devíamos então evitar exigências que poderiam desencorajá-la e levá-la a buscar outras vias para consolidar sua dominação de classe, devíamos conseguir essa combinação nos limitando a uma colaboração mínima realmente indispensável.

Eu julgava que o poder devia ser confiado ao governo de Miliukov, desde que ele concedesse total liberdade para organizarmos nossa propaganda. Estimando que, nas semanas por vir, a Rússia democrática se cobriria de uma sólida rede de organizações de trabalho, partidos, sindicatos, municipalidades e Sovietes, pensava que ela se uniria e se tornaria invencível ante o front do capital e do imperialismo. Eu considerava que a liberdade de consciência bastava para impedir que a burguesia imperialista reforçasse a ditadura do capital, para evitar que se consolidassem no país formas europeias da república burguesa e para levar o país, num futuro próximo, à ditadura política da maioria camponesa e operária, com todas as suas decorrências.

No fundo, eu raciocinava da mesma forma que os bolcheviques alguns meses depois, quando eles, cedendo total liberdade de manobra ao governo de coalizão, exigiram apenas uma só garantia: a liberdade de propaganda.

A essa condição de absoluta liberdade política, devia-se juntar uma anistia total e irrestrita. Depois, era preciso elaborar não somente uma declaração das liberdades, mas também instituições constitucionais democráticas. Cumpria então conseguir o quanto antes a convocação de uma Assembleia Constituinte dotada de plenos poderes e representando todos os setores do povo, com base numa lei eleitoral democrática.

[...]

Assentíamos todos em recusar qualquer participação no governo. O próprio fato de se constituir um governo burguês havia sido aceito como algo já combinado. Pelo que eu me lembre, nenhuma voz se levantou para propor um governo democrático. [...]

Eram quase dez horas da noite. Steklov havia partido para ler no Soviete um relatório sobre a questão do poder. Atrás da porta do salão 13, onde acabava de ocorrer a sessão do Comitê Executivo, encontrei o seguinte quadro: Sokolov estava escrevendo, inclinado na escrivaninha; soldados o cercavam por todos os lados, sentados, de pé ou apoiados na escrivaninha. Esses soldados lhe ditavam ou lhe sopravam o que estava escrevendo. Recordei-me da descrição de Tolstoi: como ele inventava, na escola de Iasnaia Poliana, histórias com as crianças. Mas não se tratava de infantilidades, era a Comissão eleita pelo Soviete para trabalhar na redação da “Ordem do Dia no Exército”. Eles trabalhavam sem nenhum plano e sem debate, todos falavam e todos estavam inteiramente absorvidos em suas tarefas. Eles não precisavam de votos para dar uma forma à sua opinião coletiva. Fiquei de pé escutando, interessado no mais alto grau. Quando o serviço foi concluído, deu-se à folha um título: “Ordem do dia número 1”.

Eis a história do documento que se tornou tão famoso. [...]

Era hora de organizar uma conferência com o Comitê da Duma, com o objetivo de criar um Governo Provisório e definir seu programa. [...]

[...] Finalmente, quatro pessoas foram incumbidas de conduzir as conversações: Chkheidze, Sokolov, Steklov e eu próprio.

[...] Afirmei que o objetivo da conferência era outro: devia-se criar um governo provisório. Os dirigentes da Duma deviam ter suas opiniões a esse respeito. O Soviete deixava a seus cuidados formar esse governo, considerando que isso derivava da presente conjuntura e respondia aos interesses da revolução. Mas, a fim de evitar qualquer embaraço, e visto que o Soviete dispunha sozinho da força efetiva, ele desejava apresentar um programa de reivindicações.

Nossos interlocutores não podiam objetar nada. Então Steklov se levantou, com sua folha de papel na mão, e falou por bastante tempo. Ele repetiu o discurso que tinha acabado de fazer no Soviete, explicando ponto por ponto, do modo mais acessível, o programa mínimo socialista. “Um bate-papo popular num círculo operário!”, pensava eu ouvindo esse infindável discurso.

Steklov tentava comprovar aos presentes o caráter razoável de nossas exigências. Ele terminou expressando a esperança de que nos entenderíamos e que o governo a ser criado aceitaria nossas reivindicações e as publicaria como parte integrante de seu programa.

Miliukov tomou a palavra para responder. Ele falou em nome do Comitê da Duma inteiro, o que parecia natural para todos os ouvintes. Era visível que aqui, na ala direita, Miliukov era não somente o líder, mas também o mestre.

“As condições do Soviete de Deputados Operários e Soldados, declarou, são aceitáveis como um todo e podem servir de base para um acordo com o Comitê da Duma. Contudo, há pontos contra os quais o Comitê levanta objeções categóricas.”

Ele pediu a folha em que estava exposto nosso programa e, enquanto a copiava, fez suas observações. A anistia era compreensível. Miliukov julgou conveniente não a discutir e escreveu docilmente: “... para todos os delitos agrários, militares, terroristas...”. O mesmo se deu com o segundo ponto: a liberdade política, a suspensão das restrições de ordem corporativa, confessional etc.

Mas o terceiro ponto suscitou forte resistência de sua parte. Esse ponto dizia: “O governo provisório não deve tomar nenhuma iniciativa que predefina a futura forma de governo.” Miliukov defendia a monarquia e a dinastia dos Romanov, com Aleksei como Tsar e Miguel como Regente.

Para mim, surpreendia bastante que Miliukov, entre todas as nossas condições, fosse contra esta. Atualmente, entendo-o muito bem e penso que, de seu ponto de vista, ele tinha toda razão e demonstrou uma grande lucidez.

Ele estimava que com um Tsar da casa dos Romanov, e talvez somente nessa condição, ele ganharia sua batalha e justificaria o risco enorme que, na pessoa dele, toda a burguesia aceitava. Com um Romanov no trono, todo o resto seria dado por acréscimo, sem precisar temer a liberdade do exército ou a assembleia constituinte, que ele considerava como algo provisoriamente tolerável e como um obstáculo possível de ser superado.

[...]

Ele nos indicou “avanços liberais” insistindo que os Romanov não podiam mais ser perigosos. Ele tentou nos persuadir de que seu arranjo era admissível para a democracia, falando sobre seus candidatos: “Um é uma criança doente, e o outro é um homem totalmente idiota.”

[...]

Chkheidze e Sokolov destacaram que o plano de Miliukov era inaceitável, bem como utópico, tendo em vista o ódio geral das massas populares pela monarquia. Eles fizeram saber que a tentativa de apoiar os Romanov com nosso aval seria absurda, inconcebível e não podia dar em nada. [...]

Tomei então a palavra e comecei dizendo que as demandas apresentadas eram reivindicações mínimas, categóricas e definitivas. Demonstrei que se sentiam entre as massas aspirações mais importantes a cada dia. Provei que apenas nossos dirigentes tinham a confiança do povo, que o poder real estava, pois, em nossas mãos, que havia apenas uma única saída: aceitar nossas reivindicações como programa de governo.

Miliukov retomou a palavra para exigir-nos, por sua vez, uma declaração confirmando que o governo constituído após acordo com o Soviete de Deputados Operários era legítimo. Ele também queria que essa declaração contivesse um apelo para que se confiasse nos oficiais e que os soldados os reconhecessem. Ele entendia que nenhum governo podia surgir ou resistir sem um acordo com o Soviete; ele descobria o poder do Comitê Executivo, adivinhava que ele receberia o poder não das mãos do Tsar, como havia esperado durante os dez últimos anos, mas sim das mãos do povo insurgido e vitorioso. Foi por isso que ele exigiu que nossas declarações fossem impressas e divulgadas.

[...]

Steklov relatava no Comitê Executivo nossa conferência com o futuro governo. Eu peguei o telefone para dar as últimas notícias ao jornal Izvestia, mas a edição já estava no prelo. Soube nessa ocasião de um fato que achei desagradável: a gráfica havia recebido dois “manifestos aos soldados” durante o dia. Um era a célebre “Ordem do dia número 1” que já mencionei; o outro havia sido lido pelos tipógrafos, que manifestaram sua oposição e se recusaram a imprimir: era o apelo redigido por mim e por Steklov contra os linchamentos e violências. Esse abuso me indignou. Não somente ele demonstrava um estado de espírito agressivo para com os oficiais, mas também era inaceitável que um grupo de tipógrafos tomasse nesse momento as rédeas da “alta política”, contrariando o Comitê Executivo. Mas nada podia ser feito, os gráficos haviam saído e muitos outros manifestos urgentes iriam ocupar todo o espaço no dia seguinte.


6. O Soviete ia se reunir para discutir e resolver em sessão plenária a questão do poder. Desta vez, o Comitê Executivo devia agir e manobrar para tornar ratificada sem incidentes sua decisão política. [...]

Para garantir que o Soviete adotasse todos os projetos do Comitê Executivo, adotamos a seguinte tática: como Steklov novamente faria um relatório, convenci-o a estender-se longamente e ficar entrando em minúcias; eu argumentava que um discurso longo convenceria a Assembleia e abreviaria os debates que se seguiriam, impedindo uma ou outra tendência de romper o equilíbrio.

Para mim é duro relembrar essas duvidosas manobras políticas que mais tarde condenei com relação a outra maioria.

A sessão do Soviete começou. [...]

Enquanto Steklov diluía à exaustão o programa do Comitê Executivo diante de um auditório impaciente, Kerenski veio me reencontrar, visivelmente querendo alguma coisa. Eram quase três horas da tarde, Steklov estava falando há mais de uma hora. Quando ele terminou seu discurso, o salão explodiu em aplausos. Então, como se houvesse sido picado por uma cobra, Kerenski se exaltou e correu pelo salão de sessões. Não podendo alcançar a tribuna presidencial, ele subiu na primeira mesa que encontrou e pediu a palavra. Eu o segui, pensando no que ia acontecer e aonde ele queria chegar. Não precisei esperar para tirar uma conclusão: ele havia escolhido o pior dos caminhos disponíveis para que ele se tornasse primeiro-ministro, o “golpe de Estado”! Ele menosprezava o Comitê Executivo.

Pálido, também inspirado, muito comovido, com uma voz surda, apoiado em frases breves e bruscas, cortadas por longas pausas, ele começou um discurso no qual, por trás da histeria e do teatralismo patético, discernia-se um trabalho diplomático hábil que devia influenciar os eleitores:

“Camaradas, vocês confiam em mim? Falo do fundo de minha alma, do fundo de meu coração... Se vocês não confiam em mim, estou disposto a morrer, aqui mesmo, à vista de vocês!...”

A surpresa e a emoção preencheram a sala. Esses procedimentos nunca antes empregados entre nós tiveram um efeito surpreendente. Kerenski se aproveitou disso para tratar sem demora do principal assunto que o interessava: “Camaradas! Sem que vocês devessem aprovar, fui obrigado a dar a resposta à proposta que me fizeram de assumir o posto de ministro da Justiça... Os representantes do antigo poder estão em minhas mãos, não quis deixá-los escapar. Aceitei a oferta e entrei no governo provisório. Meu primeiro ato foi mandar libertarem todos os presos políticos e fazer voltarem da Sibéria, com as honras especiais, nossos camaradas social-democratas deputados da Duma...”

Obviamente essa declaração foi recebida com aplausos. A questão da anistia ainda era apenas um “parágrafo do programa”, deve-se recordar do clima de então para entender o que essa declaração podia despertar de entusiasmos, não estávamos acostumados a todas as possibilidades dessa liberdade toda nova.

Após tal preparação de artilharia, Kerenski podia se lançar à ofensiva: “Assumi então as funções de ministro da Justiça antes de vocês me concederem formalmente esses poderes. Dessa forma, estou renunciando às minhas funções de vice-presidente do Soviete de Deputados Operários. Entretanto, estou pronto para reassumi-las se vocês julgarem necessário...” Houve gritos de “Sim, sim!...” e aplausos.

Ovacionado, Kerenski deixou o salão sem esperar que discutissem o assunto, certo de sua vitória e de que sua entrada no governo seria aprovada. Ele se tornava ministro da democracia conservando seu título de vice-presidente do Soviete.

[...]

Por volta das sete horas da noite, quase terminando a sessão do Soviete, levou-se a voto a resolução do Comitê Executivo. O resultado do pleito foi brilhante: a linha e o programa do Comitê Executivo foram aprovados por quase todos os membros do Soviete presentes (algumas centenas de votos contra quinze).

Tendo sido adotada a resolução e tendo sido aprovado o compromisso passado com os elementos burgueses, era preciso dar conta da constituição do governo e informar o povo a respeito. [...]

[...] nesse ínterim, Guchkov e Shulgin já se encontravam perto de Pskov, tendo de manhã tomado um trem para chegarem até o tsar e convencerem-no a abdicar em favor de Aleksei, com Miguel como regente. Era a última tentativa da “burguesia constitucional” de conservar a monarquia por meio de um golpe de Estado. Assim, os líderes monarquistas queriam colocar a Rússia, tanto a burguesia radical quanto a democracia, cujas intenções, porém, foram precisadas na noite anterior, diante de um fato consumado. Era uma violação flagrante do acordo combinado conosco.

[...]

No fim das contas, a questão do terceiro ponto foi resolvida da seguinte forma: aceitávamos não introduzir na declaração ministerial o compromisso oficial de “não tomar iniciativas que predefinam a forma de governo”. Aceitávamos deixar a questão em suspenso e deixar que certos membros do governo ainda tentassem salvar a monarquia. Mas declarávamos categoricamente que “de sua parte, o Soviete conduziria desse já uma luta intensa para instituir uma república democrática”.

Era evidente que o compromisso pesava mais do lado dos monarquistas do que do nosso. Mas um compromisso oficial da parte deles de abandonar os Romanov não iria ter grande impacto no plano prático. Nada iria os impedir de prosseguir “iniciativas” como as que já haviam sido tomadas nos bastidores a nosso despeito. Enquanto isso, a “liberdade de luta” que proclamávamos dava todas as chances para a república vingar, não apenas por causa do desejo popular de vê-la ser instaurada e da força efetiva que estava nas mãos do povo, mas também por causa da divisão predominante entre a burguesia nesse âmbito.

[...]

Faltava encontrar um título para esse documento.

“Em nome do Comitê Provisório da Duma, propôs Miliukov. Para manter a linha legítima de sucessão, esse documento deve levar a assinatura de Rodzianko.”

Eu não gostei nada disso. O que importavam a Duma, seu Comitê, Rodzianko e a “linha de sucessão” nessa história? Insisti para que o documento fosse intitulado “Em nome do governo provisório”. Já estava muito bom!

[...]

Terminava o quarto dia da revolução. Finalmente se podia pensar em comer e descansar.

Despedi-me de Miliukov. Reencontrar-nos-íamos num futuro muito próximo, agora não mais na qualidade de intermediários, mas de representantes de dois grupos que travariam uma luta de morte. Nosso acordo não passava de um acordo quanto às “condições de um duelo”.

Nesse ínterim, os srs. Guchkov e Shulgin acabavam de chegar a Pskov e combinavam com o tsar sobre sua abdicação. Nicolau 2.º lhes declarou que havia decidido abdicar por conta própria, mas não em favor de Aleksei, do qual ele não suportaria se separar, e sim do grão-duque Miguel, que havia sido proposto como regente. Lá pela meia-noite, os delegados da burguesia voltaram de trem para São Petersburgo, levando consigo o ato de abdicação. Mas nada disso adiantava mais.

Todavia, esse ato representava o coroamento da revolução. A dinastia estava liquidada e, com ela, a monarquia. Estava estabelecido um poder revolucionário e postos os fundamentos da nova ordem. Novas perspectivas se abriam para o movimento proletário mundial.

Nesse momento eu andava pelas ruas desertas. Não mais se viam soldados desabrigados e famintos. A mudança de regime era um fato consumado. A capital e, com ela, o país inteiro podiam começar a viver uma vida nova [...].