Eu lancei esta publicação originalmente em 8 de setembro de 2018, quando ainda tinha estudado muito pouco a história da chamada “Confederação da Rus” (Русь), uma ligação de principados que durou do século 9 até o ano de 1240, quando ela se dissolveu diante da invasão do Império Mongol (a famosa “Horda Dourada”). Essa história veio ainda mais à tona quando Putin invadiu a Ucrânia em 2022, trazendo todos os velhos temores de apropriação da herança eslava oriental exclusivamente por Moscou. Mas resolvi republicar o conteúdo com pequenas modificações não porque agora tenho a resposta “definitiva”, e sim porque acabei escrevendo um texto bastante longo pra amigos, explicando qual é o sentido do “Bielo-” ou “Bela-” no nome de Belarus (antiga Bielorrússia) e qual era a relação daquela Rus ou “Rússia” com a moderna Federação Russa.
Ao ler as primeiras páginas da recente tradução russa (com atualizações) do livro do historiador ucraniano Serhii Plokhy sobre a guerra russo-ucraniana, publicado originalmente em 2023, me vieram várias iluminações sobre a questão da sucessão da Rus. Só pra adiantar: todos os três povos eslavos orientais (quatro, se somarmos os russinos, erroneamente chamados rutenos) são seus herdeiros, mas nenhum Estado da época é seu continuador ininterrupto. Se belarussos e ucranianos caíram sob diferentes jugos pra depois serem incorporados ao império tsarista, este tem raízes que remontam ao Grão-Ducado de Vladimir-Suzdal (1125-1389), em referência a suas duas capitais sucessivas, apenas um dos remanescentes da Rus em sua porção noroeste.
O Principado de Moscou, cidade até então sem grande significado próprio, tinha sido fundado em 1263, mas dada a pressão mongol, que destruiu a maior parte do grão-ducado, o soberano teve de se transferir pra Moscou, que então ganhou proeminência sobre suas rivais. Elevado a Grão-Principado em 1389 e considerado o embrião do país atual (língua, cultura), Moscou expandiu seus domínios até o famoso Ivan 4.º o elevar a Reino Russo/da Rússia (Russkoie tsarstvo, chamado em inglês “Tsardom of Russia” e havendo a ocorrência da palavra “tsarado/czarado” em português), sendo o termo “Moscóvia” ainda popular em grande parte da Europa durante a Idade Moderna pra o designar. Começando com o tamanho de metade da atual Rússia europeia, em 1700 já ocupava a maior parte da Sibéria, mas não o Cáucaso nem a Ásia Central. A maior expansão só ocorreu quando Pedro 1.º (“o grande”) proclamou em 1721 o “Império Russo/da Rússia”, e então se fixou o adjetivo “rossiiski” pra designar tudo o que se referia a ele, e não apenas aos “russkie” étnicos.
Embora o uso de “Rossia” em eslavônio e russo date pelo menos do século 14, ele era intercambiável com “Rus” até o século 17, quando a primeira se tornou oficial. Mesmo assim, a mitologia da herança da continuidade da confederação medieval começou aí, mas até aqui me limitei ao resumo da história política, que explica em parte, mas não de todo, a confusão que muitos ainda fazem entre a chamada “Rus de Kyiv” (cidade que sediava apenas seu principado mais relevante, e não sua capital) e a Rússia moderna. Espero que tanto minhas reflexões de 2018, com mínimas mudanças e observações, quanto minhas explicações deste mês ajudem o leitor curioso a se aprofundar por conta própria!

Expansão do Reino/Império da Rússia, do mais escuro ao mais claro: 1500, 1600 e 1700.
Aproveitei o carregamento deste vídeo no meu canal [derrubado em 2021] Pan-Eslavo Brasil (YouTube) pra discutir um conceito histórico que ainda gera muita confusão entre os brasileiros. A União Soviética era no todo um país multinacional e internacionalista. Mas a Rússia (ou RSFS da Rússia), enquanto existiu dentro dessa federação, manteve diversos símbolos nacionalistas do tempo do tsarismo, embora repaginados sob a estética comunista. Seu nome inteiro era República Socialista Federativa Soviética da Rússia, e também era “federativa”, e não somente “RSS”, como as demais, porque ela mesma comportava diversas subunidades nacionais numa enrolada teia administrativa. Essa complexidade permanece, tornando a divisão da Federação Russa uma das mais difíceis de compreender.
A célebre canção patriótica “Славься” (Slavsia), Glória ou Glorie-se, por muitos considerada uma espécie de hino nacional informal da Rússia, é parte da ópera Ivan Susanin, composta pelo célebre músico Mikhail Glinka, e tem várias versões da letra. Em publicação anterior de minha página, você pode conhecer melhor a história e a letra desta música e ler as três primeiras estrofes, que são as cantadas no vídeo abaixo. O engraçado é que um de meus maiores dilemas, inclusive na tradução do hino da URSS, era como traduzir o termo “Русь” (Rus), que originou o adjetivo “russki” (russo), bem como o nome “Rossia” (Rússia). Eu traduzia como “Mãe-Rússia”, com tintura nacionalista, até estudar a história real da Confederação da Rus, que uniu principados de forma frouxa entre os séculos 9 e 13. Estes, de fato, constituíram os ancestrais dos eslavos orientais (russos, ucranianos, belarussos e russinos), inclusive na língua, que era única.
Por isso, às vezes seria melhor traduzir Rus como “eslavos orientais”, como no início do hino da URSS: “A grande Mãe-Rússia coligou para sempre a união indestrutível das repúblicas livres”, ou antes: “Os (grandes) eslavos orientais coligaram...” (já que Rússia, Ucrânia e Bielorrússia, hoje Belarus, eram a maior parte do território e da população). Ou talvez o certo seria nem traduzir Rus, por se tratar de uma entidade política especial. Porém, “Mãe-Rússia” passa o sentido nacionalista de que a Rússia seria a herdeira da Rus e, portanto, ucranianos e belarussos seriam “derivações” da Rússia. Tanto que o nome “Ucrânia” tem relação com a palavra russa “okraina” (ou seja, a “periferia” do Império Russo), e que o nome antigo e histórico dos ucranianos era “pequenos russos”, e o nome dos belarussos, “russos brancos” [não há relação com o “exército branco” da guerra civil entre 1918 e 1920]. Dessa forma, ainda em livros ocidentais do século 20, a Ucrânia e Belarus ainda aparecem com as respectivas denominações tsaristas de “Pequena Rússia” e “Rússia Branca”...
Contudo, ucranianos e belarussos também se consideram “herdeiros” da antiga Rus e se arrogam o direito de chamar o velho eslavo oriental comum de “ucraniano antigo” ou “belarusso antigo”, como os russos o chamam de “russo antigo”. Agravando o caso, o centro político maior da federação da Rus era Kyiv (o que a faz ser chamada também “Rus kievana/kievita”), num período em que Moscou não passava de uma aldeia crescida. Isso faz da memória medieval um embate não apenas entre russos, mas também deles com os países vizinhos. O canal com este vídeo sem legendas tem muito mais material raro (não traduzido) sobre a URSS que pretendo legendar. Eu usei a mesma tradução que já tinha publicado, mas encurtei ainda mais pra pôr nestas legendas:
Embora a parte “bela-” do nome de Belarus de fato venha de “branco”, não há unanimidade sobre a origem dessa denominação. Ela está relacionada com o fato da região, na era medieval, ser chamada de “Rutênia Branca”. A “Rus”, chamada no registros latinos de “Ruthenia” e gregos de “Rossía”, era originalmente o nome de uma grande confederação de vários principados (o mais importante deles o de Kyiv, por isso a obsessão de Putin pela Ucrânia) que grosso modo abrangia os territórios dos atuais três povos eslavos orientais: russos, belarussos e ucranianos.
Com a invasão mongol, esse principado se desagregou em 1240, e por volta do fim da Idade Média os três povos e línguas citados acima (que seguiram rumos políticos muito diferentes) já eram bem distinguíveis, mas as línguas não se escreviam. Escrevia-se em eslavônio, que era essencialmente uma língua litúrgica, e o próprio russo só começou a ganhar uma literatura robusta no século 18. No começo desse século, já no curso de uma expansão territorial gigantesca, Pedro 1.º (“o grande”) fundou o chamado “Império Russo”, e o novo nome do país (“Rossia”, já consolidado na fase anterior) foi decalcado diretamente do grego, cuja herança os tsares adoravam.
Aí começou a confusão: a ideologia imperial russa reza que os três povos eslavos orientais são “o mesmo”, dentro desse guarda-chuva da “Rossia”, suposta continuadora da Rus. Até então, o império se chamada “Russkoie tsarstvo” (Reino Russo, e não Rus), “russki” se referindo aos russos étnicos. Mas foi se consolidando o gentílico “rossianin” (substantivo) e “rossiiski” (adjetivo), súdito do império, seja russki ou não. Ambas as palavras ainda existem, e em português ambas são traduzidas por “russo”. Assim, muita gente acha que tudo o que tem “Rus” se refere à “Rússia” como entendemos hoje. É falso: se refere à origem comum de russos, belarussos e ucranianos, que Moscou desde sempre quis monopolizar.
O ápice disso foi no século 19, quando havia mesmo os termos “Grande Rússia” (a Rússia, obviamente), “Pequena Rússia” (a Ucrânia) e “Rússia Branca” (Belarus). A versão original de todos tinha “-rossia” ou “-russia”, e assim passou pras línguas ocidentais. Nesse mesmo século, a literatura ucraniana que nascia foi até proibida pelos tsares. O ápice da tentativa de assimilação (inclusive dos poloneses) antecedeu por pouco a revolução de 1917, que popularizou o termo “Ukraina”, mas curiosamente conservou “Belorussia”. Esta se manteve até 1991, quando “Belarus” se tornou oficial tanto em russo quanto em belarusso, embora na Rússia ainda se use (quase sempre na mídia estatal) Belorussia.
Tudo isso pra dizer: o “-rus” de “Belarus” não se refere à “Rússia” como entendemos hoje (Estado, etnia), mas à Rus predecessora de russos, belarussos, ucranianos e russinos, os quais, porém, a ideologia imperial sempre buscou confundir com a Rossia forjada nos séculos 17 e 18.
















Na edição mais recente da revista Crítica Marxista (n.º 58), publicada pelo IFCH da Unicamp, foi publicado um 