Após ser aceito no doutorado no fim de 2016, pra começar o curso em 2017, comecei a planejar detalhadamente cada capítulo de minha futura tese, que devia ser defendida no máximo até este dezembro de 2022, mas que por conta da pandemia de covid-19, conforme novo prazo concedido pela Unicamp, tive de adiar por mais um ano. Fui colocando no “papel” do Word várias ideias que me vinham à cabeça, mas hoje reconheço que o texto final, possivelmente mais enxuto e certeiro, vai ter menos requintes do que essas reflexões desdobradas há algum tempo. De fato, como forma de coordenar minhas leituras bibliográficas, elas ajudaram a levantar os principais problemas que eu teria de abordar e me fizeram sempre os ter em mente, em todos os momentos da pesquisa, embora deixassem de ser um “esqueleto” minucioso do texto final. Por isso, senti-me livre pra publicar hoje as notas que tenho guardadas há uns anos, pra que ocasionalmente você possa debater comigo o amplo projeto de pesquisa ou mesmo se inspirar pra sua própria futura pesquisa, indo muito mais além do que vou ter ousado.
Atual título do projeto (segundo versão recusada pela FAPESP): A Comintern e o Brasil, 1924-1943: as relações mútuas e a política de Moscou para o PCB
Recorte temporal possível – De 1914 a 1945 (extensão mais ampla), período histórico que Hobsbawm chamou de “era da catástrofe”, marcado pelas duas guerras mundiais e pelo entreguerras e que muitos historiadores veem como uma unidade. Neste caso, os anos de 1919, 1922-24 e 1943, ou ainda 1928-29, 1933, 1935 e 1939, podem servir de grandes marcos. Os períodos entre os maiores pontos de virada na história do Brasil, da política soviética e da Comintern também podem ser intersecionados para dar conta de como esses espaços de certa forma estavam ligados ou em contato.
Interseção também entre recortes temporal e temático. Não há necessidade de dividir entre partes ou capítulos que sejam ora temáticos, ora cronológicos. Focos nas mudanças e permanências no tempo. A mudança institucional é tão ou mais/menos importante que a ideológica? O poder/instituição servia à ideologia, ou o contrário?
1) Origens do comunismo na Europa e no Brasil
– Movimento operário, guerra e pós-guerra
– Crise do liberalismo europeu
– Transição [economias latino-americanas?] brasileira do escravismo ao assalariamento
– Revolução de Outubro e fundação da URSS e da Comintern
– Chegada de comunistas (missões europeias e argentinas) e fundação do PCB/década de 1920
1) Comunicação e informação precárias
– Informações desencontradas sobre a revolução
– Predomínio de jornais e telégrafos
– Escassez de traduções
– Educação e alfabetização deficientes
– Demora dos correios (segundo cartas nos arquivos)
– Necessidade de fixar emissários/birôs locais
FASE 1 DO COMUNISMO (COMINTERN/PCB/URSS), ANOS 20: TRIUNFA ORDEM DE VERSALHES; REPÚBLICA CAFEEIRA SE DECOMPÕE
a) Esperanças de revolução mundial
Fundação do PCB = Nequete, Canellas, Barbosa, Pimenta
Guerra civil/comunismo de guerra
b) Fim da revolução mundial → russificação
Intérpretes do Brasil = Brandão, Astrojildo, Basbaum
NEP e morte de Lenin → luta sucessória
c) Comintern congela e se submete à URSS
BOC; busca pelos “tenentes” e por Prestes = Ferreira Lima, Grazini
Stalin se firma e impõe guinada à “esquerda”
1) A dinâmica de surgimento do comunismo latino-americano é endógena ou exógena?
– A estrutura local da Comintern seguiu um plano certo ou foi errática?
– A América Latina tinha alguma importância social nos primórdios do comunismo?
– O surgimento e evolução do PCB na década de 1920 era inevitável ou contou com fatores voluntários ou acidentais?
– O PCB conseguiu se incorporar à cultura política operária? Em que setores? (Cf. briga com o anarquismo)
– A agitação e a educação tinham pesos diferentes ou se complementavam?
2) Preocupação com a América Latina
– Retaguarda do imperialismo/arena Reino Unido vs. Estados Unidos
– Importância do Brasil por seu tamanho
– Transformações da URSS ao raiar a década de 1930
– Stalinização dos PCs: resposta ao Ocidente?
– Nazifascismo como resposta à crise e ao comunismo
– O varguismo como desenvolvimento (anticomunista) a partir de cima
2) Ruídos da repressão e da stalinização
– Facilidade ao enganar a Comintern
– Comintern → Stalin só ouve o que quer
– Clandestinidade e deslocamentos do BSA (SSA)/IC
– Integração entre serviços da inteligência ocidental
– Destruição de materiais pela polícia ou pela má conservação
– Influência dos movimentos europeus no Brasil
FASE 2 DO COMUNISMO (COMINTERN/PCB/URSS), ANOS 30: CRISE DA ORDEM LIBERAL; VARGAS IMPÕE NACIONALISMO INDUSTRIAL
a) Combate feroz à social-democracia
Enviados da URSS e perseguição = Bangu, Abóbora, Guralski
Coletivização, combate aos “kulaks” e fome
b) Virada antifascista → “frentes populares”
Imposição do “prestismo”: Prestes, Lacerda, (ANL)
Estabilização e começo dos expurgos e da psicose de guerra
c) Dormência da Comintern e expurgos
Revoltas de 1935 → Desmonte do PCB pelo Estado Novo
Expurgos totais e preparação pra guerra (pactos)
2) O comunismo latino-americano conseguiu ser um ponto de interseção entre as histórias/políticas locais e mundial?
– Qual foi a relação entre atenção/abandono da América Latina pela Comintern e política externa de Stalin?
– A estrutura BSA/IC, SLA/IC, enviados plenipotenciários etc. perdeu força na década de 1930? Por quê?
– O aprendizado da clandestinidade durante a década de 1930 foi essencial pra sobrevivência do PCB? Ou um ponto fraco?
– O PCB sobrevalorizou as conjunturas políticas favoráveis e ficou a reboque das principais forças?
– A “ligação com as massas” na perseguição foi mais retórica ou serviu de alívio?
3) Declínio da Comintern e do internacionalismo
– “Frentes populares” e abertura ao Ocidente
– Ascensão popular no Brasil (ANL, CJPI, protestos)
– Fecha o cerco: Comintern dorme, expurgos, pacto URSS-Alemanha
– Avanço do desenvolvimento autoritário no Brasil
– A guerra e a “inutilidade” da Comintern
– Brasil rumo à ordem pós-1945: FEB, anistia, fim da ditadura; PCB: Conferência da Mantiqueira (1943)
3) Comunistas e comunismo diante da modernidade
– A URSS potência despreza os PCs
– Importância dos filmes e cinema
– Maior circulação de pessoas?
– Inclusão na cultura de massas pelo consumo
– Exilados e enviados permanentes na URSS
– Mais material traduzido (mais traduções disponíveis ao público)
FASE 3 DO COMUNISMO (COMINTERN/PCB/URSS), ANOS 40: O NOVO MUNDO DO PÓS-GUERRA; “REPÚBLICA LIBERAL” GESTADA DA ERA VARGAS
a) Comintern como propaganda da política de Stalin
Começam a juntar-se os cacos do PCB
Invasão da Europa Oriental e guerra com Alemanha
b) Comintern antifascista e dissolução
“Conferência da Mantiqueira” e “União Nacional”
Virada da guerra e conversas com EUA e Reino Unido
c) Resistências guerrilheiras (partisans) e independência dos PCs
Prestes livre, anistia, eleições e êxito inédito
Vitória e consolidação de Stalin e da URSS superpotência
3) Os comunistas foram importantes na definição da ordem pós-guerra? Por meio da influência da URSS (e quanto esta foi determinante)?
– A diluição das estruturas da Comintern pra América Latina decorreu da necessidade ou do fim do internacionalismo?
– Qual o papel dos PCs nos rumos das relações entre (os governos) URSS e países latino-americanos?
– A conjuntura da década de 1940 foi mais favorável ou, ao contrário, foi tão difícil quanto a da década de 1930?
– Qual foi o papel do “mito Prestes” na promoção popular do PCB e quais as ocasionais interseções com o “mito Stalin”?
– Mudanças qualitativas na cultura política operária da década de 1940: enraizamento do populismo (paternalismo) varguista? Reforço das lutas autônomas? Difusão das ideias, bandeiras e valores defendidos pelos comunistas?
Recortes temáticos possíveis – Os temas tratados podem ser divididos em eixos temáticos mais amplos:
1) As peculiaridades do período – O período de 1914 a 1945 (ou de 1919 a 1943, de existência da IC) como de formação: do Estado brasileiro como burocracia racionalizada; do PCB como precursor dos partidos de projeção nacional; do bolchevismo em sua essência, como doutrina da política militarizada; da URSS como superpotência anticapitalista, em seu ápice, como experiência antiliberal dentro do século 20; do trabalho e suas condições como assunto da política nacional e internacional; da comprovação de insanáveis contradições do laissez-faire e da guerra como solução à estagnação econômica.
2) Estrutura organizativa – As relações entre o PCB e a IC. Natureza dessas relações. Órgãos intermediários (SLA/IC, SSA/IC). Caráter dialético das relações entre PCB, SSA/IC, IC, CEIC, Brasil, URSS, mundo, potências capitalistas/imperialistas... A fundação do bolchevismo no Brasil. Formas de sustento do PCB pela IC/URSS. O timing em que o PCB acompanhava as viradas da IC. Vínculo do PCB à IC: busca unilateral ou imposição de fora? Relações entre os Partidos da América Latina. Fundação dos órgãos da IC para a América Latina a partir dos novos documentos. Fragilidade organizativa do PCB. O papel dos enviados plenipotenciários. O problema do uso das línguas em documentos e encontros.
3) Brasil, ideologia e movimento operário da época – Natureza do anticomunismo do Estado brasileiro e ao redor do mundo. Surgimento e criação do anticomunismo. A natureza da repressão policial ao movimento operário na Primeira República e na Era Vargas. A crise do anarcossindicalismo e as primeiras notícias da Revolução Russa. As primeiras notícias do socialismo e do marxismo no Brasil. Edições e leituras de Marx, Engels, Lenin e Stalin. Influências ideológicas dos comunistas brasileiros (anarquismo, tenentismo, positivismo, socialismos heterogêneos/ecléticos, nacional-populismo). Circulação de ideias por meio de viagens, rádio, correio, telégrafo, jornais, revistas, migrações, gregarismo étnico-cultural (colônias de italianos, alemães etc.). O papel da economia nas intervenções do Estado brasileiro, nas agitações operárias e nos impasses diplomáticos e bélicos entre capitalistas (democracias e fascismos) e socialistas.
4) Aparecimento do comunismo no Brasil – As duas primeiras gerações de líderes do PCB: os fundadores e os prestistas do “terceiro período”. Influência da política mundial sobre os brasileiros cultos e o PCB. A América Latina na estratégia da IC. A recepção das viradas da IC pelos comunistas brasileiros. As três grandes linhas da IC: “frente única”, “classe contra classe” e “frentes populares”. Origem e razões do “paradigma feudal”. “Tradutibilidade” (Lenin e Gramsci) da realidade russa/teoria bolchevique ao contexto brasileiro. Qualidade e fonte dos conhecimentos dos russos sobre o Brasil. Educação ideológica (escolas e cursos do PCB e universidades para estrangeiros na URSS) e sua importância no pensamento e ação comunistas.
5) A “bolha” comunista – O imaginário político dos comunistas brasileiros e o que significava ser comunista no Brasil até o fim da IC. Impacto psicológico da ligação com o comunismo: a adesão vivida como um renascimento, a militância como uma segunda natureza e a expulsão ou desilusão como dilaceração. Concepção comunista de arte e cultura, suas relações com a congênere “burguesa” e o controle (ou sua tentativa) de artistas e intelectuais. O antifascismo como expediente tático e/ou filosofia de vida.
Problemas possíveis – Quem buscou quem: a IC ao PCB, ou o PCB à IC? Como foi a oscilação da importância do PCB na estratégia da IC, e da importância dele na estratégia para a América Latina? Qual era a qualidade dos contatos entre PCB e SSA/IC e entre SSA/IC e CEIC? O personalismo de Prestes foi regra ou exceção na cultura comunista, e se foi regra, era cópia automática do culto a Stalin (talvez mais para depois de 1943)? O quanto as formulações teóricas do PCB se aproximavam mais do marxismo soviético ou dos pastiches brasileiros? Como era a dialética (ou o malabarismo!) entre as necessidades nacionais e os controles estrangeiros/soviéticos que premiam o PCB? Afinal, os fundadores do PCB tinham “resquícios anarquistas” (e se tinham, por quanto tempo mantiveram) ou eram mesmo vítimas do pastiche brasileiro? Qual foi a importância do PCB na cena política como primeiro partido de ramificação nacional, e o quanto nisso influenciou também ele ter sido o primeiro com filiação internacional? As teorizações do PCB sobre a realidade brasileira eram inadequadas naquele contexto, ou não estavam além do que se podia esperar para as condições culturais e técnicas da época? Qual foi o alcance e posteridade/permanência do modelo cominterniano sobre o PCB e as esquerdas brasileiras? A que ponto as viradas bruscas da IC/URSS (classe contra classe, frente populares, pacto com a Alemanha, combate ao Eixo) influíam na qualidade da intervenção comunista brasileira (cisões, conflitos internos, expulsões por ordens superiores, estímulo a participar de frentes ou a repelir certas forças)?
Hipóteses provisórias – Não parece ser muito útil avaliar a ligação entre o PCB e a IC em termos de “grau de subordinação”, “eficácia das comunicações/entendimento-transmissões de ordens” ou “eficácia das linhas políticas seguidas”, ou ainda em termos do velho “ouro de Moscou”, estigmatizando a subvenção soviética (como se grupos políticos aqui também não recebessem então e hoje dinheiro dos EUA!). Mais interessante é perscrutar o PAPEL que a introdução do bolchevismo como corrente no Brasil teve no aparecimento de algumas novidades que ultrapassariam o âmbito organizativo do PCB: introdução definitiva de literatura marxista no Brasil, especialmente Marx e Engels (apesar da predominância de Lenin e Stalin), e continuação de suas edições; análises da realidade brasileira e dos eventos políticos a partir da base econômica e da formação social que ela condicionava, embora quase sempre se recaísse no economicismo e nas categorizações estanques (tipo “ingleses pró-latifúndio” e “americanos pró-indústria”), buscando superar os velhos hábitos novecentistas de explicar tudo em termos de ideias, espíritos, raça, sangue, clima, predisposição, grandes homens, intervenção divina, ou o positivismo que buscava fixar a realidade tal qual ela aparecia aos olhos (o que podia justificar injustiças sociais) e setorizar a sociedade em “ciências sociais”; formação de um partido político com base em ramificações locais remetidas a um centro nacional, ao contrário dos tradicionais partidos regionais ou estaduais; a popularização da história, política e cultura da Rússia, por vezes de outros povos soviéticos, gerando informações mais concretas sobre esses habitantes e fomentando campanhas de auxílio a famintos ou refugiados e de reconhecimento diplomático e comercial da URSS, ou ainda despertando um interesse permanente dos brasileiros pelo povo russo e outros eslavos, em domínios muito além da célebre literatura novecentista russa; a luta por bandeiras parciais de melhoria das condições operárias (ao contrário dos anarquistas e similares, que queriam aproveitar cada agitação para promover a “greve geral revolucionária”, ou seja, queriam tudo e agora) e por causas amplas progressistas, sendo o epicentro de um núcleo de pensamento moderno que influiria sobre intelectuais e artistas e inspiraria outros núcleos modernos e progressistas, mas não necessariamente comunistas ou pró-soviéticos; levantamento de questões (pioneiro) que no futuro se tornariam essenciais na esquerda brasileira, como o negro, a mulher, o imigrante e os moradores pobres dos núcleos marginalizados urbanos (hoje favelados); principal polo, junto com trotskistas e socialistas, e apesar das atitudes contraditórias, de oposição ao fascismo, ao nazismo e ao representante nativo, o integralismo; pioneiro no levantamento da questão parlamentar entre a esquerda brasileira (na verdade, colocou como uma questão a se problematizar, sem recair nos extremos da rejeição total ou da utilização acrítica), cogitando a hipótese de sua utilidade, mas às vezes tendo aí uma postura ambígua.
Fontes – a documentação da IC que está na internet ou no AEL e no CEDEM; documentação impressa localizada no AEL, especialmente das coleções de Astrojildo, Brandão, Sacchetta e Ferreira Lima (e talvez Prestes); jornais da grande imprensa da época, bem com os comunistas (A Classe Operária, A Nação); revistas comunistas (Movimento Comunista, Seiva, Autocrítica); publicações ligadas à IC ou órgãos regionais (The Communist International/L’Internationale Communiste, La Correspondance Internationale/International Press-Correspondence, La Correspondencia Sudamericana, Bolshevik – PCUS); coletâneas publicadas de documentos, teses, resoluções e atas taquigráficas de congresso da IC, plenos do CEIC, congressos do PCUS e talvez de congressos, plenos e conferências do PCB e de seu CC; cartas trocadas entre militantes, entre militantes e dirigentes ou entre militantes/dirigentes e instâncias superiores do Partido ou do comunismo internacional; livros de memórias de antigos militantes ou dirigentes do PCB, de Partidos da América Latina, do SSA/IC e da IC (especialmente do CEIC), e talvez do PCUS, PCE, PCF e PCI.
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