Outro dia, ouvindo a RFI, soube que foi lançado um novo hino pra chamada “AES” (Aliança – às vezes “Confederação” – dos Estados do Sahel), entidade dissidente e alternativa à ECOWAS ou CÉDÉAO (Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental) e fundada pelas juntas militares que assumiram o poder nos últimos anos no Mali, no Burquina-Fasso e no Níger. Lideradas atualmente pelos respectivos oficiais Assimi Goïta, Ibrahim Traoré e Abdourahamane Tiani, ascenderam sob o pretexto de combater o jihadismo à própria maneira e dispensar a presença militar francesa que travava, sem grandes resultados, o mesmo combate. Além disso, carregaram no discurso anticolonial e crítico do domínio econômico que Paris ainda mantém na região, sobretudo pelo uso do franco CFA como moeda.
A ECOWAS também é acuada de corrupção, inação e vassalagem perante a Europa. Até aí tudo bem. Não fossem sutis detalhes, como a presença em massa de mercenários russos (primeiro sob o rótulo Wagner, depois com o infeliz nome Africa Corps – em inglês), que, depois dos crimes de guerra na Ucrânia, matam civis inocentes, roubam as riquezas minerais dos países e são eles mesmos frequentemente mortos ou capturados, entre outros, pelo Daesh. Todas as juntas também são acusadas (que novidade!) de prender e matar civis sem critério, sobretudo opositores, e não serem mais eficazes que a França no combate antijihadista. Quanto às promessas anticoloniais e reformadoras, o balanço é mais matizado, mas tende a ser insuficiente (e certamente vai ser negativo, na ausência de instituições democráticas), mesmo quando elas foram mais ressaltadas, como ocorreu no Burquina-Fasso. Sobre o país, o italiano Simone Guida fez um ótimo vídeo bem mais imparcial do que eu, rs.
Como sempre, minha birra principal é com a célebre “ex-querda bananeira”. A imagem mais trabalhada nas redes sociais foi a de Traoré, que ainda é capitão, tem minha idade (37 primaveras) e se apresenta como a reencarnação de Thomas Sankara, outro oficial burquinense golpista e “anticolonialista”, relativamente jovem, da década de 1980, mas que tinha um tino social mais refinado e terminou assassinado. Jones “PCBR” Manoel, embora seja um admirador de Sankara, pelo menos no começo teve um pé atrás com Traoré, e hoje parece (prudentemente) publicar pouca coisa sobre o tema, assim como fecha o bico sobre Putin e a Ucrânia. Já Silvio Almeida, pra minha surpresa, parece desorientado com a vida e recentemente publicou em seus stories do Instagram trechos de discursos legendados do Napoleão complexado, como tem feito boa parte dos radicais chic de sofá. Pra quem acompanha há anos notícias direto da francofonia, é triste ver fanáticos ideológicos pegando o bonde andando...

De um ponto de vista mais técnico, queria chamar a atenção pra esta “reportagem” laudatória da Aliança dos Golpistas do Sahel e vergonhosamente publicada por nossa mídia estatal. O jornalista tem passagem por outros produtores de falsidades, como o Vermelho e o Brasil de Fato, e trata o processo como algo normal: cedo pra chamar de “ditaduras” (igual ao “governo” corrupto e assassino de Gaddafi), chama os golpes de “levantes com apoio popular”, ignora que Mohammed Bazoum, por exemplo, foi democraticamente eleito no Níger e some com os abusos de direitos humanos. Sem entrar em detalhes, o “dois pesos, duas medidas” de que tanto acusam a direita lhes cairia bem caso se olhassem no espelho: afinal, a mesma retórica, os mesmos métodos (incluindo “transições” que nunca acabam) e as mesmas justificativas foram usados pelos milicos em Mianmar, Coreia do Sul, Europa Meridional e América Latina durante o século 20. A junta argentina de Videla, por exemplo, se autodenominava “reorganização”, exatamente como a EBC parece descrever Traoré...
Vou ser claro como fui várias vezes aqui, me lixando pro que pensem radicais, revolucionários ou comunazis: não existe ditadura nem golpe militar “com conteúdo de classe”, pois não há desenvolvimento baseado no arbítrio ou na mera força de vontade. Ou existem instituições democráticas (por mais imperfeitas que sejam), ou não existem. O “jorna-lulista” chega à desfaçatez de assimilar as juntas militares com a experiência do Senegal, que na verdade sempre foi considerado uma exceção “democrática” na região e cujos atuais presidente e primeiro-ministro, apesar da retórica nacionalista anti-França, tinham sido perseguidos pelo antecessor e ascenderam após eleições justas. E nem nesse país, nem no Gabão, onde outro golpista, um ano depois, recentemente se “elegeu” com mais de 90% dos votos, havia bandeiras ruSSas por todo lado. A esquerdalha vai dizer que “eles têm direito de trocar de mestre”, mas quem acompanha o putinismo há anos, sabe que ele é traiçoeiro e te larga nos piores momentos.
Essa linha “democracia pra nós, ditadura pra eles” não passou despercebida por um colunista do Völkischer Beobachter curitibano, que comentou a mesma “reportagem”, mas entrou em mais detalhes sobre a conjuntura no Sahel e as contradições de nossos “militontos”. Ele chama Traoré, frequentemente comparado a Che Guevara, de “novo ditador queridinho da esquerda brasileira”, porém, ignora todo o contexto neocolonial que prendia a África Ocidental à França (abordagem aliás, muito distinta da adotada pela Commonwealth britânica) e a arrogância repugnante de Macron ao lidar com qualquer ser vivo não originário de Amiens. Além disso, e esse tópico é o que mais me atiça, a real vassalagem se revela no modo como “Os Três Patetas” não apenas se abstêm, mas votam contra qualquer condenação da invasão à Ucrânia (país não muito priorizado por nossos “conservadores”) em votações na ONU. Acompanham Belarus, Nicarágua e Coreia do Norte.
Após tentar mostrar como bolsofachos e stalinetes igualmente instrumentalizam democratismo e autoritarismo pra suas próprias paranoias, lembro que tudo começou com uma “musiquinha”, rs. Segundo a RFI, o hino, batizado na língua bambara como Sahel Benkan (A Aliança do Sahel, “entente” em francês), mas todo redigido no idioma de Molière, surgiu exatamente pra motivar as populações do Mali, do Níger e do Burquina-Fasso, sobretudo os jovens, a atuarem como bucha de canhão se engajarem pessoalmente no combate ao jihadismo, cujo foco hoje é justamente o Sahel, e não mais os países árabes e muito menos o Ocidente desenvolvido. Este artigo, que também revela como a composição ficou a cargo de uma equipe dirigida por Amadou Mailallé, mostra que Sahel Benkan substitui outra canção usada desde um ano atrás e é erroneamente chamada nas redes sociais de La Confédérale (A Confederal).
O nigerino Mailallé, que parece partilhar o colonialismo linguístico de Léopold Sédar Senghor, é o mesmo especialista em hinos “peidados” que usou igual procedimento coletivo pra compor a nova canção nacional de seu país, em 2023. A partir deste artigo com outras informações, traduzi o texto do original francês, que também segue abaixo, junto com dois vídeos igualmente acompanhados da letra e, ao final, a primeira execução pública instrumental presidida por nosso polêmico Ibrahim Traoré. Vejam a cara de animação do povo ao qual foi permitido testemunhar tamanho evento histórico...
1) Homenagem ao povo do Sahel
2) Povo da AES
Refrão:
3) Povo da AES
(Refrão) Povo da AES! ____________________
2) Peuple de l’AES
Refrain :
3) Peuple de l’AES
(Refrain) Peuple de l’AES ! |