Embora meu primeiro serviço de tradução tenha sido publicado em 2017 na coletânea Manifestos vermelhos e outros textos históricos da Revolução Russa, sob a coordenação de Daniel Aarão Reis (a quem sempre vou ser grato por essa oportunidade), esta semana decidi trazer à página alguns dos textos que foram aí publicados, pois certamente sofreram alguma alteração dos editores e algum dia o livro pode se tornar raridade. Em 2022 eu já tinha publicado minhas traduções que não saíram na coletânea, mas agora trago meus outros originais, ainda que sob o risco de estar infringindo algum direito autoral. Infelizmente, nem todos os documentos em russo me foram fornecidos com a indicação da fonte, portanto, ela quase sempre vai estar ausente, mas quando a base mesma da tradução tiver sido conservada, ela vai aparecer após minha tradução ao português, com a ortografia atualizada.
Hoje temos uma seleção dos principais discursos, entrevistas e atividades do chefe menchevique Iúli Mártov (1873-1923), nascido Iúli Tsederbáum, também conhecido como “L. Martov” (como o fundador da URSS, na clandestinidade, que assinava “N. Lenin”, e não “V. Lenin”) e que ficou à esquerda de seu partido durante a 1.ª Guerra Mundial, contra o combate ao lado dos aliados. Lembremos que a social-democracia (marxistas) russa se dividiu entre bolcheviques (programa máximo) e mencheviques (programa mínimo) em 1905 e daria origem a dois partidos diferentes em 1912. Os bolcheviques, que se renomearam “comunistas”, tomaram o poder em 1917, mais tarde jogando na ilegalidade os mencheviques, partes dos quais, porém, passou a apoiar o Poder Soviético em seus inícios. Um deles foi Martov, que só se exilou na Alemanha em 1920 devido a uma forte tuberculose, que finalmente o matou em 1923.
Mantive a formatação do arquivo original, tanto os negritos quanto a divisão dos parágrafos, o que levou alguns a ficarem longuíssimos. Como não tive tempo de fazer novas revisões, me responsabilizo por eventuais erros ou imprecisões. Qualquer observação é bem-vinda, bastando escolher um dos canais de comunicação que apresento no menu à direita da página.
SESSÃO NOTURNA EXTRAORDINÁRIA DO COMITÊ EXECUTIVO CENTRAL DOS SOVIETES DE DEPUTADOS OPERÁRIOS, SOLDADOS E CAMPONESES
A sessão é aberta às 12 horas e 25 minutos da madrugada sob a presidência do cam. Gots. O presidente comunica à assembleia que na ordem do dia consta a questão sobre a avaliação do momento presente.
Discurso de Martov – Sobre a questão dos acontecimentos em curso, o cam. Martov assinala que sem dúvidas, entre os membros do Comitê Executivo Central (CEC), não há quem negue o direito do proletariado à insurreição. Mas no atual momento as condições para tanto não são favoráveis. E embora os mencheviques internacionalistas não se oponham à passagem do poder para as mãos da democracia, eles se manifestam decididamente contra os métodos pelos quais os bolcheviques lutam por esse poder. O cam. Martov encerra com a indicação de que o CEC fez bem, que colocou na ordem do dia da sessão a questão sobre o momento presente, pois ele não cumpriria seu dever revolucionário se não realizasse um balanço das forças. Martov conclama a assembleia a aderir à resolução adotada pelo Conselho da República.
“Rabochaia gazeta”, 26 de outubro de 1917, n. 196.
O CONGRESSO DOS SOVIETES
Antes da abertura – Ao abrir-se o Segundo Congresso Pan-Russo dos Sovietes estavam presentes 562 delegados, dos quais 532 indicaram ser de um partido. Os delegados partidários se repartem da seguinte forma: 252 bolcheviques, 15 internacionalistas unificados, 65 mencheviques (dos quais 30 internacionalistas e 21 defensistas [oborontsy]), 7 sociais-democratas nacionais, 155 socialistas revolucionários (SR, dos quais 16 de direita). [...] Ocorrem o tempo todo reuniões das frações do congresso, principalmente dos mencheviques e SR. Às 9 horas da noite verificou-se que os mencheviques, também incluídos aí os internacionalistas, não julgam possível apoiar nem mesmo indiretamente a aventura bolchevique nem entrar em qualquer combinação que seja, com relação à composição dos órgãos de poder. Por isso os mencheviques decidiram renunciar à participação no congresso e, tendo manifestado sua declaração, abandoná-lo.
Abertura do congresso
PROPOSTA DE MARTOV – Em nome da fração menchevique internacionalista e do Partido Operário Social-Democrata Judeu, Martov apresenta a proposta, em primeiro lugar, de colocar na ordem do dia a questão da resolução pacífica da crise estabelecida. Martov declara que a fração menchevique internacionalista não julga possível assumir a responsabilidade política pela aventura empreendida pelos bolcheviques. Cumpre tomar medidas, diz o orador, para suspender as operações militares de ambos os lados. Martov insiste em que a questão da resolução pacífica dos conflitos seja colocada em primeiro lugar para ser decidida pelo congresso, pois ela é extremamente séria e a guerra civil já começou. Todas as frações aderem à proposta de Martov.
RESOLUÇÕES DOS MENCHEVIQUES
Considerando: 1) que uma conspiração armada foi organizada e realizada pelo partido bolchevique em nome dos Sovietes pelas costas de todos os outros partidos e frações neles representados; 2) que a tomada do poder pelo Soviete de Petrogrado na véspera do Congresso dos Sovietes constitui uma perturbação e uma sabotagem de toda a organização soviética e solapou o significado do congresso como representante plenipotenciário da democracia revolucionária; 3) que essa conspiração está arrastando o país a uma guerra intestina, frustrando a Assembleia Constituinte, concorrendo para a catástrofe militar e levando ao triunfo da contrarrevolução; 4) que a única saída pacífica possível dessa situação continuam sendo as negociações com o Governo Provisório sobre a formação de um poder baseado em todos os estratos da democracia; 5) que o POSDR (unificado) considera sua obrigação diante da classe operária não apenas afastar de si toda responsabilidade pelas ações bolcheviques encobertas pela bandeira dos sovietes, mas também advertir os operários e soldados contra uma política aventureira e nociva para o país e a revolução; a fração do POSDR (unificado) está deixando o presente congresso, convidando todas as outras frações que, assim como ela, recusam-se a levar a responsabilidade pelas ações dos bolcheviques, a reunirem-se imediatamente para debater a situação.
“Rabochaia gazeta”, 26 de outubro de 1917, n.º 196
O CONGRESSO DOS SOVIETES
Na sessão noturna de 25 de outubro, após as declarações dos S[ocialistas] R[evolucionários] e dos mencheviques, o cam. Erlikh toma a palavra para uma declaração não inscrita na ordem do dia.
Segunda declaração do cam. Martov – As notícias que se apresentam aqui exigem de nós, com ainda mais insistência, passos resolutos. (Aparte: “Que notícias? São apenas boatos”.) Aqui se relatam não apenas boatos, mas se vocês chegarem mais perto das janelas, também ouvirão os disparos de canhões. Se vocês querem que seu congresso seja idôneo não apenas porque ele está constituído conforme quaisquer estatutos, mas porque ele replica aos terríveis fatos do dia, vocês devem imediatamente adotar uma resolução afirmando que o congresso considera indispensável a resolução pacífica do conflito. É preciso formar imediatamente um governo democrático inclusivo, o qual a democracia toda reconhecesse. O congresso precisa dizer se deseja cessar o banho de sangue. Para encerrar, o cam. Martov pronuncia a declaração dos mencheviques internacionalistas e do partido operário socialista judeu “Poalei Tsion”.
A saída dos internacionalistas – O cam. Kapelinski apresenta a declaração não inscrita na ordem do dia, em nome dos mencheviques internacionalistas e o partido operário social-democrata judeu “Poalei Tsion”. Acreditamos que no presente momento a situação é terrível, e cumpre tomar medidas urgentes para evitar uma guerra civil que arruinará a revolução. É necessário encontrar um caminho pacífico para solucionar a crise, e quanto a isso nada há a discutir. De nossa parte foi feita a proposta de enviar uma delegação a todas as organizações democráticas para formar um poder democrático. Nossa proposta não apenas não encontrou simpatia, mas também recebeu desaprovação. Tudo isso nos obrigou a abandonar a sessão do congresso. Mas cada momento é precioso, e visto que, apesar de tudo, a atitude negativa para com nossa proposta não teve aqui manifestação incisiva, então voltamos para colocar a questão de uma discussão imediata. Pois bem, nós propomos novamente escolher uma delegação que vá a cada organização democrática. Podemos e devemos todos convergir quanto a isso se queremos realmente formar uma frente revolucionária unida. Lembrem-se de que tropas estão se aproximando de Petrogrado! A catástrofe nos ameaça! Se uma delegação não for imediatamente escolhida, nós sairemos do congresso.
CONGRESSO NACIONAL EXTRAORDINÁRIO DO POSDR (unificado)
O congresso é aberto em 30 de novembro, ao meio-dia.
O atual momento – Esgotadas as declarações não inscritas na ordem do dia, o congresso passa a discutir o primeiro ponto da ordem do dia: a questão do atual momento e das tarefas do partido na Assembleia Constituinte. Informantes: Liber, Martov e Potresov.
Discurso de Martov – O próximo a discursar é o cam. Martov. O golpe de 25 de outubro não foi casual, mas predeterminado pelo curso inteiro da revolução russa. O encerramento da guerra, a criação de condições para o desenvolvimento normal da vida econômica e a solução radical da questão agrária são os três problemas fundamentais de nossa revolução. Elas foram rapidamente assimiladas pelas massas, e o curso ulterior da revolução dependia de quais forças sociais podiam se candidatar para realizar essas tarefas. Objetando ao cam. Liber, o cam. Martov afirma que no curso da revolução, os burgueses podem implantar as fundações da nova ordem, mas a própria revolução pode ultrapassar as forças criadoras deles e, como se deu com as revoluções no Ocidente, pode chegar uma hora em que a revolução burguesa vai se desenrolar contra a burguesia. Isso também ocorreu conosco. Em seguida o cam. Martov demonstra que a democracia pequeno-burguesa e rural não tinha forças para realizar as tarefas da revolução, por não ver em si a vontade de livrar-se da atração pelas classes possuidoras, de atuar sem elas e contra elas. A coalizão com a burguesia e o esforço em fazer a todo o custo o poder de Estado na revolução representar toda a nação tornaram a pequena burguesia imprestável para o papel de líder nacional da revolução, apesar de toda a possibilidade de receber o apoio do proletariado. E aqui uma notável parte da responsabilidade recai sobre nosso partido, que graças às particularidades da evolução da revolução russa exerceu tão forte influência sobre a democracia pequeno-burguesa. Com nossa atitude para com a ideia de coalizão tão longamente predominante no partido, nós refreamos a autodeterminação da democracia burguesa. Há muito a coalizão já estava superada, e apenas a ação bolchevique de 3-5 de julho prolongou seus dias. A rebelião de Kornilov, tendo despertado uma enorme elevação de energia nas massas da democracia, criou um fato novo: em quase toda a parte os poderes locais passaram para as mãos dos órgãos revolucionários. Isso criou um ensejo para uma difusão extraordinariamente ampla da ideia de um governo revolucionário homogêneo. Mas a deliberação democrática não seguiu por esse caminho, e resultou que a aguda contradição entre o humor das massas e a organização do poder central ficou visível a todos; e a única pergunta era se ocorreria um estouro antes da Assembleia Constituinte ou se esta o debelaria. Tanto à esquerda quanto à direita havia grupos interessados em que a questão fosse resolvida por meio de uma explosão espontânea. A coalizão com os burgueses, pela incapacidade deles de cumprir as tarefas da revolução, impeliu o proletariado à ideia de que a solução delas era viável com suas próprias forças. Isso isolou os proletários, tanto mais que a mobilização de 10 milhões de camponeses fez da massa de soldados provisoriamente marginalizados um aliado do proletariado. Deu-se então que o caminho espontâneo já é uma realidade. Antes de tudo devemos constatar que o golpe de outubro, apesar de contrariarmos seu formato, impôs-se tarefas objetivamente progressistas. É indiscutível que o golpe, como toda tentativa de colocar tarefas objetivamente irrealizáveis, pode ser o prólogo da contrarrevolução, pois do contrário ele não pode terminar em fracasso. A única questão é sobre de que forma será efetuada a liquidação desse golpe: se na forma da derrocada da revolução russa ou por meio da restauração da unidade do movimento proletário e da coordenação das forças do proletariado e da democracia pequeno-burguesa. O fato de não estarem cumpridas as tarefas básicas da revolução e de serem impróprios os meios adotados pelos bolcheviques para resolvê-las vai criar a possibilidade de seguir uma segunda via. Isso explica a popularidade do lema do poder revolucionário unido, dos s[ocialistas] p[opulares] aos bolcheviques. Essa é a única chance de salvar a revolução. Pode ser que quando os bolcheviques concordarem com ela, já será tarde; mas nossa tarefa é tomar uma posição que evite à responsabilidade por esse fracasso recair sobre o partido da classe operária. Toda nossa tática na Assembleia Constituinte deve ser construída de forma que esse princípio básico oriente cada [membro] individual de nosso partido. Alguns nutrem a ilusão de que na Assembleia Constituinte, graças à vitória dos s[ocialistas] r[evolucionários], será possível um governo homogêneo sem os bolcheviques e sem elementos censitários. É um engano. Tal poder precisaria se esquivar da pressão das massas proletárias, ainda majoritariamente atraídas pelos bolcheviques, e ele seria, além disso, obrigado a apoiar-se na fração direita da Assembleia Constituinte, o que significaria uma restauração dissimulada da coalizão. Mas agora, depois do que aconteceu, tal coalizão só é possível passando por cima dos cadáveres do movimento proletário. Mesmo que apenas parte da burguesia se aloje no poder, resta-lhe apenas atuar como uma ditadura contrarrevolucionária. O proletariado deve recusar os métodos anárquicos da ditadura contra a democracia; mas a democracia também deve renunciar à ideia de formar um poder sem os proletários. O orador antevê que o desenrolar da luta pelo poder na Assembleia Constituinte será inevitável, e que os atuais detentores do mando não vão largá-lo sem luta. Mas a luta do partido do proletariado deve ser entendida como uma luta por uma reeducação, ou melhor, por uma primeira educação política. À medida que forem crescendo os inevitáveis conflitos internos dos bolcheviques, devemos aparecer na qualidade de uma força que coligue o proletariado em torno da ideia da Assembleia Constituinte. Não temos interesse em acelerar a crise, objetivo que, conforme vemos, é o dos bolcheviques. Para nossos fins, pelo contrário, é proveitosa uma solução gradual da crise. Devemos admitir, além disso, que não temos influência sobre as amplas massas, e nossa tarefa é congregá-las. Para isso, devemos conservar a plena independência de classe. Claro que isso não exclui acordos, mas exclui a dissolução. Precisamos de uma política tal que não nos acomode a incluir todas as forças num só organismo, pois o resultado comum deve resultar da luta dessas forças.
Sessão matinal de 1.º de dezembro – A sessão é aberta ao meio-dia, sob a presidência do cam. Krokhmal. Na ordem do dia está a discussão dos informes sobre a questão do atual momento e das tarefas do partido na Assembleia Constituinte.
Discurso de Martov – Martov começa objetando aos oradores precedentes. Potresov havia proposto combater o bolchevismo tal como os socialistas da Europa Ocidental combatem o antissemitismo. Mas agora a única questão é se eles vão se aliar à burguesia para reprimir os bolcheviques ou lutar apenas por meio da crítica. Os socialistas europeus lutaram contra um socialismo que estava levando os operários a morrer na guerra. Zhores havia até mesmo proposto um acordo e foi nisso apoiado por Kautsky. Levitski diz que eles não podiam “acomodar-se”. Não, em ampla medida era preciso: devia-se atuar de acordo com as circunstâncias. A base do movimento bolchevique repousa na incapacidade de uma coalizão realizar as tarefas da revolução. A realidade mostra que muito podia ter sido feito, mas não o foi a fim de se conservar a coalizão. Trotsky, por exemplo, conseguiu agora a libertação de Chicherin. E o que foi feito quanto a regularizar a indústria e out[ras] questões? Reduzir o bolchevismo às suas aventuras significa fechar os olhos à realidade. Dizem que um acordo com os bolcheviques é inadmissível. Mas no caso contrário é de fato inevitável uma coalizão com uma burguesia dirigida para promover a contrarrevolução aberta por longos anos. Se a burguesia tomar a mão de vocês, será apenas para esmagá-la com a dela mesma. Potresov acerta ao dizer que o regime bolchevique atrai os aventureiros, só que eles também não eram poucos em torno de Kerenski. Era um despotismo, embora muitíssimo esclarecido, mas ele habituava as massas ao arbítrio e com isso deu espaço à insurreição. Potresov censura que em nossos construtos concedemos pouco espaço à Assembleia Constituinte, o que é falso. As teses de meu informe desmentem isso. Pensamos que apenas fortalecendo as instituições democráticas o proletariado pode vencer. Um acordo com os bolcheviques, claro, é um compromisso. Mas é óbvio que com a questão do caráter burguês da revolução não se deve transigir. Um terreno para o acordo só pode se formar no curso dos acontecimentos, da desilusão das massas com o bolchevismo e da separação delas de seus chefes. Por enquanto esse terreno não existe, e talvez ele nem vá existir. Mas nossa consciência estará limpa. Potresov pensa que, isolando-nos do menchevismo e isolando o proletariado, conseguiremos que as massas, tendo se desiludido com o bolchevismo, virão até nós. Não, elas continuarão rodando e varrerão também a nós. Talvez seja isso que acontecerá. Mas é possível que a salvação esteja apenas em manter o movimento ofensivo da revolução, em cumprir as tarefas dela.
Seção noturna de 2 de dezembro
Discurso de Martov – Parte do congresso transformou os debates sobre a questão da guerra e do armistício num tribunal contra os internacionalistas. Isso se faz com vistas a utilizar a ruína do bolchevismo para desacreditar o internacionalismo e renovar a ideia nacional. Ontem nos gritavam: “O que vocês fizeram!”. Só que não fizemos uma política independente diferente da nossa. Seguindo nossa política, em 3-5 de julho, quando os bolcheviques chamaram à rua, nós não os acompanhamos. Também não os acompanhamos quando eles traduziram no front nossas ideias para a língua deles. Não fizemos isso porque não acreditávamos no internacionalismo e no socialismo das massas. Não acreditávamos na paz, à revelia e contra a maioria da democracia. Por isso nossa luta foi orientada para a conquista dessa democracia, ao esclarecimento classista das massas que nos seguiam. E visto que a política de vocês afastava da social-democracia as massas, nós a mantivemos, mesmo que num grau mínimo. Nossos êxitos não são grandes: as eleições mostraram isso. Mas há alguns: de congresso em congresso aumentam nossas forças dentro do partido. Não temos responsabilidade direta pelo que foi feito para alcançar a paz. Mas também não podemos ser acusados daquilo que é culpa dos bolcheviques, pois sempre lutamos contra a interpretação bolchevista das ideias internacionalistas. Estão nos acusando de intervenções contra o “Empréstimo da Liberdade”. Nós discursamos contra ele não porque esse dinheiro deveria ter sido gasto em canhões e espingardas, mas porque ele se destinava a canhões e espingardas inúteis. Para nós já em junho estava claro que era impossível reduzir o exército. Entretanto, apenas em setembro Verkhovski apresentou um projeto de tal redução, e exatamente graças a isso ele teve de ser retirado. Uma redução das forças armadas agiria em proveito da Aliança imperialista e nos interesses de nossos industriais. A questão sobre a existência futura da Rússia não se decide nem com um armistício, nem com uma paz assinada antes da Assembleia Constituinte, nem com uma paz que a assembleia será forçada a reconhecer. A questão sobre o futuro da Rússia pode ser reconsiderada. É indispensável renunciar à política da coalizão, cuja ruína foi mostrada quando não se realizou nem a Conferência de Estocolmo, nem a de Praga. Devemos colocar o partido nos trilhos da luta de classes e lembrar que nossas esperanças devem estar fundadas não na possibilidade de desforra, mas na avaliação do movimento democrático no Ocidente. Dessa forma pode-se conseguir que a insurreição bolchevique também se mostre um passo adiante no curso da revolução.
Sessão de 4 de dezembro – A sessão é aberta ao meio-dia. A palavra sobre a questão da unidade do partido é concedida a Iezhov.
Discurso de Martov – Passa-se a palavra final para o cam. Martov. Martov declara que os internacionalistas nunca ameaçaram sair do partido, como disse Dan. Eles não saíram sequer do Comitê Central (CC). Foi um mal-entendido, imediatamente elucidado, quando os internacionalistas decidiram retirar seus representantes da composição representativa do CC no Comitê de Salvação, mas Abramovich comunicou por engano que haviam sido retirados seus representantes do CC. Já os defensistas, 11 pessoas, realmente haviam saído. Somos acusados, por um lado, de termos reprimido com nossos votos opiniões contrárias às nossas no CC, formando uma maioria artificial, e, por outro lado, com uma organização própria, de termos combatido esse mesmo CC. Enquanto a possibilidade de termos maioria no CC era apenas eventual, é verdade que nos recusamos a fruir essa eventualidade. Mas o compromisso de não fruirmos nossos votos nós não demos. E quando, depois de 25 de outubro, o centro e nós formamos uma maioria bastante regular, estaríamos falseando a vontade do partido se, renunciando ao voto, tivéssemos formado uma maioria artificial na ala direita. Entenderam meu informe como um fundamento de divisão. Foi um erro. Penso que no partido deve haver disciplina, mas em condições de unidade orgânica das diversas tendências quanto ao essencial, e não o domínio de uma fração sobre a outra. Cumpre reconhecer apenas o princípio organizativo geral, deixando que o tato dos centros e frações o ponha em prática, que a consciência de cada fração decida se pode ou não permanecer nas fileiras do partido, tendo aceitado esse princípio. O princípio é reconhecer como critério diretor as noções de solidariedade internacional do proletariado e de luta de classes. Encerrou-se a discussão sobre a questão da unidade do partido. Para elaborar uma resolução sobre essa questão, o congresso elegerá uma comissão composta por Kibrik, Akhmatov, Iezhov e Martov. O congresso passa a discutir as questões sobre a atitude do partido diante da formação de províncias nacionais autônomas, agora ocorrendo em toda a parte, e sobre as necessidades que daí decorrem de mudar as formas como o partido está estruturado. A seção do congresso que estudou essa questão para aprovação unânime não chegou; por isso discursam os informantes de ambas as correntes nela delineadas – os cams. Liber e Semkovski.
Sessão de 7 de dezembro
Discurso de Martov – Eu partilho da opinião expressa na resolução de Martynov. Acredito ser possível entrar na CEC (Comissão Executiva Central), mas apenas quando se formarem condições adequadas para tanto. Saímos do congresso porque percebemos o naufrágio da linha anterior do Soviete e, ao mesmo tempo, o naufrágio de nosso partido. Não julgamos possível permanecer na qualidade de um pequeno e fraco grupo de protesto. Mas com relação a isso a situação agora não está melhor. As eleições mostraram isso. Porém, tenho esperança de que, quão rápido as massas se afastaram de nós, tão rápido pelas também podem nos retornar. E nós, nesse caso, já apoiados nas massas, devemos conduzir a luta não apenas fora, mas também dentro do Smolny. Por isso, não convém atar as mãos ao Comitê Central. Dan manifesta pouco alcance de visão ao não notar que a questão da participação nos Sovietes está estreitamente ligada à política expressa na fórmula “dos NS aos bolcheviques”. Considero prematuro e perigoso dizer que os Sovietes já devem ceder lugar a organizações políticas normais. Se novamente, assim como ocorreu nas jornadas de Kornilov, surgir um perigo contrarrevolucionário, formar-se-á mais uma vez o terreno para a existência dos Sovietes. Todas as revoluções conhecem organizações de massa não autorizadas, e essas organizações sempre se revelam dispostas a lutar contra os órgãos do sufrágio universal. Seria isso fatal? Eu penso exatamente que nossa política de acordo possibilita uma transição indolor do período revolucionário a um regime democrático normal. Essa política colabora para transformar os Sovietes em órgãos normais de pressão política.
1918
Congresso extraordinário
(Quarto Congresso dos Sovietes)
Discurso de Martov – O discurso de Martov causa forte impressão. Em particular prestam muita atenção ao orador quando ele fala da premência em designar uma comissão de inquérito para esclarecer em que circunstâncias foi dada a ordem para que o exército se desmobilizasse, enquanto ele podia ainda oferecer resistência. É preciso achar o culpado. O governo que levou o país a tal situação deve renunciar imediatamente e ceder o poder a uma democracia que o país inteiro reconheça. Onde estão as palavras de Trotsky sobre a guerra santa? – pergunta o orador. Faz muito pouco que Trotsky disse: “Se a Alemanha se recusar a assinar uma paz democrática, nós lhe declararemos uma guerra santa”. Onde está essa guerra? Exigimos – Martov conclui seu discurso – a convocação imediata da Assembleia Constituinte. Abaixo os imperialistas e seus capatazes! Martov desce do púlpito. Ouvem-se tempestuosos aplausos à direita e vaias à esquerda.
“Vecherniaia zvezda”, 16 de março de 1918, n.º 34.
Guerra e paz
(Discursos de Abramovich e Martov)
Com esse nome os mencheviques unificados realizaram ontem seu comício no Museu Politécnico. O comício atraiu um numeroso público, que superlotou a plateia e o balcão; compareceram 2 mil pessoas. Ao contrário do congresso dos Sovietes que se reunia ao lado, o humor aí era acerbamente antibolchevique. Vivo e repleto de ataques espirituosos, o informe de R. Abramovich foi recebido com um entusiasmo já há muito perdido em nossas reuniões públicas; nos momentos mais impressivos, o salão, tomado pela juventude intelectual e operária, lança ao orador entusiásticas ovações que constituem uma sólida manifestação contra os bolcheviques. A guerra civil na Ucrânia, dizia o orador, e a dissolução da Assembleia Constituinte assinalam a desintegração da Rússia em pedaços distintos. Os bolcheviques, agindo sobre os instintos profundos da multidão, conseguiu não a ditadura camponesa e operária, mas uma tirania do grupo predominante no comitê central bolchevista. A afirmação de Lenin de que a paz vergonhosa foi consequência da política do absolutismo e de Kerenski é falsa. Por acaso em 24 de outubro os alemães podiam ter ocupado Dvinsk com uma dezena de soldados em bicicletas? Será que 2 mil soldados russos teriam então fugido de sete alemães, como se passou em fevereiro? Teriam baterias e automóveis sido vendidos ao inimigo, e nas ruas de Petrogrado as metralhadoras saído por 25 rublos cada? E não foi em fevereiro que a tripulação de um célebre cruzador russo vendeu toda a mobília, louça e peças de cobre e dividiu o lucro em 8 mil rublos por cabeça?! Pergunto a vocês, camaradas, quem nos levou a isso?... De todos os lados da plateia se ouvem os brados: “Lenin, Trotsky...” O intento de reconstruir o exército em 24 horas sob princípios eletivos, continua o orador, foi uma ideia absurda, e o desejo dos bolcheviques de tomar o poder arruinou o exército. Em seguida o informante analisa as condições da paz e aponta que o pagamento aos alemães por meio de empréstimos russos equivalerá a liquidar o decreto sobre a anulação dos empréstimos, pois o capital é internacional. A leviandade fanfarrona dos bolcheviques em geral e, em particular, o “gesto vermelho” de Trotsky em Brest nos deram esse tratado vergonhoso recém-anunciado no congresso. Os bolcheviques não podem invocar as faltas de seus antecessores: eles estão no poder e eles são culpados. O informante folheia uma brochura com o acordo de paz e se espanta: onde está o mapa definindo os limites da ocupação alemã e as fronteiras do Estado ucraniano? O tratado faz referência a esse mapa, mas o congresso está obrigado a ratificar a paz às cegas. O orador passa a criticar as condições econômicas da “paz vantajosa”, como é agora chamada na Alemanha, pois ela dará a cada alemão 102 gramas a mais de pão todo dia. Na opinião do orador, o operário russo está doravante condenado ao papel de escravo do capital alemão. O informante encerra caracterizando o telegrama de Wilson ao congresso como uma advertência nos dizendo que em breve a Rússia será uma arena de luta entre as duas coalizões inimigas. Nossa única salvação é nos unirmos e cerrar forças para nos fortificarmos contra a próxima investida. Se criarmos nos Urais um centro de defesa e ao encerrar-se a guerra mundial restaurarmos ao menos em parte nossa potência de combate, termos de ser levados em conta e obrigaremos os imperialistas ocidentais a anularem as condições infamantes da paz bolchevique. Com essa paz, os bolchevistas destroçaram o socialismo alemão; seria cômico esperar que o operário alemão fizesse a revolução contra um poder que lhe deu o pão e a banha ucranianos, a manteiga siberiana, o metal e o carvão russos. Não há pelo que culparmos o operário alemão! O orador termina exigindo que se resista ao inimigo, o que só é possível realizando uma série de premissas políticas: é preciso restaurar a frente única revolucionária e unificar a terra russa. A melhor saída agora é recusar-se a ratificar o tratado de paz e convocar a Assembleia Constituinte. As últimas palavras do orador foram cobertas por tempestuosas e muito demoradas ovações de todo o salão em honra da Assembleia Constituinte. Pronunciando o último informe, L. Martov ilustra em pessoa a luta aferrada que é preciso sustentar no congresso da “oposição”, como testemunham seu semblante exausto e sua voz rouca. Daqui a algumas horas se decidirá a questão da assinatura da paz, diz ele, o que não significará o encerramento da guerra. Essa paz é um ato de partilha da Rússia, e se o país não acordar, ela será o prólogo do desmembramento final. Ao encerrar, L. Martov destaca a importância de terem os bolcheviques mudado o nome de seu partido, transformando-se em “comunistas”: o bolchevismo renegou a social-democracia, e ela não arcará com a responsabilidade pela paz desastrosa. Se for verdade a afirmação de que a revolução está rolando montanha abaixo, então é melhor morrer do que se entregar. Nossa missão é lutar contra a paz humilhante e para restaurar a república democrática. Somente uma Rússia democrática livre libertará os povos irmãos traídos pelos bolcheviques e guiará os povos rumo à reconstrução da Internacional operária. A plateia aplaude ruidosamente o orador. As posições que ele manifesta são tão compartilhadas pelos presentes que não se encontra quem queira contestá-las, e o comício termina sem debates.
“Russkie vedomosti”, 16 de março de 1918.
Os mencheviques e o Poder Soviético
(Entrevista com L. Martov) Pela última vez nos jornais soviéticos mencionava-se a desagregação do partido social-democrata e a passagem massiva de seus membros para o comunismo. Nessa ocasião, nosso colaborador entrevistou uma das figuras mais destacadas desse partido, L. Martov, para que explicasse a verdadeira versão dos fatos. – São reais os rumores – foi a primeira pergunta – sobre uma aproximação entre os mencheviques e o poder soviético? – Pelo visto você se refere ao artigo de Radek sobre “Uma voz da sepultura”, no Pravda. Ele percebe como uma tentativa de aproximação a nossa resolução em que não falamos da Assembleia Constituinte, mas exigimos apenas “uma radical mudança na política do poder soviético”. Está claro que é um absurdo. Uma radical mudança na política soviética é indispensável no crítico momento atual para que as massas populares da Sibéria, dos Urais, da Ucrânia etc. não receiem em unir-se à Grã-Rússia nem se aliem à ocupação estrangeira, que consideramos perniciosa. – Quer dizer então que vocês concordam em conciliar-se com o poder soviético? – De jeito nenhum. Permaneceremos convictos de que apenas na soberania popular, na república democrática as classes trabalhadoras encontrarão o expediente para libertarem-se e salvarem uma revolução ameaçada de todos os lados. – Mesmo assim vocês não desistem da Assembleia Constituinte? – E por quê? Mesmo sob o tsarismo avançamos a cada momento dado exigências cuja realização tornaria mais favoráveis as condições para alcançar a república e convocar a Assembleia Constituinte. Isso em nada implicava, como então nos acusavam os amigos do sr. Radek, a traição ao mote da Assembleia Constituinte. Assim procedemos também agora. – Então seu partido permanecerá na oposição, mesmo que mudem os rumos da política do poder soviético conforme vocês exigem? – Claro, pois a parte do proletariado que nos seguiu não pode confiar num “socialismo imediato” nem na construtividade dos meios pelos quais ele está se implantando. – E o que há de verdade ao dizerem que as massas que seguiam os mencheviques estão os deixando? – Não conheço nenhum fato que respaldasse isso. Pois os argumentos que usam para nos combater residem apenas em povoar as prisões com membros de nosso partido, em fechar todos os nossos jornais e organizações, em declarar nosso partido “fora da lei”. O grau de evolução da classe operária russa não é tal que convencê-la fosse possível aos detentores de semelhantes argumentos. – Mas Radek afirma que vocês podem constatar a saída das massas “pelas listas de membros de seu partido”. – Ah, não. Na maioria dos casos essas listas são reguladas pelas chekas, que com elas realmente reduzem os quadros de nosso partido, mandando-os em parte para o xadrez, e outros (como em Rybinsk, Nizhni [Novgorod] etc.), direto desta para melhor. – Porém, o senhor assentiu que politicamente seu partido atualmente está morto. – Ora, parece-me que a notícia de nossa morte é “um tanto exagerada”, como dizia Mark Twain. Tenho essa segurança ao ver que os nobres comunistas, embora nos declarem como um cadáver, já faz dois meses que não param de se interessar e se ocupar com o que pensamos e o que pretendemos fazer. Como sabemos, sobre os mortos se deve ou falar bem, ou não falar nada. Verdade, esse é um preconceito burguês, mas os comunistas fazem a mesma coisa. Veja por exemplo F. Lassalle. Esse “social-traidor” via no sufrágio universal o alfa e o ômega da ditadura do proletariado. Porém, não apenas lhe ergueram um monumento, como durante sua inauguração nem Lunacharski nem Zinoviev mencionaram suas fraquezas, e nem sequer uma vez o chamaram de “social-canalha” ou “lacaio da burguesia”, e até verteram para o defunto algumas lágrimas mornas. Enquanto isso, embora inventem histórias sobre nós “como que falando de mortos”, continuam nos dirigindo todo tipo de obscenidade. Disso concluo que estamos vivos, apesar de tudo. Em absoluto – diz L. Martov encerrando – a social-democracia marxista é um pessoal muito resistente.
“Utro Moskvy”, 21 de outubro de 1918, n.º 19.
