sábado, 20 de dezembro de 2025

[REPOST] Sobre o significado de “Rus”


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Eu lancei esta publicação originalmente em 8 de setembro de 2018, quando ainda tinha estudado muito pouco a história da chamada “Confederação da Rus” (Русь), uma ligação de principados que durou do século 9 até o ano de 1240, quando ela se dissolveu diante da invasão do Império Mongol (a famosa “Horda Dourada”). Essa história veio ainda mais à tona quando Putin invadiu a Ucrânia em 2022, trazendo todos os velhos temores de apropriação da herança eslava oriental exclusivamente por Moscou. Mas resolvi republicar o conteúdo com pequenas modificações não porque agora tenho a resposta “definitiva”, e sim porque acabei escrevendo um texto bastante longo pra amigos, explicando qual é o sentido do “Bielo-” ou “Bela-” no nome de Belarus (antiga Bielorrússia) e qual era a relação daquela Rus ou “Rússia” com a moderna Federação Russa.

Ao ler as primeiras páginas da recente tradução russa (com atualizações) do livro do historiador ucraniano Serhii Plokhy sobre a guerra russo-ucraniana, publicado originalmente em 2023, me vieram várias iluminações sobre a questão da sucessão da Rus. Só pra adiantar: todos os três povos eslavos orientais (quatro, se somarmos os russinos, erroneamente chamados rutenos) são seus herdeiros, mas nenhum Estado da época é seu continuador ininterrupto. Se belarussos e ucranianos caíram sob diferentes jugos pra depois serem incorporados ao império tsarista, este tem raízes que remontam ao Grão-Ducado de Vladimir-Suzdal (1125-1389), em referência a suas duas capitais sucessivas, apenas um dos remanescentes da Rus em sua porção noroeste.

O Principado de Moscou, cidade até então sem grande significado próprio, tinha sido fundado em 1263, mas dada a pressão mongol, que destruiu a maior parte do grão-ducado, o soberano teve de se transferir pra Moscou, que então ganhou proeminência sobre suas rivais. Elevado a Grão-Principado em 1389 e considerado o embrião do país atual (língua, cultura), Moscou expandiu seus domínios até o famoso Ivan 4.º o elevar a Reino Russo/da Rússia (Russkoie tsarstvo, chamado em inglês “Tsardom of Russia” e havendo a ocorrência da palavra “tsarado/czarado” em português), sendo o termo “Moscóvia” ainda popular em grande parte da Europa durante a Idade Moderna pra o designar. Começando com o tamanho de metade da atual Rússia europeia, em 1700 já ocupava a maior parte da Sibéria, mas não o Cáucaso nem a Ásia Central. A maior expansão só ocorreu quando Pedro 1.º (“o grande”) proclamou em 1721 o “Império Russo/da Rússia”, e então se fixou o adjetivo “rossiiski” pra designar tudo o que se referia a ele, e não apenas aos “russkie” étnicos.

Embora o uso de “Rossia” em eslavônio e russo date pelo menos do século 14, ele era intercambiável com “Rus” até o século 17, quando a primeira se tornou oficial. Mesmo assim, a mitologia da herança da continuidade da confederação medieval começou aí, mas até aqui me limitei ao resumo da história política, que explica em parte, mas não de todo, a confusão que muitos ainda fazem entre a chamada “Rus de Kyiv” (cidade que sediava apenas seu principado mais relevante, e não sua capital) e a Rússia moderna. Espero que tanto minhas reflexões de 2018, com mínimas mudanças e observações, quanto minhas explicações deste mês ajudem o leitor curioso a se aprofundar por conta própria!



Expansão do Reino/Império da Rússia, do mais escuro ao mais claro: 1500, 1600 e 1700.


Aproveitei o carregamento deste vídeo no meu canal [derrubado em 2021] Pan-Eslavo Brasil (YouTube) pra discutir um conceito histórico que ainda gera muita confusão entre os brasileiros. A União Soviética era no todo um país multinacional e internacionalista. Mas a Rússia (ou RSFS da Rússia), enquanto existiu dentro dessa federação, manteve diversos símbolos nacionalistas do tempo do tsarismo, embora repaginados sob a estética comunista. Seu nome inteiro era República Socialista Federativa Soviética da Rússia, e também era “federativa”, e não somente “RSS”, como as demais, porque ela mesma comportava diversas subunidades nacionais numa enrolada teia administrativa. Essa complexidade permanece, tornando a divisão da Federação Russa uma das mais difíceis de compreender.

A célebre canção patriótica “Славься” (Slavsia), Glória ou Glorie-se, por muitos considerada uma espécie de hino nacional informal da Rússia, é parte da ópera Ivan Susanin, composta pelo célebre músico Mikhail Glinka, e tem várias versões da letra. Em publicação anterior de minha página, você pode conhecer melhor a história e a letra desta música e ler as três primeiras estrofes, que são as cantadas no vídeo abaixo. O engraçado é que um de meus maiores dilemas, inclusive na tradução do hino da URSS, era como traduzir o termo “Русь” (Rus), que originou o adjetivo “russki” (russo), bem como o nome “Rossia” (Rússia). Eu traduzia como “Mãe-Rússia”, com tintura nacionalista, até estudar a história real da Confederação da Rus, que uniu principados de forma frouxa entre os séculos 9 e 13. Estes, de fato, constituíram os ancestrais dos eslavos orientais (russos, ucranianos, belarussos e russinos), inclusive na língua, que era única.

Por isso, às vezes seria melhor traduzir Rus como “eslavos orientais”, como no início do hino da URSS: “A grande Mãe-Rússia coligou para sempre a união indestrutível das repúblicas livres”, ou antes: “Os (grandes) eslavos orientais coligaram...” (já que Rússia, Ucrânia e Bielorrússia, hoje Belarus, eram a maior parte do território e da população). Ou talvez o certo seria nem traduzir Rus, por se tratar de uma entidade política especial. Porém, “Mãe-Rússia” passa o sentido nacionalista de que a Rússia seria a herdeira da Rus e, portanto, ucranianos e belarussos seriam “derivações” da Rússia. Tanto que o nome “Ucrânia” tem relação com a palavra russa “okraina” (ou seja, a “periferia” do Império Russo), e que o nome antigo e histórico dos ucranianos era “pequenos russos”, e o nome dos belarussos, “russos brancos” [não há relação com o “exército branco” da guerra civil entre 1918 e 1920]. Dessa forma, ainda em livros ocidentais do século 20, a Ucrânia e Belarus ainda aparecem com as respectivas denominações tsaristas de “Pequena Rússia” e “Rússia Branca”...

Contudo, ucranianos e belarussos também se consideram “herdeiros” da antiga Rus e se arrogam o direito de chamar o velho eslavo oriental comum de “ucraniano antigo” ou “belarusso antigo”, como os russos o chamam de “russo antigo”. Agravando o caso, o centro político maior da federação da Rus era Kyiv (o que a faz ser chamada também “Rus kievana/kievita”), num período em que Moscou não passava de uma aldeia crescida. Isso faz da memória medieval um embate não apenas entre russos, mas também deles com os países vizinhos. O canal com este vídeo sem legendas tem muito mais material raro (não traduzido) sobre a URSS que pretendo legendar. Eu usei a mesma tradução que já tinha publicado, mas encurtei ainda mais pra pôr nestas legendas:



Embora a parte “bela-” do nome de Belarus de fato venha de “branco”, não há unanimidade sobre a origem dessa denominação. Ela está relacionada com o fato da região, na era medieval, ser chamada de “Rutênia Branca”. A “Rus”, chamada no registros latinos de “Ruthenia” e gregos de “Rossía”, era originalmente o nome de uma grande confederação de vários principados (o mais importante deles o de Kyiv, por isso a obsessão de Putin pela Ucrânia) que grosso modo abrangia os territórios dos atuais três povos eslavos orientais: russos, belarussos e ucranianos.

Com a invasão mongol, esse principado se desagregou em 1240, e por volta do fim da Idade Média os três povos e línguas citados acima (que seguiram rumos políticos muito diferentes) já eram bem distinguíveis, mas as línguas não se escreviam. Escrevia-se em eslavônio, que era essencialmente uma língua litúrgica, e o próprio russo só começou a ganhar uma literatura robusta no século 18. No começo desse século, já no curso de uma expansão territorial gigantesca, Pedro 1.º (“o grande”) fundou o chamado “Império Russo”, e o novo nome do país (“Rossia”, já consolidado na fase anterior) foi decalcado diretamente do grego, cuja herança os tsares adoravam.

Aí começou a confusão: a ideologia imperial russa reza que os três povos eslavos orientais são “o mesmo”, dentro desse guarda-chuva da “Rossia”, suposta continuadora da Rus. Até então, o império se chamada “Russkoie tsarstvo” (Reino Russo, e não Rus), “russki” se referindo aos russos étnicos. Mas foi se consolidando o gentílico “rossianin” (substantivo) e “rossiiski” (adjetivo), súdito do império, seja russki ou não. Ambas as palavras ainda existem, e em português ambas são traduzidas por “russo”. Assim, muita gente acha que tudo o que tem “Rus” se refere à “Rússia” como entendemos hoje. É falso: se refere à origem comum de russos, belarussos e ucranianos, que Moscou desde sempre quis monopolizar.

O ápice disso foi no século 19, quando havia mesmo os termos “Grande Rússia” (a Rússia, obviamente), “Pequena Rússia” (a Ucrânia) e “Rússia Branca” (Belarus). A versão original de todos tinha “-rossia” ou “-russia”, e assim passou pras línguas ocidentais. Nesse mesmo século, a literatura ucraniana que nascia foi até proibida pelos tsares. O ápice da tentativa de assimilação (inclusive dos poloneses) antecedeu por pouco a revolução de 1917, que popularizou o termo “Ukraina”, mas curiosamente conservou “Belorussia”. Esta se manteve até 1991, quando “Belarus” se tornou oficial tanto em russo quanto em belarusso, embora na Rússia ainda se use (quase sempre na mídia estatal) Belorussia.

Tudo isso pra dizer: o “-rus” de “Belarus” não se refere à “Rússia” como entendemos hoje (Estado, etnia), mas à Rus predecessora de russos, belarussos, ucranianos e russinos, os quais, porém, a ideologia imperial sempre buscou confundir com a Rossia forjada nos séculos 17 e 18.



Não é a bandeira autêntica de Belarus, mas é o que há pra hoje...

quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Prisioneiros comem impostos de Israel?


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“Certa noite em Campo Grande eu dei a maior trepada...”


David Sharp, mais conhecido como Televisor, é um analista militar israelense, de jeito bem peculiar e onipresente na mídia de oposição exilada em língua russa. A barreira do idioma o torna menos conhecido fora de mídias como TV Rain, VOT TAK, Novaya Gazeta Evropa, Nepechatnoie, Canal 9 (Israel) e outras, mas ele comenta praticamente todas as guerras mais importantes em curso no mundo, notadamente a invasão à Ucrânia e o combate de Israel aos proxies iranianos. Não seria muito difícil achar pessoas no Brasil, com ou sem especialização, partilhando de suas posições totalmente pró-Israel e contra sua divisão com os árabes (“Deus nos livre da criação de um Estado palestino!”, disse ele certa vez).

Seu russo é muito estranho, porque além de falar ora disparado, ora que nem um robô, Sharp usa expressões meio literárias e pouco usuais (pelo menos na variante que domina na Rússia) e às vezes coloca os adjetivos depois dos substantivos, totalmente o contrário da regra padrão. Além disso, sua onipresença contrasta com seu relativo low profile nas redes sociais, de forma que é bastante difícil encontrar informações biográficas suas, duas das raras exceções sendo esta página e esta entrevista a que ainda não assisti. Resumidamente, ele nasceu em 1974 na RSS da Ucrânia, transferiu-se (ou “repatriou-se”, como eles costumam dizer) pra Israel em 1991, serviu no Tsahal de 1993 a 1997 e tem formação superior em administração. Também trabalha como tradutor e editor, mas lançou seu canal no YouTube somente em novembro de 2023.

Há algumas semanas, quis postar um trecho de uma entrevista sua pra outro canal, em que ele nega a existência de um “povo palestino” separado dos outros árabes da região (sírios, libaneses e jordanianos). Mas achei os argumentos bem superficiais e a discussão inútil, de forma que joguei fora o vídeo e a transcrição. Algum tempo depois, numa das recentes edições de seu quadro de perguntas e respostas, Sharp encarou um questionamento sobre o que fazem os terroristas presos em Israel e se vivem às custas dos “pagadores de impostos” (figura bem cara ao Brasil também). Dado que o próprio modo como a pergunta foi feita lembra muito nossa contrariedade com a chamada “bolsa preso” e que, no final, a resposta é que o Estado realmente arca com todo o aparato, resolvi cortar esse trecho, traduzi-lo diretamente do russo com a ajuda da transcrição automática do YouTube e editar levemente pra publicar aqui (1/10 da fala é só “ééé”, “éee”).

Tenho minhas dúvidas sobre o argumento básico, de que os presos palestinos em Israel (“terroristas”, em sua maioria) levavam uma vida razoável. Mesmo antes do 7 de Outubro, sabemos como até mesmo mulheres e crianças detidas por anos sem julgamento (algumas das quais libertadas nas negociações mais recentes) passavam por maus bocados, sem contar os casos de abusos sexuais, mesmo de mulheres soldados contra homens detidos. Dá pra saber “que pito toca” David Sharp, mas sempre gosto de trazer opiniões fora do mainstream intelectual (você acha mesmo que André Lampadajst é tão influente assim?) pra causar um pouco de fuzuê. Tanto mais que a barreira linguística priva o bananeiro mérdio de muita coisa interessante, e que esse analista é realmente muito informado:


1) Do que se ocupam os terroristas presos nas cadeias israelenses? Trabalham, produzem alguma coisa ou vivem às expensas do Estado e, portanto, de nós, pagadores de impostos? 2) Por que, entre os presos, não se conduz um trabalho educativo sobre Israel e nossa história pra contrapor ao que eles aprendem em casa?

Bem, vou começar diretamente pela segunda pergunta. Em minha opinião, semelhante tipo de trabalho educativo é uma absoluta insensatez. Não faz nenhum sentido tentar reeducar os inimigos que se encontram na cadeia e são criados no seio da mãe pra odiar Israel com bases ideológicas, religiosas, nacionais etc. ou lhes dar qualquer tipo de palestra. Não há qualquer razão pra empreender semelhantes esforços, pois é algo absolutamente inútil e irracional. Naturalmente, quaisquer recursos nossos merecem ser gastos de qualquer outra forma totalmente diferente.

Mas quanto ao mais importante, isto é, do que eles se ocupam? Eles não fazem nada, não trabalham. Aliás, os presos já condenados têm até mesmo às vezes a possibilidade, especialmente aqueles que já desfrutam da progressão de regime, de sair pra trabalhar e voltar pra penitenciária, por exemplo, em alguma etapa avançada de sua pena. Claro que tudo depende do artigo, do comportamento etc. Até onde sei, os terroristas nunca trabalham.

Do que se ocupam? Ficam o tempo todo sentados, se comunicam, elevam seu nível de preparação ideológica, se ligam com quem está em liberdade do jeito que podem (por meio de advogados ou quaisquer equipamentos infiltrados que os carcereiros conseguem confiscar com algum sucesso), decidem questões políticas e de outra natureza e até mesmo, me desculpem pelo termo, fazem sexo, algo muito difundido entre eles.

Por um tempo bastante longo, sobretudo antes do ataque de 7 de outubro [de 2023], viveram em condições relativamente confortáveis. Claro que temos a tendência a pensar que era exatamente um verdadeiro resort, mas não é nada disso. Resort é algo do tipo das cadeias norueguesas ou de algumas holandesas. Mashallah as coisas em Israel foram decididas um pouco melhor. Mesmo assim, eles tinham muita coisa boa na cadeia, inclusive o acesso a muito dinheiro recebido da Autoridade Palestina na qualidade de bolsas e salários. Além disso, quanto mais grave o crime, quanto mais crimes e tempo de prisão, mais dinheiro correspondente eles recebem.

Eles tinham a possibilidade comprar na cantina da prisão produtos de altíssima qualidade que eles mesmos fabricavam. Em resumo, os terroristas nas cadeias israelenses se alimentavam, digamos, com muitíssima decência. E no geral eles tinham condições enormemente razoáveis, embora aqui e ali houvesse restrições etc. Mas desde o 7 de Outubro, com a abordagem do atual ministro da Segurança Nacional, [Itamar] Ben-Gvir, e o entendimento geral da sociedade israelense, a vida deles piorou fortemente e foi suprimida a possibilidade de adquirir essa comida.

Assim como há muito tempo já havia sido suprimida, é verdade, a possibilidade de estudar a distância em diversas universidades israelenses. A propósito, eles não estudavam às custas de Israel, mas pagavam com o próprio salário, um dinheiro pra estudos, mas mashallah eles também foram privados dessa possibilidade de estudar. Aqui é importante falar logo: quando falamos dos fracassos que precederam o 7 de Outubro e, no geral, da fracassada estratégia israelense, a relação com os terroristas presos é um dos componentes da fracassada estratégia israelense.

Dado que na sociedade árabe-palestina a questão dos presos desperta sensibilidades, sempre se considerou em Israel, em particular no Shin Bet e na Aman, que se os presos começassem a reclamar, isso aumentaria ainda mais a pressão internacional exercida sobre Israel e levaria a diversos tipos de desordem, sobretudo em Gaza e na Cisjordânia. E pra que isso não gerasse desordens, seria preciso lhes proporcionar condições altamente confortáveis. Assim, o princípio de que se ao menos não houvesse a guerra ou a escalada, voltaríamos até a tais condições de encarceramento ao invés de uma prisão rígida, é uma total blasfêmia.

Essa abordagem predomina há décadas. Nenhuma luta social conduzida por uns e outros ativistas ajudou. Pro Shin Bet era importante que eles não reclamassem. Espero que também depois dessa guerra e com o correr dos anos, essa abordagem que pressupõe um receio diante do que os terroristas palestinos realizam na cadeia e que isso levaria a uma nova intifada seja categoricamente abolida. A punição deve ser substancial, e como considero pessoalmente, o encarceramento deve ter o máximo de rigidez, ter o mínimo do mínimo das condições mencionadas por certas regulações internacionais de detenção. Naturalmente elas devem ser obedecidas, mas nem um grama a mais.

Mas quanto a como e quem é detido e a intromissão do sistema judiciário nessa questão, já é outra história. Ocorreram determinadas mudanças substanciais pra melhor, basicamente quando já tinham começado as operações militares após o ataque do Hamas. Melhor assim, pelo menos.



Sabá Bodó “ensinando a história de Israel” a Nhô Barghothi...

segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Estoicismo no lugar das religiões?


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Tenho evitado republicar artigos de grandes veículos de mídia, mas como compartilhei uma cópia adaptada pra contatos no WhatsApp, desta vez decidi trazer este aqui. Em texto publicado na Folha de S. Paulo em 13 de dezembro de 2025, Hélio Schwartsman comenta o livro Stoic Stories (Histórias estoicas), do psiquiatra, filósofo, escritor e educador britânico Neel Burton. Ele argumenta que a recuperação da filosofia estoica poderia, de alguma forma, suprir (com uma nova ética?) o vazio deixado pelo recuo das religiões no Ocidente.

Sinceramente, isso me parece mais uma “modinha” que logo vai ser deixada de lado em prol da primeira tábua que as mentes desorientadas encontrarem no mar. Veja o caso do neoateísmo no início da década de 2010, por exemplo, que recuou como movimento porque não conseguiu se organizar de forma atraente, coerente e consciente: até a tentativa do filósofo francês Alain de Botton de fundar “templos ateus” deve ter ido pro saco por falta de quórum... Sem mais, seguem o artigo e a ilustração original:



- Livro Histórias estoicas traça retrato do estoicismo através de episódios da vida de personagens como Cícero, Sêneca e Marco Aurélio
- Movimento estoico pode preencher vácuo deixado pelo esvaziamento de religiões em certos meios no Ocidente

A religião grega era essencialmente ritualística. Estipulava quantos bois você precisaria sacrificar para qual deus, mas não dizia muito sobre como cada um de nós deveria se comportar ou reagir aos acontecimentos da vida. Para isso, era necessário recorrer a filosofias.

E filosofias não eram um gênero escasso na Grécia Antiga. Só de Sócrates brotaram várias escolas de pensamento. Seu sucessor mais célebre é Platão, que fundou a Academia, onde estudou ninguém menos do que Aristóteles, criador do Liceu.

Mas de Sócrates também vieram Antístenes e a tradição ascética, que redundaria no cinismo, e Aristipo, fundador da escola cirenaica, que defendia um hedonismo muito mais radical do que o de Epicuro, que acabou carregando, injustificadamente, a má fama da busca pelos prazeres.

Entre esses dois extremos, temos uma miríade de tradições filosóficas também tributárias de Sócrates, com destaque para o ceticismo e o estoicismo. Este último alcançou enorme sucesso em Roma, onde acabou se tornando quase que a filosofia oficial das elites do império. Um dos imperadores, Marco Aurélio, é também um importante autor estoico.

Stoic Stories, do prolífico Neel Burton (já comentei outro livro dele aqui), faz essa genealogia e compõe uma boa história do estoicismo e sua busca pela ataraxia, a quietude da alma, através de episódios da vida de personagens como Zenão de Cítio, Catão, Cícero, Sêneca, Epicteto e outros, inclusive figuras míticas como Hércules e Creusa.

O estoicismo foi perdendo tração à medida que encontrou um competidor no cristianismo, um pacote que já combinava religião com filosofia. Mas isso não quer dizer que o estoicismo não tenha influenciado vários pais da Igreja Católica. Burton também conta essas histórias.

No que muitos podem ver como uma espécie de vingança, Burton sugere que estaria havendo agora uma alta no interesse pelo estoicismo justamente porque ele seria uma forma de preencher o vácuo deixado pelo esvaziamento da religião cristã em certos meios do Ocidente.



sábado, 13 de dezembro de 2025

Lukashenka elogia força de Hitler (1995)


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Volta e meia estes vídeos são regurgitados do esgoto autocrático que Belarus foi se tornando desde 1994, quando Aliaksandr Lukashenka (eu escrevo o nome em belarusso, e não no russo “Aleksandr Lukashenko”) venceu as únicas eleições livres pra presidente do país recém-independente. A antiga RSS da Bielorrússia elegeu o populista e ex-gestor de fazenda estatal soviética (sovkhoz) que prometia acabar com a corrupção, mas logo de cara já mandou prender, perseguir, exilar, torturar e matar opositores políticos. Isso, em meio a opiniões “intelectuais” no Ocidente o pintando como um antifascista respeitoso da antiga “glória” da “pátria do proletariado internacional”.

Esse “antifascista” deu uma entrevista em 1995 ao jornal alemão Handelsblatt, na qual em certo momento elogiou o “poder férreo” com que o Adolfo levou a Alemanha a seu “ponto culminante” em séculos e, como que antevendo como seria seu mando, disse que esse poder equivalia a sua “compreensão” do presidencialismo. Dizer coisas positivas sobre o adolfismo dá tão ruim entre os próprios alemães que o periódico sequer publicou esse trecho escrito, temendo enroscos judiciais. Contudo, na rádio estatal belarussa a íntegra foi ao ar, provavelmente causando náuseas entre famílias cujos antepassados estiveram entre os primeiros a sofrer o ataque do Reich ao enorme território soviético em 1941.

Tempos depois, tentando se explicar, “a emenda saiu pior que o soneto”, como dizemos aqui, e o tirano só conseguiu tecer ainda mais loas ao pintor austríaco frustrado. A rádio e TV “Nastoiascheie vremia” (também conhecida como “Current Time”) fez uma boa edição do áudio há alguns anos, e foi a partir de suas legendas que consegui traduzir e colocar cada trecho em um parágrafo:


A história da Alemanha, em algum grau, é uma réplica da história de Belarus em determinadas fases. A seu tempo, a Alemanha foi reerguida das ruínas graças a um poder muito férreo. E nem tudo foi apenas ruim na Alemanha com relação ao famoso Adolf Hitler. Pois a ordem alemã levou séculos pra ser formar. Sob Hitler essa formação atingiu seu ponto culminante. É isso que corresponde a nossa compreensão da república presidencialista e, nela, do papel do presidente.

Lukashenka teria elogiado Hitler um dia. Mas eu já falei sobre isso, é uma insensatez absoluta. Se eu tivesse feito isso em Belarus, talvez eu já nem fosse mais presidente há muito tempo. É uma falsificação corriqueira, a mais autêntica falsidade forjada na Polônia com a colaboração de nossos opositores e colaboradores da CIA.

O que eu não declarei? Eu falei sobre Hitler. Bem, havia um fascista no poder. Bem, havia no poder o mais autêntico idiota que aniquilou muita gente, mas unificou a nação. Unificou por meio de um poder férreo nessa fase. Deu resultado? Por isso não se deve me maldizer porque queremos ter na República de Belarus um sério poder férreo.


Mas, como não há mal que dure pra sempre, recebemos neste sábado uma excelente notícia! Num quadro de negociações com os EUA, a quem Lukashenka está recorrendo pra aliviar as sanções, a ditadura belarussa libertou 123 presos políticos, entre os quais alguns famosos, como os políticos Andrei Babaryka e Marya Kalesnikava (na foto) e o Prêmio Nobel da Paz de 2022, Ales Bialiatski. Desses 123, 114 foram pra Ucrânia, recebidos pela organização estatal “Eu Quero Viver”, que ajuda desertores russos fugindo das hordas invasoras ou dos territórios ucranianos ocupados.

Analistas políticos consideram que esse pode ser um passo pra uma tímida liberalização, mas reiteram que, antes de constituírem solturas, esses indultos são antes um exílio forçado, pois os belarussos não são deixados na terra natal, mas mandados contra a própria vontade pra países vizinhos.

Aproveito pra fazer dois adendos em 19/12/2025. O primeiro é esta notícia do portal dissidente Khartya ’97, que traz o vídeo completo da conversa via videoconferência entre o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky e os presos políticos belarussos que tinham acabado de ser libertados no domingo. A maioria dos libertos fala em russo, mas o segundo deles fala em belarusso, e Zelensky declara que entende a língua muito bem e sequer pensava que era capaz disso. Claro que sim: o belarusso compartilha muito mais traços com o ucraniano do que com o russo, sobretudo no vocabulário. E é interessante que o presidente lhes fala em ucraniano (que também é mutuamente compreensível), ao invés de falar em russo, sua língua materna, hoje manchada pela agressão genocida de Putler.

Segundo adendo, pelo qual agradeço à amiga Volha Franco: se você estiver em Belarus, cuide de sua segurança! Existe um portal (em inglês, italiano, belarusso, russo e polonês) da associação que protege os direitos humanos, ajuda os presos políticos no país e informa os interessados no assunto. Divulgue entre seus contatos, sobretudo aqueles defensores alienados de Lukashenka e Putin que ainda os consideram “líderes fortes anti-imperialistas”!

Acesse ou guarde também o endereço reserva, o canal do Telegram, o bot do Telegram e o perfil administrador, pra perguntas em geral. Divulgue e leve a sério mesmo, pois serviços desse tipo podem savar vidas quando um país é transformado num campo de concentração a céu aberto. E lembre-se, nenhum estrangeiro está a salvo, pois a qualquer momento, por qualquer pretexto, pode ser preso por um crime inventado e ser usado como moeda de troca com seu país de origem!


domingo, 7 de dezembro de 2025

Pra assessor de Putin, capivara inexistia


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Em seu boletim semanal ironicamente chamado Notícias Terríveis, o editor-chefe da Novaya Gazeta Evropa (exilada em Riga, capital da Letônia), Kirill Martynov, sumariza informações sobre os crimes de guerra da Rússia na Ucrânia, a escalada da repressão no próprio país natal e, pra dar alguma leveza, curiosidades mais ou menos ligadas à reconfiguração belicista do Estado moscovita e que beiram o ridículo. Uma dessas que publiquei há alguns dias foi a presidente do Senado russo, Valentina Matvienko, dizendo que a ajuda humanitária à URSS durante seu colapso, sobretudo a distribuição das famosas “coxinhas de Bush”, foi parte de uma “guerra híbrida” contra a perdedora da “guerra fria”. Matvienko é a mesma que há quase dois anos propôs a criação de um “Ministério da Felicidade”, imitando a iniciativa (fracassada) do Butão.

Desta vez foi o historiador Vladimir Medinski, assessor pessoal de Putler e presente em negociações diretas com a Ucrânia (nas quais, pelo nível da delegação de Kyiv, deviam estar no mínimo o próprio ditador ou o sumido Sergei Lavrov, ministro do Exterior), que passou ridículo até mesmo na agência oficial TASS e na agência privada RBC, que só segue o fluxo porque não tem alternativa. Segundo as manchetes, ele assumiu que até sua filha lhe mostrar fotos da internet, pensava que as capivaras eram bichinhos fofos criados como personagens fictícios, ao modo da “Cheburashka” soviética ou dos atuais “labubus” chineses. A diretora do Zoológico de Moscou não deu ponto sem nó e aproveitou a deixa pra dar aquela chupada de saco no poder, convidando Medinski pra um “passeio didático” junto às capivaras!

Realmente, não fosse talvez a própria margem que a imprensa amordaçada se dá pra zombar levemente do regime terrorista, seria uma “não notícia” que no máximo passaria pros livros de memórias a serem fuçados por historiadores do futuro e sem grande interesse geral. Os putinistas bananeiros da blogosfera lulaminion certamente vão me condenar por estar zoando de uma “curiosidade intelectual legítima”, que poderia ocorrer com qualquer pessoa longe de um continente com animais desconhecidos. Mas se fosse um político de direita ou extrema-direita, a começar pelo presidiário Jair Messias, ou o governante de uma democracia ocidental, ah, sem dúvida que a ex-querdalha hipócrita ia se refastelar!

Medinski não é apenas um capacho do Kremlin, mas um verdadeiro ideólogo da deturpação histórica realizada em prol do “mundo ruSSo” neste primeiro quarto de século. Até mesmo historiadores sérios já fizeram longos requisitórios condenando seu nacionalismo radical e apontando erros em sua própria tese de doutorado. Ele já apareceu por aqui, quando abordei sobre os novos manuais escolares de História que louvavam Putler (não faltando, claro, espaços com citações do Grande Líder), mentiam sobre a agressão à Ucrânia e apresentavam mapas como se as quatro regiões ilegalmente invadidas (mais a Crimeia) já integrassem inteiras o Império. Sobre a Cheburashka, apelidada de “Mickey soviético”, eu também já trouxe um vídeo em que Denis Morokhin mostra que a economia era tão mal planejada que faltava até esse bichinho preferido das crianças.

A situação, certamente edulcorando a dura realidade da anexação imperialista assassina e o grande GULAG a céu aberto em que está de novo se transformando o país, também foi lembrada em memes como este, após o qual seguem as respectivas matérias da TASS e da RBC:



(Medinski) “Isso é uma capivara?”


Medinski falou sobre sua experiência de conhecer capivaras – O assessor do presidente da Rússia confidenciou que até recentemente não sabia que se tratava de animais de verdade.

Vladimir Medinski, assessor do presidente da Federação Russa e presidente da Sociedade Histórico-Militar da Rússia, contou à Agência TASS sobre sua experiência em conhecer capivaras, observando que até recentemente não sabia que eram animais de verdade.

“Antes eu pensava que a capivara era um bicho de pelúcia, algo peludinho [mokhnátoie] como a Cheburashka. Mas recentemente descobri que a capivara é um animal. Minha filha me esclareceu e me mostrou fotos”, confidenciou.

Ele disse que agora está planejando conhecer capivaras pessoalmente. “Por isso, ela e eu vamos agora fazer um passeio pra ver capivaras”, anunciou Medinski.

“Vivendo e aprendendo”, concluiu. [Essa frase consiste no ditado russo “Vek zhiví, vek uchís”, lieralmente “viva um século, aprenda um século”, que tem o mesmo sentido e se costuma traduzir como fiz acima. O Google também deu a curiosa tradução “Aprender com a experiência”.]


O Zoológico de Moscou convidou Medinski pra conhecer as capivaras

A diretora do Zoológico de Moscou, Svetlana Akulova, demonstrou interesse no desejo do assessor presidencial Vladimir Medinski de aprender mais sobre capivaras e convidou o político pra visitar o zoológico pessoalmente.

“Teríamos o maior prazer em lhe apresentar essas mesmas capivaras, lhe mostrar outros animais incríveis e simplesmente passar um ótimo momento juntos”, escreveu Akulova em seu canal no Telegram.

A diretora do zoológico também compartilhou a história de como conheceu Medinski: foi no Museu de História Militar da Sociedade Histórico-Militar da Rússia, instituição cujo presidente é Medinski.

“E como é ótimo quando nós, adultos, continuamos aprendendo e descobrindo mundos inteiros”, observou Akulova.


Achei fofo como Kirill Martynov terminou aquela edição das Notícias Terríveis, portanto, estou traduzindo a fala final dele após a “notícia” sobre Medinski e a “kapibara” (como a palavra entrou na língua russa). Onde diacho será que ele achou esse boneco de pelúcia?...

“Queria dizer a Medinski: as capivaras existem, existem capivaras, entende? São uma parte importante da fauna em geral. Na real, gaste mais tempo em autoaprendizagem, gaste menos tempo legitimando guerras agressivas. Embora isso talvez já não o ajude. Né, capivara?”


sábado, 29 de novembro de 2025

Guerra híbrida à URSS com coxa de frango


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Os delírios da elite política da Rússia em estado de guerra genocida e expansionista, recheados de revisionismo histórico, apelo aos instintos e distorções fatuais – como não podia deixar de ser num embate psicológico –, se tornam cada vez preocupantes quando lembramos do tamanho de seu exército e de seu arsenal nuclear. Porém, como inteligência nem sempre é o forte dessa gente, algumas declarações beiram o cômico, o ridículo ou o constrangedor, não sabemos se visando fazer cortina de fumaça ou se resultando de um clima realmente sufocante e opressivo.

A presidente do Conselho da Federação russo (equivalente a nosso Senado Federal, mas sem voto popular), Valentina Matvienko, aí alojada por Putin, de preferência, pra não sair mais, disse esta semana que a ajuda humanitária concedida pelos EUA à URSS e, depois, à Rússia na sequência do colapso da economia nacional planejada foi uma forma de “sabotar o país”. Embora eu já tenha mostrado aqui, em traduções de textos da Novaya Gazeta Evropa (transliteração deles mesmos), que o modelo soviético foi um dos maiores terraplanismos sociais e econômicos da história recente, a senil burocrata culpou as “coxinhas de Bush” (nozhkí Búsha, literalmente “perninhas de Bush”) de fazerem mal à população por serem insalubres.

Essa é parte de mais um recente movimento do ditador em acusar o Ossidentx Mauvadaum de todos os suplícios vividos por aquele seu mundinho que começou a entrar em colapso logo depois que ele quase foi linchado após uma multidão em Dresden ter tentado invadir a sede local do KGB. As marionetes nos diversos órgãos, obviamente, não só devem repetir o mesmo discurso, como também o vocalizar abertamente, às vezes o temperando com ridículos idiossincráticos indignos de um chefe de guerra que ergueu vários palácios privados com dinheiro de corrupção. É claro que não houve nenhum “plano Marshall”, como após 1945, mas o irônico é que o famigerado Til Çan, vendo a ruína a que o Gosplan tinha levado o antigo império, resolveu acionar o hoje extinto USAID pra dar nem que fosse uma palha, mas nem por isso a máfia do Kremlin tem o escrúpulo de ser grata.

Também é claro que o USAID não era nenhuma casa de beneficência, pois os pacotes de “ajuda humanitária” vinham sempre muito bem rotulados com odes à pátria da liberdade e dos direitos humanos. Porém, cabe destacar que as “coxinhas de Bush” (em referência não ao “Bush filho” que invadiu o Iraque e o Afeganistão, mas a George H. W. Bush, republicano que governou o Zesteite de 1989 a 1993 e conseguiu perder a reeleição pro amigo de Jeffrey Epstein pra Bill Clinton, jovem governador do Arkansas e totalmente ignorante em questões internacionais) ficaram na memória e nas anedotas dos russos até hoje. Alguns dos escritores que as citaram em livros recentes foram Sergei Aleksashenko, economista exilado que escreveu um calhamaço sobre a janela de oportunidade perdida pra construção de boas relações entre Washington e Moscou de 1991 a 1995, e, se eu não me engano, Aleksei Navalny, em suas memórias póstumas. Mas mesmo a imprensa exilada se questionou por que Matvienko teria do nada se lembrado dessa iguaria, em meio a reflexões geopolíticas tão complexas...

Será que ela ainda não tinha almoçado? Será que por azar comeu algum chicken estragado e teve, mais de 30 anos atrás, um inolvidável piriri mais doloroso que a guerra da Chechênia? Ou será que simplesmente o poder ou a vodca lhe subiram à cabeça? Sem mais, seguem dois textos que traduzi diretamente do inglês (pra ir mais rápido e evitar o Google), um do portal oposicionista belarusso Khartya ’97 e outro do site de notícias PolitNavigator, no qual há também o original russo:



Presidente do Conselho da Federação russo fala sobre as “coxinhas de Bush”

Valentina Matvienko disse que os EUA enviaram ajuda humanitária na década de 1990 visando destruir a economia russa.

Os americanos usaram a ajuda humanitária na década de 1990 supostamente como uma ferramenta pra levar a economia russa ao colapso, disse a presidente do Conselho da Federação, Valentina Matvienko, numa entrevista ao jornal Moskóvski komsomólets. Ela citou o exemplo dos carregamentos de coxas de frango, popularmente chamados de “perninhas de Bush” – em alusão ao sobrenome do então presidente dos EUA. “Você acha que eles estavam nos enviando por mera caridade? Eles estavam então solapando nossa agricultura, destruindo nossas granjas ao enviar produtos que eram mais baratos”, disse Matvienko.

Ela acrescentou que os EUA também estavam “prejudicando a saúde” dos russos ao trazer coxas “cheias de antibióticos, hormônios e todo tipo de porcaria”. Porém, ambas as afirmações são falsas. Por exemplo, nos EUA, o uso de hormônios em frangos de granja foi proibido por lei em 1972, enquanto o uso de antibióticos é comparável ao praticado na Rússia. Além disso, os americanos participaram na restauração da agricultura russa, que estava em profunda crise após o colapso da URSS, ao investir milhões de dólares em projetos conjuntos e fornecer equipamento e tecnologia. As atuais granjas domésticas, em ampla medida, copiam as americanas.

Na mesma ocasião, Matvienko argumentou que a Rússia tem sofrido “ao longo da história” tentativas de isolamento externo e restrição a seu desenvolvimento. “Temos todos juntos vivido, ontem e ainda hoje, em condições de guerra híbrida”, afirmou. Porém, na mesma entrevista, ela admitiu que a crise na década de 1990 foi predominantemente interna: tinha “a ver com a sobrevivência de um Estado gravemente doente que não podia mais desempenhar suas funções básicas”, atrasava pensões e salários e cuja sociedade vivia na incerteza e com um sentimento de desesperança.

Recentemente, Vladimir Putin alegou que a ajuda humanitária vinda do Ocidente na década de 1990 supostamente teria causado problemas aos industriais dentro da Rússia. “A coisa boa, a ajuda humanitária, veio, mas nossos produtores internos morreram porque não podiam vender seus produtos. Foi o lado reverso de intenções aparentemente boas”, afirmou.


Matvienko: as “coxinhas de Bush” foram parte de uma guerra híbrida contra a Rússia

O fornecimento de coxas de frango na década de 1990 não foi ajuda humanitária dos EUA, mas parte de uma guerra híbrida contra a Rússia.

Foi o que afirmou Valentina Matvienko, presidente do Conselho da Federação, em entrevista ao Moskóvski komsomólets, conforme relato de um correspondente do PolitNavigator:

Enquanto de fato nos tornávamos uma sociedade tão democrática, aberta e – vamos dar nome aos bois – pró-ocidental, uma guerra híbrida continuava sendo conduzida contra nós, e não somente em termos de separatismo.

Eles começaram nos enviando as “coxinhas de Bush” como uma dita ajuda humanitária, lembram? Eram cheias de antibióticos, hormônios e todo tipo de porcaria.

E você acha que eles estavam nos enviando por mera caridade? Eles estavam então solapando nossa agricultura, destruindo nossas granjas ao enviar produtos que eram mais baratos, mas prejudiciais à saúde de nossos cidadãos.


segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Bolsonaro peidou no isqueiro???


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Todos que não passaram o finde na Lua sabem das últimas notícias políticas da Banânia e daquela a que estou me referindo. Sabendo como nossa Justiça funciona com políticos e gente graúda, meu receio é que o Jeno possa ser solto a qualquer momento (se já não tiver sido, depois desta publicação ter sido programada) por se tratar de prisão preventiva, e não de cumprimento de pena. (Me perdoem por qualquer imprecisão que revele minha ignorância em direito.)

Mas o assunto principal aqui é como a criatura não só consegue ser idiota, mas também fazer coisas completamente idiotas e ter uma “família” que só o sabota a todo momento, sobretudo quando sua situação é totalmente delicada. Acho que é difícil encontrar um paralelo de patetice na história nacional e universal: em ambos os âmbitos, houve assassinos, tiranos, ladrões e golpistas, mas quase nenhum que eu me lembre tinha tamanha habilidade em se dar tantos tiros no pé, ainda mais numa época em que hoje tudo cai nas redes sociais!

Não sou tão velho assim, mas já vi muita coisa ruim acontecer na política tupiniquim, vinda ou não desse ser que nos concerne hoje. Mas no último sábado, não bastasse o baita pretexto dado pela “vigília de oração” em frente a sua casa, o Bunda Suja dizendo que tentou arrebentar a tornozeleira eletrônica com um ferro de solda “só por curiosidade, pra ver o que acontecia” é muito mentalidade “quinta série” desses vídeos trash caseiros e de baixa qualidade gráfica que circulavam por e-mail na primeira metade dos anos 2000.

Se é verdade, como li no Jeum deste domingo, que ele teria feito isso, segundo seus “apoiadores”, num surto provocado por remédios (ajuda aí, Lô Borges!) ou por falta de sono (tipo de quem teme ser enjaulado numa suíte Premium), minha cabeça bugou mais ainda. Sem mais, escolha sua versão:





Talvez seja ou será raro encontrar um ex-dirigente de qualquer país, que tenha se revelado tão trapalhão e sem noção durante a vida. Nem mesmo o alcoólatra e tabagista Jânio Quadros, indeciso e histriônico que lançou o Brasil no caos institucional culminado no golpe civil-militar de 1964, protaginizou um roteiro tão rocambolesco. A filmagem da agente da PF conversando com a criatura na linguagem de uma diretora de escola básica (“Que horas o senhor começou a fazer isso, seu Jair?”) e ele respondendo como um retardado constituem a prova eterna pra história:






Falando em isqueiro e incêndios indesejados, este momento da COP 30 em Belém serve muito bem de exemplo do que o Jeno não deveria fazer, embora o objetivo, ocultado por toda a mídia hegemônica e alternativa, fosse completamente nobre: exibir uma “nova” tecnologia que buscasse evitar os combustíveis fósseis, a começar pelo “Carvão Turcão, o melhor da região”...


sábado, 22 de novembro de 2025

Russa: “Viver 50 já tá ruim, imagine 150”


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Uma curtinha pro feriado prolongado.

Há alguns meses, viralizou uma conversa (não tanto) em off entre Vladimir Putin e Xi Jinping, decifrada por leitura labial, em que o ditador moscovita lhe confidencia que a ciência estaria em medida de prolongar a vida humana até os 150 anos. Sabe-se lá de onde ele tirou esse delírio e qual é sua preocupação com isso, dado que o mundo tem muitos outros problemas urgentes pra resolver, esses sim, passíveis de encurtar a vida muito aquém do possível. O vídeo causou bastantes piadas, mas fico pensando se isso não é uma vontade própria, pessoal, pra aproveitar ao máximo toda a roubalheira que ele arrancou ao povo russo, o que não vai conseguir, por ser mortal e não ter verdadeiros amigos.

Povo russo que já está sentindo na carne as consequências da interminável invasão à Ucrânia e sofrendo com inflação, doenças mentais, liberdades tolhidas, perda de entes queridos e isolamento internacional. Discretamente, o canal opositor Sotavision (YouTube) entrevistou populares nas ruas do país pra saber o que eles pensam dessa maluquice do ditador. A maioria, obviamente, respondeu que não só seria antinatural, como também não valia a pena prolongar a vida. Mas esta resposta, que separei usando a republicação da Radio Svoboda, mostra a referida angústia, embora não se saiba qual é a idade da mulher e qual é sua situação geral:


– Vladimir Putin disse que as pessoas poderão viver até 150 anos. A senhora gostaria de viver até os 150?

– Com essa vida, prefiro é viver só até os 50.

– Mas o que há de errado?

– E o que NÃO HÁ de errado?


Na Rússia que conheceu Boris Ieltsin, até os robôs têm que cair de bêbados, rs!


quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Aidda Pustilnik: Agora a moda é o autismo


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Minha mãe compartilhou comigo este vídeo de uma psicóloga jurássica que vende oferece uma “terapia detox” coletiva consistindo em ficar dias confinados num sítio dela, sem falar nada e olhando um pra cara do outro... E ai de você se der o menor pio até com o jardineiro!

Tem gente que vai concordar com o conteúdo que selecionei abaixo, e realmente a mensagem é interessante: diagnósticos são coisa séria, remédios não devem ser prescritos a torto e a direito e traços congênitos não podem servir de desculpa pra defeitos de caráter! Outros obviamente vão achar “politicamente incorreto” e a acusar de capacitismo.

Julgue você mesmo, e lamente com ela: “Ah, os esquizoides...”, kkkkk:










sábado, 8 de novembro de 2025

João Quartim e os “amigos do povo”


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Na edição mais recente da revista Crítica Marxista (n.º 58), publicada pelo IFCH da Unicamp, foi publicado um artigo do professor João Quartim de Moraes intitulado “As posições filosóficas de Lênin” (com circunflexo mesmo). Nesse texto, ele expõe os princípios básicos da filosofia do revolucionário russo, percorrendo os principais escritos de sua vida, e já começa taxativo: “A filosofia está presente do começo ao fim da obra de Lênin.” Prolífico escritor e expositor, Quartim também é famoso por seus livros sobre os militares brasileiros e a política, especialmente aqueles setores fardados identificados com a esquerda.

Suas primeiras observações tratam do ataque de Vladimir Lenin (de fato, uma de suas primeiras polêmicas) aos narodniks, uma das correntes da esquerda russa no século 19 que não se identificava com o marxismo. A primeira nota de rodapé já contém uma observação interessante e a transcrevo na íntegra: “O título habitual dessa obra nas traduções em língua portuguesa não é O que são, mas Quem são os ‘amigos do povo’. Não conheço a língua russa, mas parece-me que as traduções para o inglês (What the ‘Friends of the People’ are) e o francês (Ce que sont les ‘amis du peuple’) oferecem um melhor sentido, a saber, O que são. Não se trata, com efeito, de identificar quem são os ‘amigos do povo’, perfeitamente conhecidos, a começar de Mikhailovski, mas de mostrar quais são suas ideias e refutar a superficialidade e a má-fé da crítica que fazem ao marxismo.”

O sublinhado é meu, e embora eu respeite o professor, com quem já tive bons intercâmbios, e considere altamente sua obra (especialmente a organização e as contribuições pra coletânea História do marxismo no Brasil), ando meio cansado desses especialistas em alguma coisa que não se põem, porém, a aprender o idioma relativo àquilo de que tratam. Não acho que esse seja o caso de Quartim, pois muito boas análises podem ser feitas a partir de traduções, as quais, aliás, servem pra isso mesmo. Contudo, não estamos falando de um mero militante, curioso ou não especialista que precisa fazer uma consulta rápida. Estamos falando de alguém que estuda profundamente um autor, um sistema de ideias e uma época, mas desconhece a língua em que foram expressados.

Imagine estudar Shakespeare, Hume ou Burke sem saber inglês, imagine pesquisar sobre Molière, Voltaire ou Comte desconhecendo o francês. Há décadas as universidades estaduais paulistas oferecem programas de ensino de russo, e hoje não é difícil encontrar online professores, aplicativos ou materiais diversos. Até Marx, perto do fim da vida, se pôs a aprender russo pra entender melhor o império tsarista, com cujos súditos socialistas trocava cartas. Mais uma vez, essa não é uma crítica direta a Quartim, muito menos à qualidade de seu artigo, ai de mim! Decidi apenas trazer hoje aqui um e-mail privado que lhe mandei apenas como comentário àquela nota de rodapé, fornecendo alguns lampejos gramaticais interessantes a respeito de sua própria dúvida sobre a melhor tradução. Além disso, achei que a mensagem podia ser de interesse público por conter outras informações estimulantes.

Ainda não recebi nenhuma resposta, se é que ela realmente vai chegar um dia. Quartim é de uma geração de “velhos guerreiros”, combatentes da ditadura civil-militar de 1964-85, portanto, não posso julgar seus conhecimentos linguísticos. Contudo, me preocupa que uma geração relativamente mais nova de pesquisadores e polemistas queira ter a última palavra (geralmente asquerosa) sobre assuntos bem mais sérios, mas igualmente se contenta com fontes indiretas traduzidas pro inglês, francês ou espanhol. E isso vale, com raríssimas exceções, pra inúmeros recém-formados “especialistas” em URSS e ideologia bolchevique.

Arlene Clemesha e Breno Altman (um jornalista, e não um historiador!), por exemplo, mentem aos quatro ventos sobre a história do sionismo e instilam insidiosamente o antissemitismo entre as “ex-querdas”, mas sequer leem árabe ou hebraico. Ele, pela natureza da formação, não tem Currículo Lattes, mas ela informa apenas que “lê razoavelmente” árabe, isto é, pode nem sequer entender pra acompanhar canais de notícias, e ambos, salvo engano, desconhecem o hebraico. Quebram aquela velha regra do método científico: se você quer falar sobre Israel, simplesmente ache um israelense e ouça sua opinião. Recentemente, também soube de uma doutoranda que pesquisa o feminismo iraniano, mas recorre quase sempre a versões francesas de uma revista porque seu persa ainda é incipiente.

Rigorismo? Despeito? Não, apenas honestidade, pois infelizmente esse problema é crônico na academia brasileira e demonstra como estamos formando apenas repetidores de terceiros, e não pesquisadores genuínos que criam conhecimento original direto das fontes. É minha concepção de mundo, e acabou. Se você não gosta de aprender idiomas, não seja historiador. Dito isso, segue a carta ao filósofo do Cemarx, por quem reitero meu profundo respeito.



Caro professor Quartim,

Folheando a última edição da revista Crítica Marxista, somente agora tive a oportunidade de me deparar com seu artigo sobre as réplicas de V. I. Lenin em 1894 aos populistas, como também são conhecidos os naródniks. Com todo respeito que guardo por seu trabalho de professor e pesquisador, gostaria de comentar as dúvidas que expressa em nota inicial sobre as diversas traduções do título da obra.

Sim, literalmente a tradução “O que são...” se justifica melhor do que “Quem são...”. Em russo, o início do título (não há problemas com o resto) é “Что такое...” (Chto takóie...), expressão que se refere, segundo o Wikcionário russo, a seres inanimados. Ou seja, neste caso, provavelmente ao grupo e às ideias, e não à identidade individual de seus adeptos.

Ressalto que a ausência do verbo “ser” no presente, característica das línguas eslavas orientais, compensa-se por meio de vários idiomatismos não traduzíveis literalmente nas línguas euro-ocidentais. Embora o uso do pronome “takóie” (aqui neutro singular) tenha essencialmente uma função enfática, ele também é muito usado para pessoas nas formas “takói” (masc. sing.), “takáia” (fem. sing.) e “takíe” (plural): “Kto takói... ” etc. Naturalmente, “kto” significa “quem" e “chto”, “o que”.

Confirmo também que o segundo volume da brochura se perdeu, isso não é uma suposição. Sendo uma das primeiras obras de Lenin, impressa e divulgada na clandestinidade, deve ter sofrido as vicissitudes a que tal situação impele. E se contarmos todo o turbilhão que se tornaria a história posterior da Rússia e da URSS, creio que o volume só poderia aparecer por um milagre. É o que informam o verbete da Wikipédia em russo sobre a brochura e o final da nota introdutória (p. 577) numa das versões em HTML da edição de 1967 das Obras completas.

É interessante que, segundo a Wikipédia, embora o segundo volume tenha se perdido, as mesmas teorias político-econômicas teriam sido expostas por Lenin no texto “Características (ou Caracterização) do romantismo econômico” (1897), também polemizando contra os populistas liberais. Na mesma versão italiana (mas não na russa, curiosamente), lemos que “O que são...” foi publicado anonimamente, o que nos leva à questão da adoção do pseudônimo “Lenin”.

Posso estar “ensinando o Pai-Nosso ao vigário”, mas “Vladimir Ilitch” aparece várias vezes em seu artigo como o nome verdadeiro do russo. De fato, sendo “Ilitch” (ou Ilich, Ilyich), i.e. “Ильич”, seu patronímico, a parte do nome formada com o prenome do pai (neste caso, uma forma irregular derivada de Iliá = Elias), é comum que ele seja mencionado, mesmo ausente, como “Vladimir Ilich” por uma questão de respeito. Essa também é a forma polida com que nos dirigimos a um desconhecido ou pessoa sem intimidade, no lugar de nosso “sr./sra. + sobrenome”.

Até hoje, chamar alguém em russo usando “gospodín” (sr.) ou “gospozhá” (sra.) antes do sobrenome é considerado rude e indicador de distanciamento, exatamente como Lenin faz no original de “O que são...” ao se referir a seus oponentes. Na própria Wikipédia russa, descontando as citações de terceiros, há alternâncias entre “Vladimir Ilich”, “Vladimir Uliánov” (que era seu sobrenome) e “V. I. Ulianov”. Calcula-se que, durante sua vida, ele tenha usado mais de cento e cinquenta pseudônimos, embora ele assinasse, já no poder, os documentos partidários e estatais como “V. I. Ulianov (Lenin)”.

É apenas uma observação à parte, mas tive receio de que, caso não conhecessem mais detalhes sobre a biografia de Lenin, os leitores viessem a pensar que “Ilitch” fosse seu sobrenome, no sentido que damos a isso. (E não por acaso, “sobrenome” em russo se diz “família/фамилия”...)