segunda-feira, 14 de julho de 2025

Memorando ao tsar (Piotr Durnovó)


Endereço curto: fishuk.cc/memo-durnovo

Embora meu primeiro serviço de tradução tenha sido publicado em 2017 na coletânea Manifestos vermelhos e outros textos históricos da Revolução Russa, sob a coordenação de Daniel Aarão Reis (a quem sempre vou ser grato por essa oportunidade), esta semana decidi trazer à página alguns dos textos que foram aí publicados, pois certamente sofreram alguma alteração dos editores e algum dia o livro pode se tornar raridade. Em 2022 eu já tinha publicado minhas traduções que não saíram na coletânea, mas agora trago meus outros originais, ainda que sob o risco de estar infringindo algum direito autoral. Infelizmente, nem todos os documentos em russo me foram fornecidos com a indicação da fonte, portanto, ela quase sempre vai estar ausente, mas quando a base mesma da tradução tiver sido conservada, ela vai aparecer após minha tradução ao português, com a ortografia atualizada.

Hoje temos o famoso “Memorando Durnovó”, escrito em fevereiro de 1914 pelo político Piotr Nikoláievich Durnovó (1842-1915), de família nobre, ministro do Exterior de outubro de 1905 a abril de 1906 e membro do Conselho de Estado desde esta data até sua morte. O conselho funcionava como instância consultiva superior do tsar até 1906, quando a reforma constitucional o transformou em câmara alta (tipo Senado) do recém-criado parlamento. Escrevendo ao imperador Nicolau 2.º, cuja leitura do documento é incerta, Durnovó o aconselhou a não entrar em choque com a Alemanha, a fim de evitar uma grande guerra cujas consequências sociais negativas poderiam levar à derrubada da monarquia. Dado o que aconteceria nos anos seguintes, sua análise é considerada “profética” por muitos.

Como não tive tempo de fazer novas revisões, me responsabilizo por eventuais erros ou imprecisões. Qualquer observação é bem-vinda, bastando escolher um dos canais de comunicação que apresento no menu à direita da página.


O principal fator do período da história mundial pelo qual estamos passando agora é a rivalidade entre a Inglaterra e a Alemanha. Essa rivalidade deve levar inevitavelmente a uma luta armada entre elas, cujo desfecho se mostrará, com toda a probabilidade, fatal para o lado derrotado. Os interesses dessas duas potências são por demais incompatíveis, e sua existência simultânea como potências mundiais mais cedo ou mais tarde se revelará impossível. De um lado, um Estado insular cuja importância mundial assenta em seu domínio sobre o mar, seu comércio global e suas inúmeras colônias. Do outro, um poderoso império continental cujo limitado território não basta para uma população aumentada. Assim, ele declarou, aberta e francamente, que seu futuro está nos mares. Com magnífica rapidez, ele desenvolveu um enorme comércio mundial, construiu uma formidável marinha para protegê-lo e, com sua famosa marca registrada “Made in Germany”, criou um perigo mortal ao florescimento industrial e econômico de seu rival. Naturalmente a Inglaterra não pode se render sem luta, e entre ela e a Alemanha é inevitável uma luta de vida ou morte.

O iminente conflito armado resultante dessa rivalidade não pode se limitar a um duelo entre Inglaterra e Alemanha sozinhas. Seus recursos são extremamente desiguais e, ao mesmo tempo, elas não são suficientemente vulneráveis uma à outra. A Alemanha poderia provocar rebeliões na Índia, na África do Sul e, sobretudo, uma perigosa revolta na Irlanda, e paralisar o comércio marítimo inglês por meio da pirataria e, talvez, da guerra submarina, criando assim dificuldades para a Grã-Bretanha suprir-se de alimentos; mas, apesar de toda a ousadia dos chefes militares alemães, eles mal se arriscariam a aportar na Inglaterra, ao menos que um acaso feliz os ajudasse a destruir ou razoavelmente enfraquecer a marinha inglesa. Quanto à Inglaterra, ela encontrará a Alemanha totalmente invulnerável. Tudo o que ela pode conseguir é tomar as colônias alemãs, barrar o comércio marítimo alemão e, na melhor das hipóteses, aniquilar a marinha alemã, e nada mais. Isso, porém, não forçaria o inimigo a implorar pela paz. Não há dúvidas, portanto, de que a Inglaterra irá usar o método que mais de uma vez empregou com sucesso, arriscando uma ação armada apenas depois de assegurar que na guerra, a seu próprio lado, participarão as potências mais fortes em sentido estratégico. Mas desde que a Alemanha, de sua própria parte, não se encontrará isolada, a futura guerra anglo-alemã sem dúvida se transformará num conflito armado entre dois grupos de potências, um de orientação alemã e outro de orientação inglesa.

Até a Guerra Russo-Japonesa, a política russa não tinha nenhuma orientação. A partir do reino do imperador Alexandre 3.º, a Rússia teve uma aliança defensiva com a França, firme o bastante para garantir a ação comum de ambas as potências no caso de uma delas ser atacada, mas, ao mesmo tempo, não tão estreita que as obrigasse a apoiar incondicionalmente, pela força das armas, todas as ações e reivindicações políticas do aliado. Ao mesmo tempo, a realeza russa manteve as tradicionais relações amistosas, baseadas nos laços de sangue, com a realeza de Berlim. Exatamente devido a essa conjuntura, a paz entre as grandes potências se manteve intata ao longo de muitíssimos anos, apesar das inúmeras situações potencialmente explosivas na Europa. Estando aliada com a Rússia, a França estava prevenida contra um ataque da Alemanha; esta estava protegida, graças ao provado pacifismo da Rússia, de ambições revanchistas por parte da França; e a Rússia estava blindada, por conta da necessidade da Alemanha manter relações amigáveis com ela, contra as intrigas desmesuradas da Áustria-Hungria na península dos Bálcãs. Por último, a Inglaterra, isolada e contida por sua rivalidade com a Rússia na Pérsia, pelo histórico medo de seus diplomatas de que avancemos sobre a Índia e pelas tensas relações com a França, visíveis em especial durante o conhecido incidente de Fashoda, via com alarme o aumento do poder naval da Alemanha, sem arriscar, porém, nenhum passo decidido.

A Guerra Russo-Japonesa mudou radicalmente as relações entre as grandes potências e retirou a Inglaterra de seu isolamento. Como sabemos, durante toda a Guerra Russo-Japonesa, a Inglaterra e a América guardaram benévola neutralidade ante o Japão, enquanto fruíamos de uma símile neutralidade benévola por parte da França e da Alemanha. Aqui pareceria ter se dado o princípio do arranjo político mais natural para nós. Mas depois da guerra, nossa diplomacia se deparou de repente e entrou em definitivo na rota da aproximação com a Inglaterra. A França foi atraída para a órbita da política britânica; estava formado o grupo de potências da Tríplice Entente, com a Inglaterra exercendo o papel principal; e mais cedo ou mais tarde, um choque com as potências agrupadas em torno da Alemanha se tornou inevitável.

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Agora, que vantagens o abandono de nossa velha política de desconfiança da Inglaterra e a ruptura das relações corteses, senão amigáveis, com a Alemanha nos assegurou na época e agora? Considerando sem nenhum grau de cuidado os eventos que se deram desde o Tratado de Portsmouth, achamos difícil notar quaisquer vantagens práticas que tenhamos obtido em aproximarmo-nos da Inglaterra...

Em suma, o acordo anglo-russo nada nos trouxe com valor prático até agora, enquanto no futuro ele nos ameaça com um inevitável choque armado com a Alemanha.

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Em que condições se dará esse choque e quais poderão ser consequências? Os agrupamentos básicos numa futura guerra são óbvios: Rússia, França e Inglaterra de um lado, Alemanha, Áustria e Turquia do outro. É mais do que provável que outras potências também participem da guerra, dependendo das circunstâncias que possam existir durante sua eclosão. Mas, seja a causa imediata para o conflito fornecida por outro choque de interesses conflitantes nos Bálcãs ou por um incidente colonial, tal como o de Algeciras, o alinhamento essencial permanecerá o mesmo.

Por não ter nenhuma concepção sobre seus reais interesses, a Itália não entrará no campo alemão. Por razões tanto políticas quanto econômicas, ela sem dúvida espera expandir seu atual território. Tal expansão só pode se dar a expensas da Áustria, de um lado, e da Turquia, de outro. Desse modo, é natural que a Itália não se alie à parte que protegeria a integridade territorial dos países a cujas expensas ela espera realizar suas ambições. Além disso, não está fora de cogitação que a Itália se junte à coalizão antialemã, caso a escalada da guerra penda a seu favor, de forma a garantir para si as condições mais favoráveis ao partilhar a subsequente divisão dos espólios...

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O maior ônus da guerra sem dúvida cairá sobre nós, visto que a Inglaterra é muito pouco capaz de tomar parte considerável numa guerra continental, enquanto a França, pobre em poderio humano, provavelmente recorrerá a táticas estritamente defensivas, tendo em conta as enormes perdas que, no atual estado da tecnologia militar, atuar na guerra lhe causará. O ataque com baterias, abrindo uma brecha na muito espessa defesa alemã, caberá a nós, que toparemos com muitos fatores adversos a serem alvo de vasto esforço e atenção.

Descontados esses fatores desfavoráveis, devemos considerar o Extremo Oriente. Tanto os EUA quanto o Japão são hostis à Alemanha, o primeiro de forma enraizada, e o segundo em virtude de sua atual orientação política, e não há razão para esperá-los atuarem no lado alemão. Além disso, a guerra, qualquer que seja seu desfecho, enfraquecerá a Rússia e desviará a atenção para o Ocidente, um fato que obviamente serve aos interesses tanto japoneses quanto americanos. Assim, nossa retaguarda estará bastante segura no Extremo Oriente, e o máximo que pode lá ocorrer será nos solicitarem algumas concessões de natureza econômica em paga à benévola neutralidade. De fato, é possível que os EUA ou o Japão possam entrar no campo antialemão, mas, é claro, como meros usurpadores de uma ou outra das colônias alemãs desprotegidas.

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Estamos preparados para uma guerra tão aferrada quanto sem dúvida vai se tornar o futuro conflito das nações europeias? Devemos responder a essa questão, sem titubear, por uma negativa. Sou a última pessoa a negar o tanto que tem sido feito para nossa defesa desde a guerra japonesa, mas ainda assim é bem insuficiente, considerando a escala inédita em que inevitavelmente se travará uma futura guerra. A falha reside, em considerável medida, em nossas jovens instituições legislativas, que têm mostrado um interesse superficial por nossas defesas, mas ainda estão longe de entender a gravidade da situação política que emerge de uma nova orientação seguida nos últimos anos, com a simpatia do público, por nosso Ministro das Relações Exteriores...

Outro fator desfavorável para nossa defesa é sua vastíssima dependência, falando no geral, da indústria estrangeira, um fato que, em ligação com a acima mencionada interrupção de comunicações mais ou menos cômodas com o estrangeiro, criará uma série de obstáculos de difícil superação. Nossa artilharia pesada, cuja importância foi demonstrada na guerra japonesa, é muito insuficiente em quantidade, e há poucos tanques de guerra. A organização de nossas fortificações defensivas mal foi iniciada, e mesmo a fortaleza de Reval, que deve defender a rota para a capital, ainda não foi concluída.

A rede de ferrovias estratégicas é inadequada. As ferrovias possuem um material rodante que basta, talvez, para um tráfego normal, mas não à altura das colossais demandas que lhe seriam feitas no caso de uma guerra europeia. Por último, não se deve esquecer que a guerra iminente será travada entre as nações mais civilizadas e tecnicamente mais avançadas. Todas as guerras anteriores invariavelmente precederam alguma novidade no domínio da tecnologia militar, mas o atraso técnico de nossas indústrias não cria condições favoráveis para adotarmos essas novas invenções.

Todos esses fatores geraram reflexões muito pouco adequadas em nossos diplomatas, cuja atitude face à Alemanha, em alguns sentidos, é até agressiva e pode acelerar excessivamente o momento do conflito armado, um momento que, obviamente, é mesmo inevitável em vista de nossa orientação pró-britânica.

A questão é se essa orientação é correta e se mesmo um desfecho favorável da guerra nos garantirá vantagens suficientes para nos compensarem todas as privações e sacrifícios que deve provocar uma guerra sem paralelos em sua provável dimensão.

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Os interesses vitais da Rússia e da Alemanha não se contrapõem. Há bases sólidas para uma coexistência pacífica desses dois Estados. O futuro da Alemanha assenta no mar, isto é, um domínio em que a Rússia, essencialmente a mais continental das grandes potências, não tem quaisquer ambições. Não temos colônias ultramarinas e provavelmente nunca teremos, e a ligação entre as muitas partes de nosso império é mais fácil por terra do que por água. Não há às vistas população excedente exigindo expansão territorial, mas, mesmo do ponto de vista de novas conquistas, o que podemos obter se vencermos a Alemanha: Posen, ou a Prússia Oriental? Mas por que precisamos dessas regiões, tão densamente povoadas por poloneses, se achamos bastante difícil dirigir até mesmo nossos próprios poloneses russos? Por que fomentar tendências centrípetas, que não cessaram mesmo hoje no território do Vístula, ao se incorporarem ao Estado Russo os inquietos poloneses de Poznań e da Prússia Oriental, cujas demandas nacionais nem mesmo o governo alemão, que é mais firme do que o russo, consegue reprimir?...

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Em todo caso, mesmo se devêssemos reconhecer a necessidade de erradicar o domínio alemão no campo de nossa vida econômica, mesmo ao custo de banir totalmente o capital alemão da indústria russa, poderiam ser tomadas medidas apropriadas, ao que parece, sem guerrear contra a Alemanha. Uma tal guerra exigirá gastos tão enormes que eles excederão em muitas vezes nossas vantagens mais do que duvidosas em abolir o domínio [econômico] alemão. Mais do que isso, o resultado dessa guerra será uma situação econômica que, comparada ao jugo do capital alemão, será muito mais penosa.

Porquanto não se pode duvidar de que a guerra exigirá gastos situados além dos limitados recursos financeiros da Rússia, teremos de conseguir créditos dos países aliados e neutros, mas isso não será cedido de graça. Quanto ao que acontecerá se a guerra terminar em desastre para nós, não desejo discutir agora. As consequências financeiras e econômicas da derrota não podem ser calculadas nem previstas, e certamente resultarão na ruína completa de toda nossa economia nacional.

Mas mesmo vencendo encararíamos um panorama financeiro extremamente desfavorável; uma Alemanha toda arruinada não teria condições de nos ressarcir os custos despendidos. Ditada no interesse da Inglaterra, o tratado de paz não facilitará à Alemanha uma recuperação econômica suficiente para cobrir todos os gastos bélicos, mesmo num longo prazo. O pouco que talvez possamos conseguir lhe arrancar terá de ser dividido com nossos aliados, e em nosso butim não cairão mais do que migalhas insignificantes, comparadas com o custo bélico. Enquanto isso, teremos de pagar nossos empréstimos de guerra, não sem pressão por parte dos aliados, pois, após ter sido destruída a potência alemã, eles não precisarão mais de nós. Ou pior, nossa força política, melhorada com nossa vitória, induzi-los-á a enfraquecer-nos, ao menos economicamente. Portanto, é inevitável que, embora terminemos ganhando a guerra, cairemos no mesmo tipo de dependência financeira e econômica ante nossos credores, que fará nossa atual dependência ante o capital alemão parecer um sonho.

Contudo, por mais nocivas que possam ser as perspectivas econômicas que nos esperam como resultado da união com a Inglaterra e, nessa trilha, da guerra com a Alemanha, elas têm ainda importância secundária quando pensamos nas decorrências política dessa aliança essencialmente anormal.

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Não devemos esquecer que a Rússia e a Alemanha são os representantes do princípio conservador no mundo civilizado, em oposição ao princípio democrático encarnado pela Inglaterra e, num grau infinitamente menor, pela França. Por estranho que possa parecer, a Inglaterra, internamente monarquista e conservadora até a medula, sempre atuou em suas relações exteriores como protetora das tendências mais demagógicas, fomentando de forma variada todos os movimentos populares que visam enfraquecer o princípio monárquico.

Desse ponto de vista, um combate entre a Alemanha e a Rússia, qualquer que seja seu desfecho, é extremamente indesejável por ambos os lados, por acarretar inevitavelmente a debilitação do princípio conservador, em cujo universo as duas grandes potências mencionadas acima são os únicos baluartes seguros. Mais do que isso, pode-se supor que nas excepcionais condições existentes, uma guerra geral europeia é mortalmente perigosa tanto para a Rússia quanto para a Alemanha, não importa quem ganhe. É nossa firme convicção, baseada em demorado e cuidadoso estudo de todas as tendências subversivas contemporâneas, que inevitavelmente deverá irromper no país derrotado uma revolução social que, tal como as coisas são naturalmente, espraiar-se-á para o país vencedor.

Durante os longos anos de pacífica coexistência cordial, os dois países se tornaram atados por muitos laços, e uma agitação social em um certamente afetará o outro. Não há dúvidas de que esses distúrbios serão de natureza social, e não política, o que se mostrará válido não apenas para a Rússia, mas também para a Alemanha. Um terreno particularmente fértil para levantes sociais existe na Rússia, onde sem dúvida as massas professam, inconscientemente, os princípios do socialismo. Apesar do clima de oposição ao governo na sociedade russa, tão inconsciente quanto o socialismo das vastas massas populares, uma revolução política é impossível na Rússia, e todo movimento revolucionário deve degenerar invariavelmente num movimento socialista. Os opositores do governo não têm apoio popular. O povo não vê qualquer diferença entre um funcionário do governo e um intelectual. As massas da Rússia, sejam operárias ou camponesas, não buscam direitos políticos que elas não querem nem entendem.

O camponês sonha em obter de graça um pedaço da terra de qualquer um; o operário, em se apossar de todo o capital e lucros do industrial. Essas são suas únicas aspirações. Se esses motes se propagarem por todo lado entre o populacho, e se o governo permitir agitações seguindo essas linhas, a Rússia se afundará na anarquia, do mesmo modo que sofreu o inesquecível período de revoltas em 1905-1906. Uma guerra com a Alemanha criaria condições extremamente favoráveis para uma agitação assim. Como já mencionado, essa guerra engendra enormes dificuldades para nós e não tem como desembocar numa simples marcha triunfal sobre Berlim. Tanto as catástrofes militares – que esperamos serem parciais – quanto todo tipo de problemas com nossas provisões são inevitáveis. Ante os excessivos nervosismo e espírito de oposição de nossa sociedade, esses eventos receberão uma importância exagerada, e toda a culpa será jogada sobre o governo.

Será bom se o governo não ceder, mas declarar prontamente que em tempo de guerra não deve ser tolerada nenhuma crítica à autoridade governamental e reprimir toda oposição. Em não havendo qualquer sólida influência da oposição sobre o povo, isso resolveria a questão. O povo não prestou atenção aos redatores do Manifesto de Wiborg na época, e não os seguirá agora.

Mas algo pior pode acontecer: a autoridade governamental pode fazer concessões, tentar chegar a um acordo com a oposição e dessa forma enfraquecer a si mesmo, bem quando os elementos socialistas estiverem prontos para agir. Mesmo podendo parecer um paradoxo, ocorre que esse acordo com a oposição na Rússia enfraquece positivamente o governo. O problema é que nossa oposição se recusa a levar em conta o fato de que ela não representa nenhuma força real. Por toda parte a oposição russa é intelectual, o que constitui sua fraqueza, pois entre a intelligentsia e o povo há um profundo abismo de desconfiança e divergência mútuas. Precisamos de uma lei eleitoral fictícia, de fato, necessitamos da influência direta da autoridade governamental, para blindar a eleição para a Duma Estatal dos ainda mais zelosos campeões dos direitos populares. Se o governo se recusar a apoiar as eleições, deixando-as correr naturalmente, as instituições legislativas não veriam entre suas paredes um só intelectual, exceto uns poucos demagogos agitadores. Por mais que os membros de nossas instituições legislativas possam insistir em que o povo confia neles, o camponês preferiria na Duma antes o funcionário estatal sem terra do que o senhor outubrista de terras, enquanto o operário trata o inspetor de fábrica assalariado com mais confiança do que o industrial legislador, mesmo se este professa cada princípio do Partido Cadete.

Nessas circunstâncias, é mais do que estranho que a autoridade governamental seja solicitada a levar seriamente em conta a oposição, renuncie, com esse fim, ao papel de regulador imparcial das relações sociais e apresente-se diante das vastas massas populares como o órgão submisso às aspirações classistas da minoria possuidora e intelectual da população. A oposição exige que o governo responda perante ela, que represente uma classe e obedeça ao parlamento que ele criou artificialmente. (Lembremos a famosa expressão de V. Nabokov: “Que o Poder Executivo se submeta ao Poder Legislativo!”) Em outras palavras, a oposição exige que o governo adote a psicologia do selvagem e venere o ídolo que ele mesmo criou.

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Se sairmos vencedores da guerra, a repressão ao movimento socialista não oferecerá nenhum obstáculo insuperável. Haverá distúrbios agrários, resultantes da agitação para que os soldados sejam compensados com lotes adicionais de terra; haverá distúrbios operários ao se transitar dos salários provavelmente aumentados durante a guerra para as tabelas regulares; e esperamos que isso seja tudo, enquanto a vaga da revolução social alemã não nos atingir. Mas em caso de derrota, cuja possibilidade não se deve negligenciar numa luta contra um inimigo como a Alemanha, será inevitável a revolução social em seu modelo mais extremado.

Como já foi dito, o problema começará quando culparem o governo por todos os desastres. Nas instituições legislativas começará uma amarga campanha contra o governo, seguida de agitações revolucionárias por todo o país, com palavras de ordem socialistas capazes de incitar e congregar as massas, partindo da divisão das terras e passando pela divisão de todas as propriedades e objetos de valor. O exército derrotado, tendo perdido seus homens mais confiáveis e impressionado pela maré da secular sede camponesa pela terra, sentir-se-á desmoralizado demais para servir de bastião da lei e da ordem. Carentes de autoridade efetiva aos olhos do povo, as instituições legislativas e os partidos da oposição intelectual ficarão impotentes para estancar a onda popular que eles mesmos atiçaram e a Rússia cairá numa irremediável anarquia, cuja solução não pode ser prevista.

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Por mais estranho que isso possa parecer à primeira vista, diante da surpreendente frieza do caráter alemão, igualmente a Alemanha está destinada, caso vencida, a sofrer não menos insurreições sociais. O efeito de uma guerra desastrosa sobre a população será severo demais para não trazer à tona tendências destrutivas, hoje profundamente ocultas. A peculiar ordem social da Alemanha moderna assenta na influência realmente dominante dos agrários, os Junkers prussianos e os camponeses proprietários.

Esses elementos são o esteio do regime alemão profundamente conservador, liderado pela Prússia. Os interesses vitais dessas classes exigem uma política econômica que favoreça a agricultura, os impostos sobre a importação de grãos e, em decorrência, preços altos para todos os produtos agrícolas. Mas a Alemanha, com seu território limitado e sua população crescente, há muito tempo está se convertendo de um Estado agrícola a um industrial, de forma que a proteção à agricultura, de fato, traduz-se em taxar a maior parte da população em benefício de poucos. Essa maioria é compensada com o extenso desenvolvimento da exportação de produtos industriais alemães para os mercados mais distantes, de forma que as decorrentes vantagens permitem, assim, que patrões e trabalhadores paguem os caros preços dos produtos agrícolas consumidos no país.

Derrotada, a Alemanha perderá seus mercados mundiais e seu comércio marítimo, pois o objetivo da guerra – da parte de seu real instigador, a Inglaterra – será a destruição da competição alemã. Depois que isso acontecer, as massas trabalhadoras, privadas não somente dos salários mais altos, mas de todo e qualquer salário, tendo sofrido enormemente durante a guerra e naturalmente se ressentindo, oferecerá um solo fértil para a propaganda antiagrária e, a seguir, antissocial dos partidos socialistas.

Esses partidos, por sua vez, manuseando a revolta patriótica sentida pelo povo devido à derrota na guerra e a exasperação dele contra os militaristas e o regime feudal-burguês que o traíram, abandonarão a rota da evolução pacífica que há muito estavam tão firmemente seguindo e tomarão um rumo puramente revolucionário. Principalmente caso haja distúrbios agrários na Rússia vizinha, haverá também alguma participação da classe de agricultores sem terra, que é bem numerosa na Alemanha. Fora isso, haverá um renascimento de tendências separatistas até agora dissimuladas no sul da Alemanha, e o antagonismo oculto da Bavária contra a dominação da Prússia emergirá com toda força. Resumindo, criar-se-á uma situação que (em gravidade) será pouco melhor do que a da Rússia.

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Um apanhado de tudo o que foi afirmado acima deve levar a concluir que uma aproximação com a Inglaterra não nos garante quaisquer vantagens e que a orientação pró-inglesa de nossa diplomacia é essencialmente errônea.

Não andamos na mesma trilha que a Inglaterra: deixemo-la seguir seu próprio rumo, e assim não brigaremos com a Alemanha por causa dela. A Tríplice Entente é um arranjo artificial, baseada em nenhum interesse efetivo, e nada tem a esperar. O futuro reside numa aproximação estreita e muitas vezes mais vital entre a Rússia, a Alemanha, a França (pacificada com a Alemanha) e o Japão (aliada à Rússia por uma união estritamente defensiva). Uma tal combinação política, imune a qualquer agressividade ante outros Estados, conservaria por muitos anos a paz entre as nações civilizadas, ameaçada não pelas ambições combativas da Alemanha, como a diplomacia inglesa está tentando mostrar, mas unicamente pelo esforço perfeitamente natural da Inglaterra em manter a qualquer preço seu decadente domínio sobre os mares. É nesse caminho, e não na infrutífera busca em sustentar um acordo com a Inglaterra, tão contrário à natureza de nossos planos e metas nacionais, que devem se centrar todos os esforços de nossa diplomacia. É evidente por si que a Alemanha, de sua parte, irá ao encontro de nosso desejo de restaurar nossas provadas relações e a aliança amistosa com ela e de elaborar, em perfeito acordo conosco, os termos dessa nossa coexistência cordial de forma a não dar ensejo à agitação antialemã por parte de nossos partidos constitucional-liberais, os quais são impelidos, por sua própria natureza, a aderir não à orientação alemã conservadora, mas à liberal inglesa.


Fevereiro de 1914
P. N. Durnovo