quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Patrimonialismo e história (texto, 2011)


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NOTA: Minha formação em Humanas ainda era inicpiente, mas eu já me arriscava a fazer análises muito gerais de fenômenos sociológicos brasileiros. Estando pra terminar a graduação, parece que eu buscava explicar pra mim mesmo coisas de que todo mundo reclamava, mas poucos sabiam conceituar com precisão. O tema da corrupção política começava então a se tornar pauta quase única no jornalismo e não era pouca minha insatisfação com o governo Lula nesse domínio. Eu já percebia que só a mudança de líderes e a penalização indiscriminada não resolveriam um problema com raízes muito distantes, mas talvez me faltou mais fugir da análise meramente cultural e embasar meus argumentos com pesquisa histórica e econômica. Está razoável como ensaio pessoal, e pra variar, eu não perdia a ocasião de alfinetar as religiões. Só fiz algumas mudanças redacionais pra atualizar o estilo.



Muitas análises históricas e culturais do Brasil consagradas pela tradição intelectual incorrem no risco de tentar explicar processos e elementos complexos de acordo com categorias restritas, portanto reducionistas, como a sexualidade, o clima ou a ascendência étnica da população. Isso não impede que, dentre condicionamentos tão diversos, possa ser escolhido um ou mais para a elucidação de características importantes da trajetória nacional sem que se tornem, porém, soluções globais grandiosas e mágicas. É o caso do patrimonialismo, tendência privatista e excludente fincada no meio público cuja descrição, se não deixa de guardar traços caricaturais e até mesmo humorísticos, ao menos constitui uma incrível semelhança entre os cotidianos sociais dos países em desenvolvimento mais proeminentes.

Não existe ainda um consenso a respeito da natureza e abrangência do patrimonialismo, mas uma análise rasante do comportamento brasileiro médio pode fornecer algumas pistas. A frase popular mais adequada para resumi-lo talvez seja esta: “O mundo gira em torno do meu umbigo”. Por isso, tudo é meu, posso fazer o que desejar com quem ou o que quiser. A minha pessoa merece culto, louvor e sobreposição – daí o comum “personalismo” –, pois eu estou sempre certo, e os outros, errados: nasci com o dom da onisciência ou ele me foi atribuído do alto por merecimento inato. E já que me encontro sempre com a razão, o Universo inevitavelmente conspirará a meu favor e conforme meus princípios pessoais – por isso também a presença do “fatalismo”. A “regra de ouro” que nos manda tratar o próximo como queremos ser tratados recebe uma nova formulação: faça os outros lhe fazerem o que você deseja, e não os deixe lhe fazerem o que você abomina, não importa se isso é ruim para os mesmos, desde que se revele bom apenas para você.

O sistema se autoperpetua na base do tratamento hierárquico difuso entre as relações humanas, nas quais a denúncia do patrimonialismo é proibida sob pena de ofender a comodidade do interlocutor em seu lugar na escala. Em outras palavras, se você chamar seu superior de “patrimonialista”, ele lhe perguntará “Quem você pensa que é para contestar minha autoridade moral?” Se você censurar um amigo ou colega, isto é, um igual na hierarquia, ficará sabendo que “Você não manda em mim nem tem o direito de ser chato, careta ou certinho”. E se, finalmente, encontrar-se mandando em alguém, logo aprenderá que será tarefa vã dar-lhe liberdade de iniciativa, enquanto ela ou ele tiver medo de ser coagido, humilhado ou materialmente subtraído se criticar suas ordens ou cogitar a mínima insubordinação.

Deduções tão primárias e genéricas como essas não poderiam intentar a validade de hipóteses científicas, mas sua aplicação a muitos domínios da vivência coletiva brasileira lhes dá no mínimo um inegável valor de especulação jornalística. A corrupção na política, por exemplo, considera que o erário, por ser público, não é “de todos” – o que garantiria sua inviolabilidade –, mas “de ninguém”, desta forma, meu, quando muito somente meu, porque “achado não é roubado”. O mesmo esquema costuma valer para objetos perdidos em locais de grande circulação de pessoas, o que leva a se pensar menos em malevolência criminosa esporádica do que em hábitos culturais arraigados. Quanto aos roubos explícitos cometidos por gente de renda inferior, impera um sentimento de justiça contra um meio opressor e hostil, e não a ciência de se estar causando danos a outrem: o marginal privado de cidadania obriga a sociedade a pagar-lhe o dano infligido.

Outra face mais inofensiva dessa mentalidade, mas não menos danosa, é o caráter fidalgo, preguiçoso e autoritário frequente em quem ocupa cargos de chefia em empresas de todo tipo ou empregos burocráticos no funcionalismo estatal do Brasil. O lema desses indivíduos é “Nunca servir, mas ser servido”, e eles não consideram necessitar de empenho e desinteresse em suas funções, pois, vendo-as como uma simples fonte de renda, e não de auxílio a seus concidadãos, privatizam o que deveria ser de todos, dão margem a toda espécie de filhotismo e compadrio e destroem a impessoalidade que deveria ser marca do nosso serviço público. Esse personalismo, esse inchaço do próprio ego, vê no trabalho algo sujo e sofrível, e seria menos perigoso se não fosse vendido como um ideal a todas as classes sociais, daí originando um desejo generalizado de obter vantagens e lucros sem esforço, às vezes até por meio da trapaça ou da exploração alheia. A Igreja Católica Romana, nossa matriz espiritual, não colabora muito na melhora do quadro ao sugerir a espera paciente da graça vinda dos céus e ensinar um passado mítico paradisíaco sem labuta ou preocupações éticas, sendo superada de longe em eficiência prática pelas disciplinadas comunidades evangélicas europeias. É uma pena que o pentecostalismo, versão do protestantismo que venceu por aqui, cedo foi contaminada pelo vírus romano da inação e da submissão acrítica.

O famigerado imobilismo das massas brasileiras também merece uma breve consideração. A pressa analítica nos faz taxar o grosso do povo de conformado e inconsciente, mas não vejo maiores estímulos à sublevação quando desde pequenos somos formatados a obedecer calados aos superiores ou aos mais velhos e quando a mínima reivindicação dos direitos mais básicos recebe usualmente como resposta a agressão física ou moral ou a privação material por parte dos agentes que servem aos escalões mais altos da hierarquia social. O instinto natural de sobrevivência dentro de um ambiente despótico favorece o pecado da falta ao pecado do excesso e da ousadia.

Para ficarmos em apenas um exemplo estrangeiro, o marxismo, doutrina originalmente materialista, impessoal, científica, herdeira do Iluminismo francês e das revoluções do século 19, aparentemente se tornou mais uma sacada genial que sucumbiu aos vícios de onde se buscou aplicá-la. A social-democracia alemã da belle époque pode ter se mostrado uma força consideravelmente progressista em comparação à brutalidade do Estado imperial em que atuava, mas o fatalismo determinista de um Kautsky ou de um Bernstein não excedeu os limites do cristianismo pudico e nobiliárquico então em voga na política. Lenin, com a Revolução Russa e a Internacional Comunista, tentou corrigir os erros de seus camaradas germânicos que apoiaram o início da Primeira Guerra Mundial, mas o meio atrasado em que atuava parecia ser um obstáculo ainda maior. Ainda está para se avaliar o quanto ou se o líder bolchevique, exilado por tantos anos na Europa desenvolvida, realmente raciocinava como os outros russos e até que ponto ele ou outro chefe com a mesma criação intelectual conseguiria dobrar o patrimonialismo tsarista. Nesse sentido, Lenin ao menos merece o crédito de ter resgatado, em sua curta vida, a herança progressista do marxismo, mesmo ao custo de, após ter arrastado a Rússia a uma ocidentalização forçada, Stalin suceder-lhe uma nova onda orientalista extrema, na certa como acomodação da doutrina e da revolução ao antigo estilo de governo.

Como foi dito acima, buscar uma conceituação do patrimonialismo não implica querer solucionar, em um estalar de dedos, problemas difíceis e multifacetados, mas pode atentar a certos defeitos comportamentais comuns a todos os brasileiros. Evitar a apropriação privada do que é público, servir tanto quanto ser servido, tratar a todas e todos como iguais em dignidade e valorizar o esforço honesto nas conquistas pessoais parece um começo suficiente. Todavia, antes de tudo, cabe popularizar a noção de que a organicidade do conjunto social sempre faz com que o prejuízo inicial de poucos logo se torne invariavelmente uma catástrofe generalizada.


Bragança Paulista, 18-19 de julho de 2011.