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O cinema ajuda a narrar o passado para um número maior de pessoas, seja pelo alcance mercadológico que possui, seja pelos meios de expressão (música, cores, modo de falar das personagens etc.) que tornam mais fácil a compreensão do tema. Ele é bem adequado, por seu dinamismo, para tratar de uma época de aparente “aceleração da história”, em que rapidamente tantas coisas aconteceram e tantas mudanças se processaram: o que é, por exemplo, o período de 1914 a 1945 perto de milênios de história humana, apesar de sua enorme densidade em fatos e transformações globais? Ou, no caso do filme O ovo da serpente, o decênio de 1923 a 1933, quando se esfacelara o antigo Império Alemão e forças nacionalistas e racistas aglutinadas dispuseram-se a ressuscitá-lo ao custo da perseguição àqueles que fugiam do “padrão” nacional que elas inventaram? Esta obra de Ingmar Bergman, portanto, mostra bem as consequências da recente tendência a guerras tão devastadoras entre países e projetos, resultando em uma exclusão cujo fundo principal é o preconceito cultural, ou seja, o preconceito arraigado nas culturas e contrário a outras culturas.
Abel Rosenberg (David Carradine), personagem principal do filme, é um judeu de origem letã residente nos Estados Unidos, que decide mudar-se para Berlim em novembro de 1923, mas tem como empecilho não falar alemão, o que dificultará sua vida. De fato, uma das condições, segundo Ernest Gellner, para a organização de Estados-nações é a identidade cultural entre governantes e governados, com ênfase na língua nacional ensinada nas escolas públicas. Os nacionalismos que os baseiam são projetos construídos que, com ideia de língua e cultura comuns, ressignificarão outras culturas em uma só unidade e darão origem às futuras nacionalidades e identidades construídas. Outra ideia do autor aplicada à mobilidade espacial de Abel é a da fluidez das identidades, agravada por migrações que tornam irresolúvel o problema dos Estados-nações. (1) Assim, não compartilhando da cultura nem do passado dos alemães, é logo alertado pelo inspetor Bauer (Gert Fröbe) de que o país passa por uma grave onda de desemprego e que os alemães não o sustentarão quando acabar seu dinheiro.
Mark Mazower lembra que a correlação de forças do imperialismo, o sistema de grandes impérios baseados não no princípio da cidadania universal, mas no da lealdade e hierarquia com relação ao soberano, cairá após a 1.ª Guerra Mundial, modificando o mapa da Europa. (2) Hannah Arendt adiciona que com essa desintegração, seguida da criação dos Estados nacionais, a exclusão das minorias intensificou-se e gerou um grande contingente de apátridas e perseguidos que nos anos 1920 já não eram mais recebidos nos tradicionais destinos, como os EUA. Entre essas “pessoas sem pátria” destacavam-se os judeus (3) (que serão abordados mais adiante), cuja nova situação de desabrigo é bem retratada pela montagem das cenas do filme: Manuela (Liv Ullmann) e Abel atuam a maior parte do tempo em cenas internas; se a cena é externa, passa-se à noite, e se ainda é de dia, está chovendo. Na verdade, a família de Abel já havia sido vítima do “Grande Jogo”, citado por Mazower, da criação de Estados-tampões para a detenção do expansionismo das potências imperialistas: (4) a Letônia obteve sua independência da Rússia em 1918 e pôde decidir por si mesma o que fazer com suas minorias. A morte de Max (Hans Eichler) também retrata a pressão tripla da sociedade alemã, com sua nação construída, sobre os judeus, um povo sem Estado: o sofrimento da crise em si como qualquer alemão, a situação de pobreza que tornava a vida ainda mais difícil e o antissemitismo econômico agravado em tempos de crise.
Àqueles que não se encaixavam na homogeneidade linguística e cultural do Estado-nação não se reservou um espaço de representação nem, muitas vezes, de vida, criando-se minorias frequentemente suplantadas pela violência. (5) Frau Holle (Edith Heerdegen), senhoria de Manuela, vê a moça como uma ingênua que não sabe defender-se, mesma descrição que os povos “nacionais” fazem de suas minorias. O racismo foi uma das políticas dos governos totalitários para com as minorias, com o aproveitamento e o ápice, no século 20, do aparato segregador das experiências imperialistas inglesas desenvolvidas no século 19 em suas colônias. Um dos métodos do racismo é tornar as minorias um “perigo” maior do que o próprio nacionalismo que o baseia e que, por ser “justo, natural e bom”, portanto dificilmente contestado, (6) justifica a exclusão e a atitude agressiva para com essas minorias. Assim, elas são passíveis, por exemplo, de criminalização, como quando o inspetor Bauer implicitamente acusa Abel de assassinatos na vizinhança do judeu, claramente cometidos por grupos extremistas. A citação, na mesma cena, dos fatos consequentes da 1.ª Guerra Mundial que “atemorizam os alemães” e a demonstração de rejeição de Frau Holle por Abel e pelos dólares, então ilegais de serem portados, que ele lhe deu são mais dois sinais do chauvinismo exacerbado em tempos de crise. Aí se aplica o esvaziamento, descrito por Arendt, dos espaços públicos de representação, onde as pessoas podem expor suas ideias, resolver seus conflitos e redefinir consensos, (7) o que aconteceu na República de Weimar, com a violência “suprimindo” os problemas e com o “lento envenenamento interno” da Alemanha citado pelo narrador.
Tal situação era de se esperar com o desencantamento da modernidade, que, nas palavras de Mazower, trouxe à Europa do século 20 miséria, pobreza, fome, perseguição política, doenças hoje erradicadas e desarraigamento de populações inteiras que deixavam seus lares sem levar nada e sofrendo enorme violência. (8) O charleston lembra “os loucos anos 20”, quando o nacionalismo racista alemão “chocou” o “ovo da serpente” “botado” pelo Tratado de Versalhes, culminando na ascensão do nacional-socialismo. Gellner recorda que a política moderna dos Estados-nações, culminância da doutrina iluminista, além da desigualdade social trazida pela urbanização e pela industrialização, trouxe a atomização e banalização dos indivíduos, a impessoalidade e o anonimato. (9) Essas mudanças atingiram em cheio os rejeitados da sociedade (deficientes físicos, homossexuais, prostitutas, judeus etc.), aos quais, fora de seu “hábitat” (o cabaré, no caso do filme), é reservada a agressão, como aquelas das quais Abel foge na rua. A muitos, mas com maior força às minorias geralmente pobres, a modernidade reservou coisas como vícios, uma alimentação que por vezes incluía até mesmo a carne de cavalo do filme e os serviços mais insalubres e pior remunerados, quando não situações como a prostituição a que foi impelida Manuela.
A cena em que se toca charleston alterna-se com imagens em preto e branco de uma multidão desanimada, símbolo da apatia obscura dos anos 1930 e da necessidade que as massas têm, após a crise de 1929, de que alguém faça a “revolução” por elas. Às mesmas não foi difícil incutir o sentimento antissemita e a ideia da desigualdade entre fortes e fracos, que faziam parte do programa de eliminação das minorias dos Estados-nações, entre elas os judeus, considerados “inassimiláveis”. (10) Os projetos da modernidade caracterizam-se por uma busca pela racionalização da sociedade, que beneficiou apenas uma minoria que inclui os pioneiros das grandes empresas tecnológicas geralmente voltados para a destruição e a guerra. Tal fusão de empobrecimento, desumanização de minorias e progresso tecnológico também trouxe as experiências com seres humanos, que também vitimarão Abel e Manuela e que atrairão “cobaias” que faziam qualquer coisa em troca de um pouco de dinheiro e comida. Adolf Hitler, lembrado nas referências à revolta em Munique, seria mais tarde o “salvador” daquelas massas por catalisar o sentimento delas e tornar política de Estado a ideia antes privada de “exterminar o inferior e aumentar o útil”, fazendo nascer a “serpente”. Em outras palavras, a indiferença da sociedade para com a violência contra os marginalizados, mostrada na depredação do cabaré pela juventude nazista, já preparava o cenário histórico-cultural para a ascensão do ditador, o que faz Zygmunt Bauman falar em “cooperação por omissão”. (11)
Assim, para Bauman, o Holocausto não é uma anomalia, mas uma consequência da modernidade, e mesmo que a ascensão desse projeto na Europa não fosse inevitável, condições sociais, políticas e econômicas favoreceram-na e tornaram-na um fenômeno único. O antissemitismo alemão, cujas raízes, portanto, não são longínquas, diferencia-se de outros racismos por não se basear em fenótipos, mas no fato de que os judeus são um povo sem pátria e “inassimilável” ao “corpo” nacional. (12) Todavia, o antissemitismo na França e na Inglaterra era mais forte do que na Alemanha, na qual os judeus viviam uma assimilação que data do século 18, mas que os mantêm separados do resto das pessoas. (13) De fato, mesmo não parecendo externamente um judeu, Abel é considerado parte da minoria judaica, o que é bem indicado pela profissão de sua família, que se dedica ao circo e não tem uma nacionalidade fixa. Mesmo assim, criou-se o mito do “judeu conceitual”, do judeu perigoso que não compartilha do sentimento nacionalista e que, por ascender econômica e intelectualmente, é visto como “explorador dos trabalhadores”, “causador das crises econômicas” e “conspirador para a dominação do mundo”. Essa figura, criada na ânsia de se estabelecer novas fronteiras após o nivelamento geral da sociedade no século 18, foi bem recebida no contexto crítico da Alemanha da década de 1920 e ajudou na “colaboração por omissão”. (14) A culpa que Manuela sente pela morte de Max mostra o sucesso da naturalização desse modelo, inculcando fortemente uma responsabilidade que só podia ser dirimida com o perdão “espiritual”. A febre proporciona-lhe o único momento para sonhar acordada, em outras palavras, pensar em um mundo alternativo que a retire da péssima situação em que vive. Já Abel responsabiliza os próprios judeus por se meterem em “encrencas”, mas ele mesmo, em meio à crise, degrada a própria saúde e o próprio comportamento com bebidas, brigas e relações sexuais com prostitutas.
A análise histórico-cultural da modernidade mostra a grande influência da elaboração de conceitos na ação das pessoas na sociedade e a periculosidade que ela pode ter se voltada para fins destrutivos ou não afirmativos. A história do nacionalismo é a história da construção de identidades adaptadas a novos tempos em que a vigente racionalização das relações sociais visava à construção de um mundo perfeito. As relações imperiais de lealdade e hierarquia foram suplantadas pelas identidades baseadas na cidadania universal e na igualdade, que queriam unificar grupos humanos dentro de uma cultura e um passado comuns. Contudo, como projetos de homogeneização humana tendem a ser excludentes, a edificação de Estados-nações criou uma legião de “rejeitados” que sofreram a violência das perseguições e da ausência de um lar. Auxiliando a obscurecer esse quadro, foram ainda criadas teorias que procuravam naturalizar diferenças visivelmente contingentes na totalidade da existência da civilização humana. Assim, ironicamente, a era que procurou extirpar a barbárie da face da Terra apenas a perpetuou, deixando sequelas que ainda restarão entre as pessoas por tempo indefinido.
Bibliografia
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
GELLNER, Ernest. Nações e nacionalismo. Tradução de Inês Vaz Pinto. Lisboa: Gradiva, 1993.
MAZOWER, Mark. Continente sombrio: a Europa no século XX. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
OVO DA SERPENTE, O (Das Schlangenei/The Serpent’s Egg). Produção e direção de Ingmar Bergman. República Federal da Alemanha, EUA: Rialto Film, Dino De Laurentiis Corp., 1977. 1 DVD (119 min.).
Notas (clique no número pra voltar ao texto)
(1) Ernest Gellner, Nações e nacionalismo, Lisboa, Gradiva, 1993, p. 87-88.
(2) Mark Mazower, Continente sombrio: a Europa no século XX, São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 52-59.
(3) Hannah Arendt, Origens do totalitarismo, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 300-302, 315 e 327-328.
(4) Mark Mazower, op. cit., p. 54 e 69-73.
(5) Hannah Arendt, op. cit., p. 305-306.
(6) Ernest Gellner, op. cit., p. 89.
(7) Hannah Arendt, op. cit., p. 149-150.
(8) Mark Mazower, op. cit., p. 68-69.
(9) Ernest Gellner, op. cit., p. 90-91 e 97-98. Hannah Arendt, op. cit., p. 324-325, também afirma a importância da Revolução Francesa na “dissolução do homem como membro do povo”.
(10) Mark Mazower, op. cit., p. 70, 79-80 e 82.
(11) Zygmunt Bauman, Modernidade e Holocausto, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998, p. 52.
(12) Ibidem, p. 51-53 e 78-82.
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