O brasileiro Antônio de Castro Lopes (1827-1901) era um médico de formação, mas também um latinista e filólogo amador (percebeu alguma semelhança com certo oculista polonês que queria acabar com as barreiras linguísticas?...). No final do século 19, período de otimismo no Ocidente, quando se pensava que a humanidade era uma massinha infantil pronta pra ser revolvida e moldada por qualquer maluco com belas ideias grandiloquentes, ele fez publicar uma obra interessante, mas hoje esquecida dos estudiosos em geral. Neologismos indispensáveis e barbarismos dispensáveis data de 1889, mesmo ano da Proclamação da República, e pode ser baixada livremente em formato PDF graças ao maravilhoso trabalho da USP.
Assim como certos Aldos Rebelos que pululam por aqui de tempos em tempos reclamando do uso excessivo de palavras inglesas mal pronunciadas, Castro Lopes (jovens, não confundam com Castro Alves!) resolveu então sugerir meios e exemplos pra substituir a invasão da dominante língua francesa. Não se sabe de que forma ele tentou ou conseguiu (quando conseguiu) influir na adoção dessas palavras – se por leitores jornalistas, professores, escritores, lexicógrafos, publicistas etc. –, mas fato é que, enquanto algumas “pegaram” (como vemos nos artigos abaixo), outras desapareceram com o tempo e se tornaram artigo de curiosidade. Interessante também sua designação como “barbarismos” das palavras estrangeiras que se assimilavam mais ou menos ao português. “Bárbaro” era a palavra grega de origem onomatopaica e um tanto pejorativa pra qualquer povo externo ou desconhecido, matiz que se manteve também no Ocidente moderno, ainda que implicando também desordem, destruição e imoralidade. Nesse ínterim, “povos bárbaros” é uma expressão pros invasores da Europa medieval que deve ser tomada com cautela.
Retorno: talvez o mais famoso dos fracassos de Castro Lopes tenha sido “ludopédio”, termo que os aficionados pelo nobre esporte bretão já devem ter visto alguma vez. Não passava de um neolatinismo com que desejou substituir o inglês (ainda não aclimatado) “football”, empregando os elementos eruditos “lud-” (jogo, ao invés de bola/ball) e “ped-” (pé). Ou seja, nosso oftalmo não interpretou como “bola (ball) no/com o pé (foot)”, ou “bolapé”, como já vi certa vez (rs), mas como “jogo com os pés”. Qual seria o problema? Ele desconhecia se os romanos brincavam de bola, ou achava que inexistiam outros esportes pedestres (corridas ainda não eram populares)? Mas vale a pena conhecer o resto de seu trabalho, portanto, sugiro recorrerem diretamente ao livro citado (segunda edição revista e aumentada por seu filho em 1909, que não consultei pra escrever esta abertura), bem como aos artigos abaixo, que só copiei e cuja edição adaptei, sobretudo, concernente à reforma ortográfica. Mantive os conteúdos integrais, portanto, o todo pode parecer um tanto repetitivo.
A felicidade da alusão a Zamenhof feita acima é que os idiomas humanos, do ponto de vista sociológico, parecem consistir num campo visto, por certos grupos ideológicos e de poder, como maleável, padronizável e simbolicamente carregado. Os Estados nacionais nos séculos 19 e 20 buscaram normatizar, unificar e até “purificar” suas línguas em todo o território sob sua jurisdição. Foi aventada a possibilidade de se planejar uma língua única a ser aprendida em todo o planeta e, assim, supostamente transpor a barreira da incompreensão e das supostas guerras que causaria (era só nisso que sérvios e croatas não se entendiam? E fazia tanta falta assim um Duolingo?). George Orwell usou seu conceito de “novilíngua” pra expressar a manipulação do vocabulário por regimes autoritários – mais atual do que nunca, com a invasão de rapina se tornando “operação militar especial” e a ditadura capitalista, “democracia iliberal”... E por que não citar a linguagem “neutre não binárie”, que confunde o conceito de gênero gramatical com o de gênero biológico, mas cujo impacto e aceitação geral (ou não, devido a seus pregadores extremistas) só veremos em alguns anos?
Tudo pra dizer que, em minha concepção, e na de alguns linguistas, idiomas e linguagens em geral são, sim, maleáveis, mas sua transformação é orgânica, natural, incorporada nas transformações humanas mais gerais, que, assim como aquelas, não podem ser ditadas de antemão. Portanto, sou pelo não proibir, mas também (salvo raríssimos casos, como expressões racistas, preconceituosas etc.) não impor sem critério. Nem Castro Lopes, nem Zamenhof, nem Trumputin, nem a “galere descolade” entenderam a precedência (mas não prevalência!) do descrito sobre a descrição ou a importância de apenas sentar na margem e observar o rio correr sozinho...
Sérgio Rodrigues, Convescote não tem cardápio (Veja, 26 de abril de 2011); ouça também sua coluna na Rádio CBN de 20 de junho de 2017 sobre o mesmo tema, mas que não tive tempo de transcrever.
A propósito daquela tola lei antiestrangeirismo proposta por um deputado gaúcho [Raul Carrion, estadual do PCdoB, que legislou de 2007 a 2014], que comentei aqui no domingo, é bom lembrar as realizações – e os fracassos, bem mais numerosos – de um personagem pitoresco das letras brasileiras do século 19, uma espécie de patrono dos xenófobos linguísticos: o latinista Antônio de Castro Lopes (1827-1901), que Machado de Assis chamava, com ironia, de “nossa Academia Francesa”.
Incomodado com a grande circulação de palavras vindas de fora, especialmente do francês, o idioma imperialista da época, Castro Lopes lançou em 1889 o livro Neologismos indispensáveis e barbarismos dispensáveis, em que propunha uma série de neologismos, forjados por ele mesmo, como substitutos de estrangeirismos que considerava “bárbaros” (atenção, moçada, o sentido aqui é negativo).
De sua quixotesca fábrica de vocábulos saíram termos esquisitos que não tardaram a cair no mais completo esquecimento: cinesíforo (chofer), ludâmbulo (turista), runimol (avalanche) e focale (cachecol) são alguns deles. Outras de suas invenções tiveram uma sobrevivência anêmica como palavras raras e ainda hoje são encontráveis no dicionário, embora não frequentem a língua viva há muito tempo: é o caso de lucivelo (abajur), nasóculos (pincenê) e preconício (reclame, propaganda).
No entanto, Castro Lopes também marcou seus golzinhos. Cardápio, que ele criou a partir das palavras latinas charta (carta) e daps (banquete) para substituir o francês menu, tornou-se termo de grande circulação, embora menu continue sendo usado também.
Se cardápio é seu produto de maior sucesso, meu castrolopismo preferido é outro: convescote. Essa palavra adorável, que quer dizer piquenique, ainda aparece de vez em quando na língua de verdade, quase sempre acompanhada daquela inflexão sarcástica ou brincalhona de quem sabe estar lançando mão de um termo de época. O curioso é que, para forjá-la, o latinista se arriscou a minar sua regra de ouro: convescote vem de “conv(ívio)” e “escote” (cota que cabe a cada um numa vaquinha).
Ocorre que “escote” também é um galicismo, do francês antigo escot. Sua única diferença em relação às palavras que Castro Lopes condenava era a antiguidade: tinha chegado ao português no século 16. Quer dizer que o tempo lava tão bem a estrangeirice dos estrangeirismos que até um purista passa a aceitá-los? Exatamente. O abajur, o turista, o chofer, a avalanche e o cachecol só precisavam de tempo. E o tempo passou, apesar do engenhoso Castro Lopes.
Paulo Nogueira, O último latinista: a saga de Castro Lopes, o homem que tentou substituir a palavra futebol por ludopédio (DCM, 21 de novembro de 2012); mesmo vindo do blogueco pró-Putin que via de regra me recuso até a abrir só pra não monetizar, é curioso como então havia gente aí que fazia jornalismo, e não só propaganda vassala do petê...
Ele achava que neologismos indispensáveis deviam substituir barbarismos dispensáveis, mas sua cruzada foi em vão
Em 1989, a revista Veja fez um suplemento em comemoração aos 100 anos da República. A graça é que os textos foram escritos como se os jornalistas vivêssemos na época da proclamação. Era como se estivéssemos cobrindo-a na semana mesma de 15 de novembro. Eu saíra fazia pouco tempo da Veja para ser editor-executivo da Exame. Mesmo assim, me encomendaram dois artigos: um perfil do Barão de Mauá, o maior empresário brasileiro de então, e um perfil de um latinista arrebatado, Castro Lopes. Lopes quis purificar a língua falada no Brasil de anglicismos e galicismos, e produziu neologismos como ludopédio para substituir o futebol. Quase nada vingou, como você poderá ver no quadro posto no pé deste artigo, exceto por uma ou outra palavra como roupão, que ocupou o lugar do peignoir. Você pode apreciar o esforço titanicamente frustrado de Lopes nas linhas abaixo.
É possível que o leitor esteja lendo esta revista agora em sua cama, com a ajuda de seus nasóculos e à luz suave de um lucivelo. Os artigos escritos pelos alvissareiros misturam-se, harmoniosamente, aos preconícios que louvam as virtudes de sortidos produtos. Faz calor neste final de primavera, e decerto o nosso leitor não retira há muito tempo de sua gaveta o focale que lhe aquece o pescoço no frio. E ele provavelmente terá reparado como é grande, nos últimos tempos, o número de ludâmbulos que, vindos de outros Estados e até de outros países, se abalam a conhecer os encantos da cidade.
Não te sintas o mais ignaro dos brasileiros se, no parágrafo anterior, tropeçaste em vocábulos como “nasóculos”, “Iucivelo”, “alvissareiro”, “preconício”, “focale” e “ludâmbulos”. Consultados sobre o significado de tais palavras, quase todos os jornalistas desta revista que ora tens em mãos tropeçaram exatamente onde foste ao chão. Um, mais curioso, tratou de correr ao Caldas Aulete, mas foi inútil. Cerrou as páginas do dicionário tão no ar quanto as abrira. É que todas aquelas palavras acabam de ser criadas pelo gramático carioca Antônio de Castro Lopes, 62 anos, um latinista de nomeada que é médico por profissão e decidiu investir contra os galicismos e anglicismos que, a seu ver, contaminaram atrozmente a língua pátria. As palavras a que Castro Lopes tenta dar vida e aquelas que ele pretende suprimir estão arroladas no recém-lançado Neologismos Indispensáveis e Barbarismos Dispensáveis, livro que serviu de tema para conversas, e piadas, trocadas entre o ex-imperador Pedro II e o Visconde de Taunay.
“Não é de desenterrar palavras mortas e sepultadas que se trata”, explica o autor no prefácio do opúsculo. “Mas de limpar, de expurgar a linguagem vernácula de vozes bárbaras, de construções contrárias à índole daquela, e de criar com bons elementos termos que no idioma português faltem para traduzir os exóticos”. Castro Lopes não tenta promover reformas apenas na língua portuguesa. Sugere muitas outras. Tem, pronta, uma fórmula para acabar com a dívida interna e externa do país, ou, pelo menos, é o que garante. Tal fórmula apoia-se numa moeda universal, o ponto alto da plataforma com a qual se lançou candidato a deputado provincial pelo Rio de Janeiro. Não se conhece nenhuma adesão de outros países à tal da moeda universal do latinista, mas o fato é que ele se elegeu deputado. Acusem-no, os que quiserem, de purista extremado, mas não o tomem por rabugento. Será um equívoco. Castro Lopes tem um surpreendente bom humor. Daria um excelente cômico se quisesse. Observe-se sua investida contra a palavra peignoir. Não cria, no caso, um neologismo. Vai buscar o vocábulo português que julga correspondente: roupão. Dirigindo-se ao “belo sexo”, Castro Lopes pergunta: “Por que empregareis o termo francês peignoir quando esse traje não serve para o fim que o nome indica?” Logo depois, lança, às damas nacionais, um apelo que revela seu talento humorístico: “Despi, portanto, eu vos suplico, o peignoir francês, e vesti o vosso roupão”.
Se daqui a 100 anos os neologismos do senhor Castro Lopes estarão vivos ou mortos, ninguém pode saber. Alguém usará a expressão “protofonia” como abertura de um ensaio, uma ópera, uma peça? Haverá crianças que peçam aos pais que façam um convescote domingo no parque, em vez de piquenique? Em duas crônicas recentes, o escritor Machado de Assis referiu-se ao trabalho de Castro Lopes com sarcasmo reprovador. O latinista não se intimida. Diz-se à boca miúda que, a cada golpe desferido por um adversário, responde com um toast solitário à cruzada pelo vernáculo – perdão, onde se leu “toast”, leia-se brinde.
Pérolas de um latinista: como é e como fica
- Abajur – Lucivelo ou lucivéu
- Avalanche – Runimol
- Bijuteria – Joalheira
- Boulevard – Calçada
- Cachecol – Focale
- Chalé – Castelete
- Champignons – Cogumelos
- Claque – Venaplauso
[definição 1 do Priberam e do Aulete] - Debut – Estreia
- Engrenagem – Entrosagem
- Feérico – Fatídico
- Massagem – Premagem
- Mise-en-scène – Encenação
- Nuance – Ancenúbio
- Pince-nez – Nasóculos
- Piquenique – Convescote
- Reclame – Preconício
- Repórter – Alvissareiro
- Turista – Ludâmbulo
Helder Guégués, Ementa, menu, cardápio: Escolham o melhor (Linguagista, 12 de janeiro de 2014).
«Encontrei por acaso, outro dia, o cardápio de um dos nossos jantares (para dez pessoas)» (Autobiografia, Agatha Christie. Tradução de Maria Helena Trigueiros. Lisboa: Livros do Brasil, [1978], «Colecção Dois Mundos», p. 50).
Aqui há uns anos, ainda variavam entre «ementa» e o galicismo «menu»; agora, só este lhes sai do bestunto. «Cardápio», então, julgam que foi acabado de inventar por mim. Ah, mas esperem... Foi inventado, sabiam?, por um brasileiro, e a verdade é que pegou mais ou menos. Pelo menos a mim ocorre-me sempre – repito: sempre – que leio a palavra «menu» ou «ementa».
No Brasil “cardápio” é corrente, ao lado de “menu”; usa-se “carta” também em alguns casos, já “ementa” quase nunca, ou nunca.
[Curiosamente, o autor não cita a origem de “cardápio” e alguém escreve em comentário:] O latinista Antônio de Castro Lopes (1827-1901), “inventor” também de abajur, lucivelo ou lucivéu [e ele repete a mesma lista do artigo de Nogueira]. “Estreia” e “encenação” são usados, o resto é história.
E o arrepiante “necrotério” é criação do Visconde de Taunay; e quase ninguém mais sabe aqui o que é “morgue”.
E em junho teremos no Brasil a Copa do Mundo de Ludopédio.

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