terça-feira, 16 de outubro de 2018

“Esperanto, ciência e história” (inédito)


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NOTA: Este artigo deveria integrar a versão inaugural em português da revista Heroldo de Esperanto, fundada nessa língua auxiliar em 1920, reestruturada e hoje editada pelo meu amigo Fabrício Valle. Escrevi-o em novembro de 2017, e ele deveria sair no começo deste ano ou um pouco depois, mas o redator disse que a publicação seria adiada, por causa do não atendimento de alguns padrões, e depois teve enfim de deixá-la. Fiquei então livre para publicar o texto aqui pela primeira vez e sem alterações, pois ele contém minhas reflexões mais maduras sobre a natureza do esperanto e da interlinguística em geral. Inclusive, uma de minhas preocupações pra um futuro não muito distante seria recomeçar a reflexão sobre o esperanto dentro da óptica das ciências humanas atuais, sobretudo a história. Perdoem-me pelos parágrafos grandes e pelas frases longas.



Nos quadros desta tão louvável iniciativa de trazer o esperanto de volta à realidade terrena, projeto central da revista Heroldo renovada, nada melhor do que dissertar a respeito das relações que esta língua, ao longo de sua existência centenária, manteve com as concepções predominantes sobre o que eram o fazer científico e as reflexões historiográficas. A língua internacional nasceu num cenário intelectual marcado exatamente por estas duas linhas mestras: a ciência como fornecedora de saber incontestável e a história como guia moral e identitário para as empreitadas humanas.

Zamenhof iniciou o esperanto em 1887, quando os cientistas e pensadores de todas as áreas julgavam que a realidade empírica era una, inequívoca e refletida sem mediações em nossos cérebros. Caberia à ciência, portanto, refinar os melhores meios para encontrarmos essa “verdade” oculta a nossos olhos viciados por ideologias e preconceitos, até que um dia tudo saberíamos e empregaríamos para o bem geral e contra todo dissenso. Por trás da ideia esperantista, encontra-se o pressuposto de que é possível alcançar artificialmente uma língua lógica, racional, exata e de estruturação matemática, cujos elementos se articulariam sem margem a gírias, calões ou ambiguidades. A língua internacional seria o grande código a unir no futuro, após longo progresso retilíneo, uma civilização humana dona de si e de seus meios de produção e reprodução. Era o momento propício para belas frases de efeito, como “Para cada povo uma língua, e para todos o esperanto” ou “Nem uma centena de grandes invenções fará tão bem à humanidade quanto a adoção de uma língua internacional” (Zamenhof).

As décadas posteriores, e a primeira metade do século 20 em especial, desmentiram essas esperanças do modo mais brutal possível. A sacrossanta ciência multiplicou os morticínios, a história não tinha visto jamais tamanho barbarismo e desprezo pelas liberdades individuais, os códigos e tecnologias de diversas naturezas que tornavam mais fáceis as comunicações mútuas não barraram as hostilidades, e o esperanto, desprezado pelos donos das grandes potências, foi perseguido, estigmatizado e interditado por várias ditaduras. Em resumo, a ciência já não era mais fiadora da “verdade” universal, e a história não orientava automaticamente nenhum rumo possível. Como poderia o esperanto, num mundo de incertezas e desilusões, continuar a atrair adeptos, ou mesmo provar sua utilidade para os fins a que desde o início se propôs?

As boas ideias não morrem jamais, como prova o fato de há muitos séculos os melhores pensadores terem levantado o problema de uma língua universal, ou pelo menos internacional. Apesar das intensas transformações geopolíticas e no modo de vida das comunidades urbanas, o esperanto continuou e continua a despertar interesse e ver seu movado crescendo, enquanto outros projetos de línguas auxiliares internacionais simplesmente desapareceram ou foram relegados a uma digna marginalidade. Obviamente, algumas crenças anteriores foram retificadas: a ciência se tornou um discurso cujos significados são disputados a cada momento, e cujos consensos provisórios constituem sua validade, mas também sua possibilidade de avanço; a história passou de um mero rol descritivo dos feitos, acontecimentos e heróis pretéritos para um conjunto de indagações, problemas e métodos destinados não a reconstituições exatas, mas à compreensão dos usos e abusos que os mais diversos grupos fazem dos resquícios do passado; e os idiomas tombaram de sua condição de reflexo exato da realidade para um campo de conflitos simbólicos onde o significado não é uma essência escondida, mas um momento fugaz, consentido e historicamente datado.

Nada disso poupou a língua universal. Como numa simbiose bem informada, o esperanto aos poucos se absteve de sua pretensão racionalista, admitiu sua natureza humana, inexata, equívoca e dialetológica, incorporou com cuidado as novas realidades novecentistas e, o que foi mais importante, proliferou-se pelas redes sociais, grupos de mensagem e outras conquistas das telecomunicações. De fato, certo dogmatismo ainda predomina nas gerações mais velhas, mas ele é justamente reflexo desse mundo sacralizado, quadrado, hoje derretido pelos jovens multiconectados. O mais importante é que o esperanto, mesmo não se dizendo dono da história, possui sua própria história, e uma comunidade na qual vive e se ancora, comunidade viva da qual nenhuma bela abstração pode prescindir.

Os estudos interlinguísticos ainda estão para dar conta das facetas social, gramatical, política, lógica e psicológica que permitiram o relativo sucesso do esperanto. Mas, nascido como portador da “verdade”, sua resistência num mundo sem verdades científicas e históricas é um milagre.