sábado, 18 de janeiro de 2025

O “relatório secreto” de Khruschov


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Este é um texto longuíssimo, cujo sonho meu era traduzir direto do russo pro português, um documento histórico muito comentado entre os adeptos e/ou estudiosos do comunismo no Brasil, mas muito pouco conhecido por seu conteúdo. Confesso que o li na íntegra quando escrevi meu TCC sobre seu impacto no Brasil, mas me recordo pouco de cada detalhe. Trata-se do informe (ou “relatório”, conforme a tradução) “Sobre o culto à personalidade e suas consequências”, lido em sessão secreta do 20.º Congresso do Partido Comunista da União Soviética (o PCUS, ou KPSS) em 25 de fevereiro de 1956, apenas a alguns dirigentes de partidos comunistas (governantes ou não) ao redor do mundo e sem a distribuição do texto impresso. O texto contém pesadas críticas à atuação de Stalin enquanto ideólogo, à idolatria que tinha se formado em torno de sua figura (embora o evento tivesse começado com loas a sua memória, pra variar) e a várias de suas ações brutais, como a deportação forçada de povos inteiros durante a resistência ao nazismo e o assassinato injustificado de membros da cúpula partidária.

Representando o PCB, estava Diógenes Arruda Câmara, que seria muito criticado por ter ainda viajado à China antes de voltar ao Brasil, período no qual os comunistas tinham tomado conhecimento do “relatório secreto” por meio da então chamada “imprensa burguesa”. É interessante nos determos um pouco mais na figura de Arruda, admirado por uns, execrado por muitos, sobretudo pelos dissidentes do comunismo, mas inclusive pelo não menos contraditório Luiz Carlos Prestes, então secretário-geral do PCB.

Nascido no interior de Pernambuco, ascendeu à direção do partido durante a chamada “Conferência da Mantiqueira”, reunida na região serrana do Rio de Janeiro em 1943 e que reconstruiu a organização após seu esfacelamento pela perseguição do Estado Novo de Getúlio Vargas. Então, com Prestes preso, mas “aclamado” secretário-geral, a geração dos fundadores e a dos que exerceram a liderança na década de 1930 (numa palavra, os “stalinizadores” do PCB), após terem derrubado a primeira, foram escanteadas por um novo “grupo dirigente” vindo ao Rio ou a São Paulo, em grande parte, das regiões Norte e Nordeste, sobretudo Amazonas, Pará, Bahia (onde o partido era forte) e Pernambuco. Muitos deles, entre os quais o carioca Agildo Barata (pai de Agildo Ribeiro, “humorista” do Zorra), se destacaram nas insurreições militares de novembro de 1935, no movimento antifascista e no combate à ditadura, não raro a partir das piores prisões.

Com seu inconfundível aspecto de leão-marinho (“bolínea de gorfe!!!...”) e seu temperamento rude, Arruda era responsável pela segurança pessoal de Prestes e por todo aparato que isso envolvia. O cargo era tão mais importante quanto, apesar do PCB ser novamente legalizado em 1945 e ter eleito muitos parlamentares em todos os níveis (parte da direção chegou ao Congresso Nacional e Prestes, após anistia política, ao Senado), teve o registro novamente cassado em 1947, e seus eleitos perderam os mandatos em 1948. O presidente fascista Eurico Dutra, após derrubar o próprio mentor com um golpe de Estado e quase melar a transição democrática, seguia à risca a cartilha da “guerra fria”... Nessas condições, se instalou praticamente uma paranoia a respeito da proteção de Prestes, o real líder máximo: ele vivia isolado do resto do mundo e de boa parte da militância, e apenas uns poucos autorizados podiam passar pelo “aparato de segurança”. Enquanto chefe desse aparato, Arruda foi acusado de manter Prestes numa espécie de “cativeiro” e de tiranizar o resto do PCB, censurando publicações, humilhando camaradas, intimidando descontentes por meio de outros “aliados” etc.

Dele se dizia que não era muito conhecido pela inteligência refinada, mas, conforme seu bel-prazer (envernizado como “linha oficial do Partidão”), menosprezava e marginalizava artistas e intelectuais, inclusive Jorge Amado e sua maçante literatura da fase “realista socialista”. Arruda não era, pois, apenas um “pequeno Stalin”, mas também um “pequeno Andréi Zhdánov”, o inculto censor cultural soviético, e o começo de sua ruína se deu justamente na segunda metade de 1956. Ele ainda não tinha voltado do 20.º Congresso, mas o Brasil todo, inclusive o PCB, já estava sabendo do “relatório secreto”, vazado por meio de uma fonte polonesa a diversos jornais americanos, que compraram o texto a preço de banana, e copiosamente traduzido por nossos jornais “limpinhos e cheirosos”. A “discussão interna”, na verdade uma vultosa lavagem de roupa suja com pitadas de autocomiseração masoquista, foi aberta sem o consenso da direção pelos próprios editores da imprensa partidária, e o próprio Prestes semilobotomizado precisou sair de sua toca pra pôr fim à bagunça.

A primeira coisa a se ter em conta é que no “curto século 20” de Hobsbawm, os apparatchiks de qualquer partido comunista não eram grandes teóricos nem conhecedores de Marx, Engels ou sequer Lenin (quanto a Stalin, vinha em frases ou excertos mais edificantes), mas apenas executores de ordens ou, na feliz fórmula de Dainis Karepovs, “encaminhadores de diretivas”. Ou faziam o que e como mandava o PCUS (que tinha a preeminência e, sobretudo, financiava os partidos, mesmo após o fim protocolar da Comintern em 1943), ou rodavam, mecanismo que se reproduzia de alto a baixo na hierarquia interna. Há várias razões por que alguém entrava num partido comunista (tema hoje com farta literatura na Europa!) ou por que saía, mas uma vez dentro, conhecer o esquema e agir nos conformes era condição essencial. Não tinha nada de romântico, muito menos de subversivo. Apesar da constante acusação de “espionagem em prol da URSS”, os comunistas no Ocidente não agiam assim por desvio de caráter, mas por um automatismo que não raro se fixava por meio de lavagem cerebral.

A “lavagem de roupa suja” dentro do PCB consistiu de acusações mútuas e de uma competição pra convencer quem dos camaradas tinha sido “mais stalinista” e “mais autoritário” do que os outros, você mesmo, claro, se fazendo de vítima da “máquina”. Nisso surgiam as “autocríticas” que não raro tomavam a forma de expiação pública hipócrita e verborrágica, e depois do “ataque de bílis” de Agildo Barata, Arruda teria sido um dos que mais teatralizou sua “culpa”. Deveras, seu talento na encarnação do secretário tirânico também se manifestou na interpretação do “eu me arrependo porque não sabia de nada”! O fato de Prestes se manter em isolamento até 1958, quando enfim foi revogado um mandado de prisão preventiva contra ele, no clima menos tenso sob Kubitschek e seu próprio “degelo”, trouxe à tona o açambarcamento da liderança efetiva por outros quadros que falavam em nome do ex-capitão. Pra resumir, sua volta à luz do dia provocou reviravoltas que culminaram no 6.º Congresso do PCB, com a tentativa de se tornar mais “apresentável” a uma sociedade mais amaciada por certas ideias de esquerda, e no ocaso do grupo que incluía Arruda, parte do qual confluiu na formação do PC do B, finalmente crítico da linha soviética.

Sobre o grupo em que Arruda se incluía, devemos ter em conta uma segunda coisa, relativa a uma autocrítica que eu mesmo me faço quando escrevi meu TCC em 2011, mas resultante de uma leitura acrítica do período que qualquer pessoa pouco prevenida pode fazer. Na segunda metade de 1956, o primeiro racha no PCB foi entre os que queriam e os que não queriam abrir uma discussão sobre o “relatório secreto”, pois ele foi longamente considerado uma falsificação, dado o modo como passou a ser conhecido. Quando a barragem se rompeu, houve uma divisão, nas tribunas impressas, entre os que criticavam os antigos métodos (muitos deles deixando o partido) e os que eram mais cautelosos quanto a mudanças, relativizando, inclusive, a probidade de Khruschov ao lançar sua “desestalinização”. Um grupo centrista apelidado de “pântano” preferiu acompanhar o andar da carruagem, ver qual lado tomava a dianteira e esperar de que lado Prestes ficaria. Não o escrevi com tanta incisividade, mas não podemos pensar que era uma luta maniqueísta entre “democratas” e “autoritários”, entre “stalinistas” e “antistalinistas”: havia vários interesses envolvidos, sobretudo o de ganhar a graça do secretário-geral, e o próprio PC do B, quando surgiu, tentou primeiro obter as bênçãos de Moscou.

Um documento chamado “Manifesto de Maio”, com a anuência de Prestes, lançou em 1958 as bases pro aprofundamento dos escrúpulos legalistas do PCB, culminado em 1960, como eu disse, com direito a ruptura e tudo, inclusive dos que já tinham criticado aquele manifesto. É verdade que, embora gestor da “máquina” e das relações com Moscou, Prestes perdia gradualmente seu prestígio junto a parte da militância e a uma geração que não tinha passado pelos encantos de sua “Coluna Invicta” na década de 1920. Quanto a Arruda, após ajudar a fundar do PC do B, se engajou na luta armada, foi preso e torturado, se exilou no Chile e na França e morreu de infarto logo após voltar por conta da anistia política, em 1979. É a essa figura pitoresca que a pernambucana Luciana Santos, atual presidenta do “pseudo” e ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação (repito: da Ciência, Tecnologia e Inovação!), teceu em 2014 um panegírico ressaltando apenas as agruras e sumindo com seu passado de “Stalin tropical”...

Spoiler: após a anistia, nova “lavagem de roupa suja” oporia os militantes de base que seguraram o rojão durante a ditadura militar e viram muitos camaradas tombarem a seus lados e Prestes com sua família, que passaram um confortável exílio em Moscou, alheios à realidade brasileira. Simplifico demais, mas no final, o ex-capitão se filiou ao PDT e virou cabo eleitoral de Brizola, o PCB seguiu cegamente Sarney e suas burradas e, com o fim da URSS, Roberto Freire tentaria transformar a sigla num partido social-democrata à la eurocomunismo italiano.

Quanto ao “relatório secreto” em si (o próprio nome já é irônico, dado o destino que tomou), ele não continha grandes revelações, exceto pra quem vivia fora da URSS e foi doutrinado com a visão extremamente edulcorada daquele país. O próprio Khruschov, como já escrevi várias vezes aqui, foi o fiel executor dos expurgos de 1936-38 (o “grande terror”, pra muitos) na Ucrânia, e a própria incorporação da Crimeia da RSFS da Rússia à RSS ucraniana em 1954 pode ter sido um primeiro movimento de “expiação” nesse sentido. De todos os “excessos” que ele relata, ele omite uma grande parte, corta números e isenta pessoas, a começar por si próprio. Apesar dos “méritos”, a culpa sobre todos os males da URSS recai unilateralmente sobre Stalin e seu caráter “desviante” (esquecendo, claro, que o georgiano também é fruto de circunstâncias históricas). Mata-se o morto, segue-se em frente e vira-se a página. O mínimo que se pode dizer é que a “desestalinização” (parcial e, depois em parte, revertida) foi apenas um instrumento na luta de poder da qual Khruschov saiu vencedor, concentrando amplos poderes em torno de si mesmo até o golpe palaciano que o depôs em 1964.

Mesmo assim, nem o lançamento do “relatório secreto” e a “desestalinização”, nem a cessão da Crimeia à Ucrânia (afinal, não revertida em 1991, até a anexação ilegal por Putin em 2014) ainda tiveram sua racionalidade totalmente decifrada. Lembremos que muitos documentos do PCUS dessa época seguem fechados ao público, exceto a alguns seletos historiadores oficiosos com visão bastante parcial e a coletâneas editadas que saem totalmente decepadas e enviesadas. Um tal de Grover Furr, que é professor de literatura inglesa, inventou um livro partidário de cabo a rabo segundo o qual Khrushchev mentiu (é o título), amplamente traduzido na Banânia e que reconfortou os jovens stalinistas sedentos de viés erudito de confirmação. Pra começar, ele diz que não pôs as referências bibliográficas “pra cortar custos”: pelamor, né?

Dado que durante a pós precisei lidar com a historiografia realmente séria, só tive tempo de dar uma olhada, e realmente ele não traz um “argumento” propriamente, só imprecações contra Khruschov. O mais interessante é essa categoria da “mentira”, já que o conteúdo não é inverídico, mas apenas incompleto, e que importa mais entender a luta de poder do que fazer a exegese de um texto cuja probidade é idêntica à de qualquer documento soviético que, obviamente, só diz a si e aos outros o que deseja ser a realidade. E se o ex-líder mentiu, então se devolve a razão a um assassino, imperialista, antissemita, brutal, deslocador de povos, fuzilador dos antigos amigos de Lenin, impositor de metas econômicas irrealistas, péssimo estrategista militar (a despeito do que confabula Ludo Martens) e cúmplice no início da carnificina mundial em 1939-45 junto com Adolf Hitler?

Paro por aqui. Não posso resumir numa publicação uma história tão complexa, e tanto as disputas no PCB quanto o contraditório fenômeno da “desestalinização” merecem a atenção e a pesquisa de quem está me lendo, são instigantes, vale a pena! Sinto muito decepcionar quem finalmente esperava uma tradução direta do russo do “relatório secreto” de Khruschov, mas minha falta de tempo, mesmo que desejasse usar o Google Tradutor pra depois corrigir, me impeliu a lhe deixar algum material já pronto. Primeiro, em meu portfólio podem ser acessados meu TCC e, pra alguns detalhes adicionais sobre a “Conferência da Mantiqueira” de 1943, minha tese de doutorado a partir da base da Unicamp, e pode ser baixado meu relatório de iniciação científica de 2009, que serviu de germe ao TCC. Segundo, aqui mesmo na página há várias traduções interessantes a respeito: um artigo de Branko Lazitch sobre a difusão do documento (1986), o trecho de uma palestra de Stéphane Courtois no qual ele o menciona (2009) e o cinejornal oficial do 20.º Congresso do PCUS.

No volume 2 das memórias de Khruschov publicadas no Brasil em 1971, a íntegra do relatório aparece como um anexo, e o único inconveniente em meu arquivo pessoal é que, além de estar em posição invertida, não teve os caracteres codificados. No caso da preparação de uma edição de fôlego da tradução, eu certamente a usaria pra cotejar. Publicado pela Artenova, o livro foi traduzido por Renato Bittencourt, Aurélio de Lacerda, Wilson Cunha e Juarez Barroso, revisto por Aparício Fernandes e editado por Álvaro Pacheco, a partir da tradução do russo pro inglês feita e organizada por Strobe Talbott. O original em russo, que não poderia faltar, está disponível num site sobre a “guerra fria”, mas há várias outras fontes disponíveis.

Existe também uma tradução online pro francês, embora eu não saiba se seja o mesmo texto publicado como apêndice do livro Autopsie du stalinisme, cujo autor usou o pseudônimo “A. Rossi” (Paris: P. Horay, 1957). Ele também contém o posfácio “Les joyeux butors du Kremlin”, de Denis de Rougemont, e pra quem tem acesso à Unicamp, ele está na Coleção Mauricio Tragtenberg (cujos itens não circulam) da biblioteca da Faculdade de Educação, sob o número de chamada 947.0842 T181a.



Uma das cópias do original em russo que circulou livremente por algum tempo em certos jornais da URSS, num experimento que saiu do controle e logo foi interrompido pelo Kremlin.

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