sábado, 5 de julho de 2025

Anita Prestes e a escrita da história


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Eu perdi meu respeito pela historiadora comunista brasileira Anita Leocádia Prestes, como escrevi um tempo atrás, porque ela defendeu abertamente num canal “esquerdista” do YouTube a agressão assassina da Rússia contra a Ucrânia e repetiu todas as inverdades que o Kremlin espalhou sobre o governo de Volodymyr Zelensky. Agora não sei se ela mudou de ideia, embora eu ache pouco provável, pois como diz o ditado, “raposa velha não aprende truque novo”

Em todo caso, como sua produção sobre o PCB e Luiz Carlos Prestes continua valorosa, seguem os fichamentos que fiz na pós-graduação de dois de seus artigos sobre a concepção marxista da história (entre as muitas existentes) que ela professa e como ela a aplica em seus estudos sobre os comunistas. O segundo é apenas uma seleção do que considero serem os trechos mais importantes, mas acredito que permanece um material importante pros estudiosos e pros simples interessados, que estava igualmente perdido entre meus backups.



PRESTES, Anita Leocádia. Sobre os desafios de um historiador marxista frente à escrita da História. In: ALVES, Gracilda; HOFFMANN, Raquel (org.). Memória: questões historiográficas e metodológicas. Rio de Janeiro: Autografia, 2019, p. 197-215.

A política “constitui um setor da vida das sociedades humanas com autonomia relativa quanto aos demais âmbitos.” (p. 197)

Marx, Engels, Gramsci (Lenin) como referenciais de A. L. Prestes: política determinada pela economia, mas com especificidades; (citando Hobsbawm) o historiador marxista deve ter guiando-o um modelo de sociedade e de transformações (p. 197-198). Esse historiador não deve apenas arrolar fatos, mas também adentrar nos episódios (p. 198).

O 18 Brumário de Luís Bonaparte (Marx), Maquiavel, a Política e o Estado Moderno (Gramsci) e correspondência de Engels, sobretudo após morte de Marx: Estado e política constituem a superestrutura de uma formação social (p. 198).

“Globalidade ou totalidade das sociedades humanas” (Pierre Vilar): há interconexões contínuas dentro da história; economia e sociedade brasileiras e internacionais influenciaram o PCB (p. 198-9). Fatores internos e externos (ao país) + estratégia da revolução brasileira na época = tática do partido. Fatores internos (brasileiros) determinam condições de existência e de transformação. As condições globais da sociedade (Brasil + exterior), com o cenário interno brasileiro dominando, determinaram as viradas táticas de cada momento (p. 199). Visão global: articulação entre orientação da URSS, táticas do PCB, posições de Prestes e estratégia definida em 1928-30. O papel de Prestes no PCB é explicável pelo cenário brasileiro, e não por interferências estrangeiras. “[...] a teoria marxista é a que melhor consegue explicar racionalmente o funcionamento das sociedades humanas”, sobretudo a partir do século 20 (p. 200).

Modelo estrutural de história = modo de produção = uma “realidade social total” (Pierre Vilar). O conceito de “hegemonia” em Gramsci ajuda a entender o papel do Estado, das classes e da luta de classes no Ocidente e dá cientificidade a esses conceitos em história. A teoria gramsciana de “Estado ampliado” (“ampliação do conceito de Estado”) é, segundo Christine Buci-Glucksmann, a maior contribuição teórico-política do filósofo (p. 201). “Estado ampliado” = “sociedade política” (Estado coercitivo propriamente dito) + “sociedade civil” (organismos “privados” em que se elaboram as ideologias). Fala-se de ampliação em dois sentidos: 1) autonomia relativa do Estado e da política perante a economia durante o século 20; 2) hegemonia exercida pela sociedade civil (que é maior no “Ocidente” e menor no “Oriente”) (p. 202). Não há separação orgânica entre sociedade civil (espaço de consenso, hegemonia e luta ideológica) e sociedade política (meio de coerção burguesa); a sociedade civil não é espaço de “entendimento”, como supõe Norberto Bobbio. Na sociedade civil, os “intelectuais orgânicos” expressam, sabendo-o ou não, os interesses dos diversos grupos sociais. “Como historiadora marxista, [...] as categorias gramscianas [...] têm constituído referências teóricas de valor inestimável para atingir os resultados a que pude chegar.” (p. 203)

O PCB buscava a “hegemonia” (na acepção de Gramsci) junto a setores aliados, mas não entendeu que deveria reforçar conquista ideológica (= contra-hegemonia) por meio de seus intelectuais orgânicos. “Intelectual orgânico revolucionário” = expressa os interesses dos setores (potencialmente) revolucionários = (segundo ela) Prestes (p. 204). O PCB sofreu influxo burguês, resultando no predomínio ideológico do nacionalismo. Década de 1950: partido sobrepôs o nacionalismo à ideologia do proletariado, mas sua implementação seria impossível em um país de capitalismo atrelado ao capital internacional. A ignorância do conceito de luta pela hegemonia fez o PCB tomar o nacionalismo como um fim, e não, como seria correto, como um meio (p. 205). A adesão ao nacionalismo (nacional-desenvolvimentismo, JK) marcou o PCB de vez na década de 1950. Desde então, faltou contra-hegemonia, aderiu-se ao nacional-desenvolvimentismo reformista burguês e acreditou-se na possibilidade de construir um capitalismo nacional autônomo (p. 206).

A ideia da estratégia nacional-libertadora por meio de uma revolução por etapas levou a oscilações táticas à “direita” e à “esquerda” (p. 206). Conceitos gramscianos: o reformismo levou à falta de acumulação de forças visando à “guerra de posição” e impeliu a preferir uma concepção golpista de “guerra de movimento”; o PCB entendeu a noção de “bloco histórico” como uma aliança por coincidência de interesses, e não de ideologia e de situação concreta na sociedade (p. 207). A força popular seria mais ou menos equivalente à força material à disposição de um partido, sendo esta composta pelo conteúdo propriamente material (sentido estrito) e pela forma ideológica, conteúdo e forma devendo orientar a formação do bloco histórico. A ignorância do trabalho ideológico e formativo impede a formação de um bloco histórico de oposição e leva, assim, à vitória do reformismo burguês (p. 208). Segundo Gramsci, a história de um partido é a história de um país, mas com determinado recorte, e o partido ganha mais significado à medida em que ganha peso na determinação da história nacional (p. 208-209). O grupo/núcleo dirigente do PCB dá o perfil estrutural de todo o partido. Desde a Conferência da Mantiqueira, em 1943, foi afirmado o caráter nacional-libertador de sua política (p. 209). Para A. L. Prestes, apoiando-se em Gramsci, evitar o burocratismo no PCB era evitar o anacronismo e a calcificação. Mas em 1979-80, a “Carta aos comunistas” de Prestes evidencia que o partido havia caducado (p. 210).

A história deve basear-se em evidências: documentos e depoimentos devem ser cotejados entre si, inseridos em seus respectivos contextos e condições de produção, para assim gerarem a evidência histórica (p. 210-211). Um historiador nunca é imparcial, pois sempre será um “intelectual orgânico” de suas próprias posições e ideologias. Por isso, um bom livro de história sempre contém a autoconsciência sobre seu próprio presente (p. 211). A memória (depoimentos) pode mediar o que os documentos não contam, mas o uso da memória em historiografia deve ser crítico e honesto: honestidade intelectual é não se basear em fontes frágeis (p. 212). Por isso, para A. L. Prestes, ser filha de L. C. Prestes não justifica escrever obras hagiográficas (p. 213).


PRESTES, Anita Leocadia. O método comparativo no estudo da história do Partido Comunista do Brasil. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. XXIX, n. 2, p. 135-148, dez. 2003.

“Sofrendo das limitações impostas pelo desconhecimento da sociedade em que viviam e atuavam, os dirigentes do PCB foram levados a copiar modelos estrangeiros, adotando uma estratégia política, cuja meta era a realização de uma ‘revolução democrático-burguesa’ (ou ‘agrária e anti-imperialista’), destinada a abrir caminho para um desenvolvimento capitalista autônomo e caraterizada como a primeira etapa da revolução socialista – objetivo final do Partido Comunista. [...] tratava-se de uma estratégia inadequada às condições brasileiras, na medida em que desconsiderava o real desenvolvimento capitalista já existente no país” (p. 137). “Uma visão estratégica falsa não poderia deixar de conduzir o PCB a sucessivas crises e, consequentemente, a repetidas viradas táticas da ‘esquerda’ para a ‘direita’ e vice-versa, na busca de um caminho mais acertado para a ‘revolução brasileira’ [...]. A comparação entre os dois momentos políticos em estudo [a insurreição de 1935 e a União Nacional de 1938] permitiu não só a percepção como, principalmente, uma melhor compreensão das bruscas guinadas que tiveram lugar na política dos comunistas brasileiros.” (p. 137)

“[...] as mudanças – até mesmo bruscas – na tática dos comunistas brasileiros estiveram, contudo, associadas à manutenção de uma mesma e constante estratégia política [...]. Dessa forma, a virada tática, ocorrida em 1938, na política do PCB deixaria de ser entendida como fruto de fatores meramente conjunturais, em grande medida decorrentes das características pessoais dos dirigentes do Partido, passando a ser explicada pelas determinações originárias da interação de tais fatores conjunturais com uma orientação geral adotada pelo PCB e mantida durante décadas de sua tumultuada existência” (p. 139)

“[...] a defesa da consigna de ‘União Nacional’ seria mantida pelo PCB, não obstante as posições assumidas pela IC durante o ‘biênio da neutralidade’ [1939-41] [...], evidenciando que a política dos comunistas brasileiros estava condicionada por um conjunto de fatores, dentre os quais não poderiam deixar de ser consideradas as influências internas, presentes na sociedade em que os mesmos viviam e atuavam.” (p. 142).

“[...] a comparação das posições nacionalistas adotadas pelo PCB com o sentimento nacionalista que se expandia junto à opinião pública nacional revelou a influência decisiva do ‘nacionalismo antifascista’ (conceito proposto por E. Hobsbawm) na definição da orientação tática do PCB – a política de ‘União Nacional’.” (p. 147, grifo no original).