domingo, 7 de abril de 2024

Interlíngua da IALA no jornal O Globo


Link curto pra esta publicação: fishuk.cc/iala-oglobo

A criação e o uso de idiomas “planejados”, “artificiais” ou “auxiliares” como um sub-ramo de estudo da interlinguística ainda estão pra ser muito explorados e trazer resultados volumosos. Os acadêmicos não parecem ver o esperanto, o volapuque, a interlíngua, o ido, o occidental, o latino sine flexione, o toki pona ou mesmo as chamadas “línguas zonais” neolatino, intereslavo e Folksprak como fenômenos humanos reveladores de atitudes individuais ou coletivas pra com a comunicação linguística em geral e seus reflexos nas relações culturais, políticas e econômicas. Se esse assunto nunca foi objeto de preocupação durante o século 20, ele adquiriu ainda mais importância com o advento da internet e, sobretudo, das redes sociais, pois embora seja verdade que o inglês reine como lingua franca do ambiente virtual, as novas tecnologias permitiram a democratização do acesso à informação (livros gratuitos, vídeos), a rapidez das comunicações (e-mails e videochamadas, ao invés das demoradas cartas e cartões postais) e a facilidade de reunião entre pessoas com os mesmos interesses (fóruns, listas de e-mail, grupos nas redes sociais e no WhatsApp ou no Telegram).

Contudo, embora a formação dessa “aldeia global” tenha tornado mais visíveis a existência desses idiomas (desde os mais antigos até os projetos, sem exceção coletivos, mais recentes) e de seus usuários orais e escritos, em geral o fenômeno ainda é tratado como “inexistente”. O próprio esperanto, alvo de preconceito e mesmo de perseguição durante o século 20, obteve muito mais visibilidade e acumulou muito mais materiais, como o famoso portal de aprendizado Lernu.net e o curso gratuito no Duolingo, mas muitos desavisados ainda o consideram uma “língua morta” ou “não falada por ninguém”. Que dirá então da interlíngua da IALA, que podia se tornar um xodozinho dos brasileiros e de outros latino-americanos devido a sua compreensão imediata na escrita (e ocasionalmente na fala), ainda mais quando visitamos um site bonito e organizado como este, em que podemos ler praticamente tudo: interlingua.com? Apesar da semelhança com as línguas românicas mais faladas, a interlíngua não foi concebida como uma “zonal neolatina”, como é o caso do neolatino, ou o caso do intereslavo pras eslavas e do Folksprak (bem menos estruturado e divulgado) pras germânicas. Contudo, estas que não se enquadram no grupo dos projetos “internacionais” ou “universais” podem ser tema de outra publicação.

Uma palavra adicional sobre dois desses projetos. Primeiro, tome cuidado pra sempre usar o endereço interslavic.com (e aquele pro qual ele redirecionar), e não outros, sobretudo interslavic.org, pois Mark Hučko, criador do Slovio, um projeto mais antigo, totalmente arbitrário e hoje marginal, buscou sabotar ao máximo os outros projetos intereslavos, sobretudo acaparando os diversos domínios que eles poderiam usar. Você pode conhecer o Slovio (slovianski) por curiosidade, mas ele não vai servir pra nada!

Segundo, o status de um ou mais idiomas intergermânicos é bastante controverso, pois vários projetos convivem pacificamente ou subitamente brotam uns dos outros. Talvez essa falta de unidade e articulação seja justamente um reflexo da ausência de um movimento “pan-germânico” ou de um sentimento semelhante ao que sempre juntou (mesmo sem unir) latinos, eslavos (em algum grau, sobretudo quando o imperialismo russo não está envolvido) e, por que não, árabes, cuja “língua padrão” é a “interlíngua” que justamente unifica as dezenas de “dialetos” espalhados do Saara Ocidental ao golfo Perso-Arábico... Pelo que pude verificar, o chamado Middelgermanisch é a iniciativa mais recente, mas não achei nenhum material, já que o referido grupo do Facebook é privado. O endereço original do Folksprak parece bastante abandonado e as informações aí contidas são dispersas e genéricas. A evolução mais recente deste parece ter desaguado no Sprak (ou seja, “língua”), sendo esta a versão em alemão do link em inglês que coloquei lá em cima. Outra página em inglês que conserva o antigo nome longo também possui muita informação útil. Agora, se todos esses projetos estão ligados entre si, já é outra questão misteriosa.

Voltando a nosso tema principal, quando li o livro Babel & Anti-Babel de Paulo Rónai pela primeira vez, em 2011, cujo assunto eram justamente esses incontáveis projetos que queriam “destruir Babel”, mas acabaram “criando outra Babel”, há uma referência ao fato de que por algum tempo na década de 1950, o jornal O Globo manteve uma pequena coluna em interlíngua com curtas notícias sobre ciência. Nunca fui atrás do material, que não é citado em nenhum outro espaço, mas no final de 2023, em vias de terminar meu doutorado, decidi xeretar no acervo aberto do jornal, e não é que achei as tais notas e mais algumas coisas? Segundo a redação, a coluna era mantida pelo carioca Marcos Expedito Cândido Gomes que vivia num prédio na Praia de Botafogo, quando o Rio de Janeiro ainda era a capital federal. Mas afora seu endereço, nada mais é mencionado sobre sua biografia, origem, formação e relação com o movimento internacional pela interlíngua, e não consegui achar nada em outras fontes.

Não existe uma história do uso, da recepção e da difusão da “interlíngua da IALA” no Brasil, projeto cujo primeiro dicionário com uma pequena gramática foi publicado em 1951 nos EUA, após um trabalho que se estendia desde meados da década de 1920 e interrompido apenas pela 2.ª Guerra Mundial. Exceto por dois pequenos dicionários publicados por Euclides Bordignon e Waldson Pinheiro em 1993, sabemos apenas que em 1990, Ramiro Barros de Castro foi o fundador da União Brasileira Pró-Interlíngua, representante oficial da Union Mundial Pro Interlingua, e ele integra um “núcleo duro” de outros interlinguistas que vieram depois (eu, inclusive, embora não muito ativo). Portanto, se há um “elo perdido” entre a geração dos 50 e a geração dos 80-90, ele não foi encontrado ou precisa ser mais bem documentado e vulgarizado.

Fato é que de alguma forma a interlíngua (pelos “interlinguistas” ou por alguns entusiastas que trouxeram os primeiros materiais) já pairava pelo Brasil na década de 1950, pouco após seu lançamento, enquanto o movimento esperantista data pelo menos do início do século 20, talvez até antes (a liga nacional foi fundada ainda em 1907). De autoria da seção de interlíngua do Science Service dos EUA, que herdou o material da IALA quando ela se dissolveu, as notas eram irregularmente publicadas na seção Arte, Ciência e Cultura de O Globo, o que ocorreu de finais de 1955 a meados de 1956. Não sei se Gomes pagou pra fazer essa eficaz propaganda da interlíngua, e como é provável que sim, essa deve ter sido a razão pra irregularidade e pro fim súbito da iniciativa. Antes das publicações começarem, porém, o jornal também trouxe uma gentil apresentação de outra língua auxiliar, então conhecida como Interlingue, nome adotado pelo projeto de Edgar de Wahl que tinha sido lançado como Occidental (ver detalhes mais adiante), mas antes deste ainda, também pelo projeto de Giuseppe Peano, mais tarde conhecido como latino sine flexione.

Curiosamente, a seção alternou algumas das notas com pequenas lições de esperanto ou textos sobre sua história, isso quando ambos os idiomas não apareciam juntos, o que hoje pode parecer muito engraçado, rs. Fiz a pesquisa em dezembro de 2023 e janeiro de 2024, e como a busca por conteúdo cada vez mais específico no acervo digital de O Globo exigia uma assinatura, a fiz e depois “desassinei” ao acabar a pesquisa. Parte das notas já aparecia em arquivos separados, mas várias outras procurei manualmente, nos jornais de época, e as recortei do resto da página. A partir de meados de 1956, as notas foram escasseando, e em fins do ano, praticamente sumiram, então a partir da data em que aparece a última, decidi não procurar mais, pra não perder tempo demais, e porque dado o caráter incomum da iniciativa, provavelmente ela tinha mesmo parado por aí. (Se alguém se dispor a continuar a busca, sinta-se à vontade!)

Pra fins de organização, vou colocar o material em esperanto (pelo menos o que salvei) depois do material em interlíngua, embora cada texto esteja indicado com a data correta. A qualidade das imagens pode variar, mas tentei padronizar o tamanho pra que pudessem ficar igualmente legíveis. Desta forma, espero que possa estar contribuindo um pouco pra escrita da história do movimento pró-interlíngua não só no Brasil, mas também no mundo.


Por alguma razão desconhecida, em 17 de setembro de 1955, saiu primeiramente este anúncio sobre a “Interlingue”, que não deve ser confundida com a interlíngua da IALA, primeiro porque foi criação de um só homem, e segundo porque ela mistura arbitrariamente palavras do inglês que não são exatamente “internacionais” no sentido de representarem a maior parte das línguas ocidentais. Trata-se realmente dela, pois além de ter aparecido em 1922, o centro do movimento estava na época justamente na Suíça, mas também não achei nenhuma informação sobre o tal “R. Boelting”.

Inicialmente chamada “Occidental”, foi lançada pelo estoniano de família alemã Edgar de Wahl, professor de física e matemática que foi primeiro um entusiasta do volapuque, depois do esperanto e enfim de uma solução “naturalista”, ou seja, mais parecida visualmente com as principais línguas ocidentais. O lançamento do projeto se deu com a edição do primeiro número da revista Kosmoglott, publicada ainda hoje sob o nome Cosmoglotta, e foi o primeiro projeto não “apriorístico” (fácil de aprender, mas incompreensível à primeira vista, como esperanto e volapuque) a ganhar algum sucesso. De família nobre, “von Wahl”, porém, era um fervoroso anticomunista e tinha uma visão mais elitista e restrita à Europa Ocidental da comunicação internacional.

Sofrendo de uma progressiva demência, de Wahl foi internado num hospital psiquiátrico ainda durante a invasão nazista, e quando a URSS anexou a Estônia, essa condição o livrou de ser deportado, como ocorreu com outros alemães nos Bálticos. A internação e a descida da “cortina de ferro” isolaram de Wahl de seus correspondentes na Suíça, que tiveram poucas notícias dele até sua morte, em 1948, aos 80 anos. A recorrência de alguns adeptos no “bloco soviético” levou os continuadores a mudarem o nome do Occidental, que poderia soar como uma intervenção do capitalismo estrangeiro, pra Interlingue. Isso não impediu o idioma de ser cada vez mais esquecido e hoje sobreviver quase só na e graças à internet, embora sua compreensão imediata seja relativamente elevada.

Curiosamente, ao contrário de Marcos, seu sucessor mais astuto, R. Boelting não achou por bem inserir um excerto escrito em Interlingue, pra comprovar na prática sua inteligibilidade imediata...


A Occidental/Interlingue e o sr. R. Boelting sumiram de O Globo sem deixar rastros; sério, não há mais referências a esse primeiro projeto, nem mesmo na seção Arte, Ciência e Cultura! Subitamente, em 12 de dezembro de 1955, o jornal anunciou solenemente o início de uma colaboração com o Science Service (pra ser exato, com sua seção de interlíngua, herdeira da IALA e antecessora da UMI), cujo responsável seria Marcos Gomes. Os objetivos são mais claros: difusão da ciência, língua com princípios científicos e já vai metendo logo um parágrafo no meio da apresentação, sem contar o texto 1 das notas científicas.

Nosso “pobre” Marcos não tinha telefone, mas seguiu firme e forte com sua “língua do futuro”, embora o aparecimento dos textos fosse esporádico. E assim continuou, na mesma Arte, Ciência e Cultura (coloquei apenas o espaço com a nota em interlíngua):



13 de dezembro de 1955


14 de dezembro de 1955


22 de dezembro de 1955


24 de dezembro de 1955


28 de dezembro de 1955


29 de dezembro de 1955


30 de dezembro de 1955


2 de janeiro de 1956


3 de janeiro de 1956


4 de janeiro de 1956


5 de janeiro de 1956


6 de janeiro de 1956


10 de janeiro de 1956


14 de janeiro de 1956


6 de fevereiro de 1956


7 de fevereiro de 1956


8 de fevereiro de 1956


9 de fevereiro de 1956


10 de fevereiro de 1956


11 de fevereiro de 1956


17 de fevereiro de 1956


20 de fevereiro de 1956


27 de fevereiro de 1956


2 de abril de 1956


3 de abril de 1956


4 de abril de 1956


6 de abril de 1956


9 de abril de 1956


14 de abril de 1956


16 de abril de 1956


17 de abril de 1956


19 de abril de 1956


28 de maio de 1956


29 de maio de 1956


31 de maio de 1956


1.º de junho de 1956


16 de junho de 1956


18 de junho de 1956


19 de junho de 1956


4 de julho de 1956

Seguem algumas das edições em que a coluna Cultura e Intercompreensão, que nada mais era do que uma propaganda e um pequeno curso de esperanto (infelizmente, a tipografia de O Globo não tinha as letras com diacríticos: Ĉĉ Ĝĝ Ĥĥ Ĵĵ Ŝŝ Ŭŭ, rs), alternava com as Notas ou Notícias em Interlíngua. Obviamente esta última era tão óbvia que não precisava de gramática, bastava “ler pra assimilar”... Mas o leitor culto médio do jornal devia se confundir com as propostas concorrentes e preferir entrar em contato com algumas das escolas e professores de inglês que faziam propaganda em espaço próximo!

Esta primeira edição é de 9 de janeiro de 1956. Como minha prioridade era a interlíngua, e como a meu ver esse “curso” pareceu extremamente tosco, não copiei todos e coloquei os copiados aqui como uma curiosidade, aliás, interessantíssima pros esperantistas de hoje, que talvez não a conheçam. Em algumas das cópias, deixei exatamente as notas em interlíngua do dia, pra mostrar como as duas línguas apareciam lado a lado!



10 de janeiro de 1956


11 de janeiro de 1956


13 de janeiro de 1956


16 de janeiro de 1956


17 de janeiro de 1956


18 de janeiro de 1956


19 de janeiro de 1956


Quando taquei a palavra “interlingua” na busca do acervo de O Globo, apareceram outros textos que usavam a palavra ou citavam o próprio idioma da IALA, mas não tinham relação com as referidas notas. De fato, primeiramente me vali desse recurso, mas quando percebi que algumas edições me “escapavam”, comecei a folhear manualmente, tendo parado exatamente quando percebi uma possível parada definitiva. Já vou apresentar todos aqui, e reeditei alguns deles pra que todas as partes pudessem ficar juntas, de forma mais ou menos quadrada.

O primeiro (16 de setembro de 1958) é uma resenha do livro One Language for the World, do linguista Mario Pei, também citado por Rónai em Babel & Anti-Babel; imagino que ele fosse um leitor assíduo do cotidiano da família Marinho... Pei advoga pelo aprendizado de um único idioma internacional pelo mundo todo, mas não faz propaganda de um ou outro, fosse étnico ou planejado, apenas sugere que ele devia ser escolhido em comum acordo. É realmente uma utopia, levando em conta como se desenvolveu o caos na geopolítica no século 21.

O segundo e o terceiro, publicados respectivamente nos dias 10 de maio e 23 de setembro de 1960, foram aparições inesperadas na seção que agora se chamava “O leitor em dia com a Ciência” e não traziam excertos do idioma intuitivo, mas relatos de “conquistas” consistentes no amplo uso da interlíngua em congressos de medicina e resumos de artigos em revistas médicas. De fato, esse uso no meio acadêmico foi uma das principais intenções iniciais da IALA, bem como seu primeiro emprego prático, sobretudo porque o vocabulário científico bebe em grande parte do latim e do grego clássicos, mas essa não seria sua principal marca nos anos posteriores.

O quarto texto (18 de outubro de 1961) é a contribuição de um tal “Jack Carson” apresentando alguns dos principais projetos de línguas auxiliares e eventos a elas relacionados, como se de tempos em tempos sua existência precisasse ser relembrada na imprensa... Eu só mantive a primeira parte do artigo, que cita justamente a interlíngua, a qual, pro autor, seria justamente “mais usada hoje por cientistas, por causa de seus fundadores”, caráter igualmente atribuído por Affonso Romano de Sant’Anna (n. 1937) no quinto artigo que encontrei por coincidência. No distante 12 de maio de 1993, o escritor e poeta diria que por volta da década de 1970, a interlíngua já teria entrado em decadência, diante do crescimento contínuo do esperanto.

O nome do artigo é sugestivo: “Línguas estranhas”, entre as quais ele naturalmente lista o polonês (me perdoem, curitibanos, rs!) e narra outras experiências pessoais desconexas. A julgar pelo desconhecimento quase geral sobre a interlíngua, e pelo fato de muita gente sequer saber que o esperanto existe, Sant’Anna pode ter tido razão. Apenas com a internet e, sobretudo, com as redes sociais, a interlíngua se tornou geralmente visível e o esperanto ganhou um novo impulso. Essa foi a última ocorrência da palavra “interlingua” que obtive usando somente a ferramenta de busca.











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