quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Observações sobre Acordo Ortográfico


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Hoje estou publicando o artigo de um terceiro, que entrou em contato comigo por e-mail pra discutir língua portuguesa e o atual Acordo Ortográfico de 1990, que só entraria em vigor, porém, em 2009. O nome do senhor é Pedro Sérgio Lozar e ele mora em Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, sendo bastante crítico a essa mudança na ortografia à qual muito pouca gente se adaptou de fato. O texto se chama Observações sobre o “Acordo Ortográfico” (que não se segue inteiramente neste artigo), ou seja, ele afirma que só concorda com algumas das novas regras, escolhendo apenas elas pra obedecer. Após o publicar na imprensa regional e na Revista da Academia Mineira de Letras, ele foi gentil em me cedê-lo pra apreciação e me permitir que o publicasse aqui no blog. É notável que mais da metade do artigo se dedica ao uso do hífen, um abacaxi quase exclusivo das línguas românicas, sempre difícil em português e ainda mais escabroso depois do Acordo.

Desenvolvendo o argumento de Lozar, eu vou além e penso que ortografia não devia ser tão regulada por lei ou normas, seja deixando a outras organizações que sugerissem as melhores formas, seja ampliando o caráter facultativo de certas formas, desde que não estorvem a comunicação. Porém, a falta de rudimentos de linguística histórica ou comparativa levam a conclusões precipitadas, como sobre a “diversidade regional” das línguas inglesa, francesa, espanhola, árabe, chinesa e russa: ora, seja recentemente, seja há muito tempo, esses idiomas têm variantes padronizadas acima de diferenças locais, sobretudo na forma escrita, com destaque pro árabe, cuja forma “padrão” não se parece com nenhum dialeto falado. Outra incoerência é dizer que o trema sobre o “ü” ajuda na pronúncia, mas que o acento agudo não faria falta nos ditongos “éi” e “ói” pra saber se eram abertos ou fechados (“êi” e “ôi”): os casos de confusão do primeiro são bem menos frequentes e mais aceitáveis aos ouvidos, e muitas vezes já evoluíram pra formas mudas mais correntes (“líquido” por “líqüido”, “questão” por “qüestão”, que o autor ‒ e Bolsonaro! ‒ ainda usa). Mesmo assim, segue abaixo o texto integral, com mínimas mudanças na redação em prol da clareza:

Consta que a razão do último acordo ortográfico é uniformizar a escrita entre os países que têm o português como idioma oficial; pretende-se com isso preservar ou aumentar o seu prestígio no mundo. É pueril, sobre ser absolutamente inútil. A língua continua como a viu o poeta: “desconhecida e obscura” (Língua Portuguesa ‒ Olavo Bilac). Além do mais, quem sabe português não vai deixar de entender um texto por causa de menos ou mais acentos, menos ou mais hifens, menos ou mais tremas; é avaliar muito por baixo a capacidade do leitor. Mesmo a ortografia semietimológica em vigor no Brasil antes de 1943 não oferece empecilhos; constituem real dificuldade para a compreensão as diferenças de pronúncia e de vocabulário, que se acentuarão cada vez mais com o correr do tempo, e ainda estrangeirismos adotados por esse ou aquele país e não copiados nos demais.

Impõe-se lembrar que o português é a língua oficial de oito países, mas o percentual médio dos indivíduos que o praticam, excluídos Brasil e Portugal, é 24%. Desses países, apenas Portugal nos é familiar, sendo os demais completamente estranhos para nós brasileiros, não cabendo portanto falar em inter-relacionamento literário.

Quanto à aspiração de que o português venha a ser reconhecido como língua internacional pela ONU, que exigiria a uniformização, não sabemos como se houveram com suas variantes regionais o árabe, o chinês, o espanhol, o francês, o inglês e o russo, idiomas atualmente considerados internacionais pela instituição, para apresentarem unidade ortográfica ou, o que é impossível, lingüística.

Aliás, os motivos não importam.

Não conhecemos as regras de ortografia do português europeu e de outros que o seguem, e nem vem isso ao caso; o de que precisamos são normas praticáveis de escrita do português do Brasil, o idioma que falamos e sobretudo escrevemos e lemos quotidianamente e do qual parecem alienados os membros da Academia Brasileira de Letras, autora do acordo, e do Congresso Nacional, que o transformou em decreto. Evidência disso é a omissão no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa ‒ VOLP, 5ª edição (2009) da Academia, de expressões já usuais e de largo curso no Brasil, como (pelas normas ortográficas do acordo) alma-penada, arroz com feijão, bolsa-família, cesta-básica, chefe de família, chefe de gabinete, diretor-presidente, engenheiro-eletricista, multiúso, panelaço, samba de breque...

Sem a mais remota pretensão de esgotar o tema, para o que, aliás, falece-nos competência, vamos examinar alguns pontos, e comecemos do hífen. Estamos diante de um dos maiores absurdos perpetrados contra a nossa ortografia. Seu emprego, pelo menos entre nós, nunca foi bem definido, mas o recente acordo confunde mais ainda a qüestão. Além disso, o Decreto 6583, de 29 de setembro de 2008, nas Bases XV, XVI e XVII, que regulamentam o uso do hífen, traz palavras e expressões que não deveriam ser admitidas em textos didáticos ou normativos, como certos (alguns), em certa medida, em geral, etcétera, muitos, por exemplo; refere-se a casos gerais mas omite os particulares; assim, o texto enumera alguns prefixos ou falsos prefixos (deste modo grafado no Decreto mas omitido no VOLP, onde deveria figurar com tirete: falso-prefixo), encerrando-se as duas listas com etc. Impossível deduzir se isto inclui todos os demais casos ou alguns deles, e quais.

A falha começa pela redação do artigo 1.º da Base XV: Emprega-se o hífen nas palavras compostas por justaposição [...] cujos elementos [...] constituem uma unidade sintagmática e semântica e mantêm acento próprio [...]. Além da dificuldade de entendimento por causa de termos que não são de uso comum, existe a impossibilidade de saber o que é, para cada indivíduo “unidade sintagmática e semântica”, uma vez que são conceitos e percepções de caráter pessoal, não sujeitos a generalização.

No parágrafo 1º da Base XVI, do Decreto, diz-se que o prefixo se separa por hífen da palavra seguinte, se esta começa por h, e cita, entre outras, co-herdeiro; o VOLP, todavia, traz apenas coerdeiro, em discrepância com o Decreto. Não há naquele Vocabulário, aliás, nenhum exemplo do prefixo co- separado por hífen, mesmo que o vocábulo seguinte se inicie com o: coobrigar, coocupação, cooficiante, cooptação...

O Decreto nada diz sobre o prefixo re-, de grande vitalidade e produtividade no idioma, supondo-se não ter havido alteração na norma do seu uso, que constitui outra exceção: reequipar, reescrever, reestruturação... (sem hífen antes de palavra começada com e).

Anti-inflamatório, anti-imperialista, anti-infeccioso..., anteriormente sem hífen (anti-inflamatório, etc.), ganharam o delicado ornamento; a intenção parece ser evitarem-se duas vogais seguidas, o que contradiz o próprio Decreto ao não prescrever este, e bem, o tracinho em formações com os citados prefixos co- (coobrigado, cooptação) e re- (reencontro, reempossar); isso, todavia, não impede a leitura correta, a exemplo de aaleniano, Aarão, compreender, reeleição, reelaborar, Mariinha, reduviídeos, iídiche, coorte, zoologia, uuteni... Por que não adotar o uso dos prefixos sem o hífen, exceção feita a palavras iniciadas com h etimológico e outros casos? Ou eliminar este e escrever aglutinado o prefixo, a exemplo de inabilitar, reaver, sobreumano? Ou, enfim, deixar como era antes do acordo?

“Emprega-se o hífen nas palavras compostas por justaposição que não contêm formas de ligação”, reza o Decreto. Vamos ao VOLP e achamos caixa de óculos, pau de óleo, vista de olhos, sem hífen por existir a forma de ligação de, conforme à regra. Mas vemos também caixa-d’óculos, pau-d’óleo, vista-d’olhos, com hífen. E agora? Acaso o d’, com apóstrofo, não é a preposição de abreviada, ou seja, elemento de ligação? Tem-se a impressão de que a força vem do e, aqui ausente.

Emprega-se o hífen quando não há formas de ligação, preceitua o Decreto. O VOLP registra infantojuvenil, posteroexterior (primeira palavra abreviada, sem elemento de ligação), em tudo afins a luso-brasileiro; seria infanto-juvenil, póstero-exterior. Da mesma forma, dentolabial, dentolingual deveriam grafar-se com hífen; palavras aliás desnecessárias, porquanto já existem as formas corretas dentilabial, dentilingual com o elemento latino de ligação -i-.

Galo-de-briga, com hífen, não seria o mesmo que galo de rinha, sem hífen?

E por qual razão bom gosto, sem hífen, e bom-senso, com hífen? E por que país-membro tem hífen e estado membro não tem?

Diretor-geral, diretor-gerente, diretor-secretário, sócio-gerente com hífen; diretor presidente, gerente geral, sócio diretor sem, ou pelo menos não figuram no VOLP, embora se trate de expressões de uso constante.

Classe peculiar constituem os nomes compostos que designam espécies animais ou vegetais: boca de lobo (parte do animal ou bueiro, sem hífen), mas boca-de-lobo (planta); bico de papagaio (boca da ave ou formação óssea), mas bico-de-papagaio (planta); chapéu de sol (guarda-chuva), mas chapéu-de-sol (árvore); olho de vidro (prótese), mas olho-de-vidro (abelha); perna de pau (atleta), mas perna-de-pau (pernilongo). Quer dizer, no primeiro exemplo temos a coisa propriamente dita: a boca de um animal; temos a expressão com significado de bueiro; e temos a planta do mesmo nome, devendo este ser grafado com hífen. No exemplo seguinte, a boca da ave; certa excrescência óssea; e nome de planta. Ora, desde que não se trate propriamente do bico da ave ou da boca do canídeo, não se poderiam grafar as outras duas locuções com hífen? Seria bem difícil confundir formação óssea com planta e mandíbulas com escoadouro. Não poderiam ser hifenizadas todas as composições que não significassem a própria coisa? Por que essa distinção, para quê complicar? Em que isso auxilia a clareza ou a expressividade? O português já é bastante difícil para que se precise inventar mais tropeços.

Se ficamos de braço dado com alguém (sem hífen), podemos também estar de mãos-dadas (com hífen). Confessamos a nossa incapacidade para atinar com a diferença; conjeturando, seria meramente anatômica? Mistério.

Qual o critério para hifenizar caldo-de-feijão e não caldo de cana? E se se tratar de caldo(-)de(-)laranja, caldo(-)de(-)carne, caldo(-)de(-)mocotó e outros, como escreveremos? A propósito, o VOLP não consigna nenhuma expressão ou locução com a palavra suco, aliás mais freqüente do que caldo mas, enfim, suco(-)de(-)laranja não seria o mesmo que caldo(-)de(-)laranja?

Por que consta no VOLP misto-quente com hífen e misto-frio é omitido? Igual observação para sangue-frio, enquanto sangue-azul não consta. E ainda urubu-rei hifenizado e astro-rei sem hífen, de mesmíssima orientação, em tudo merecedor do enfeite.

Paraquedas, paraquedismo, paraquedista escrevem-se assim, junto, segundo o acordo; qual terá sido a intenção que determinou tal grafia? Compare-se para-brisa, para-choque, para-raios, para-...

Para-casa deveria constar do VOLP com tirete, uma vez que atende rigorosamente ao preceito para o uso. Em compensação, juiz-de-forano escapou hifenizado.

Absolutamente impossível vislumbrar o critério para se hifenizar sem-gracice e não sem graça; compare-se sem-vergonhice e sem-vergonha, ambos com hífen. Da mesma forma, caminhão-tanque com hífen e caminhão pipa sem hífen. E ainda bem-adaptado (com hífen) e bem equipado (sem hífen).

A qüestão dos elementos bem- e mal- é delicada. O VOLP traz uma lista de expressões em que figuram ambos os advérbios com função de prefixo; omite, todavia, os demais particípios adjetivados existentes em português, com os quais são geralmente empregadas as palavras bem- e mal-. Como interpretar a 4.ª regra da Base XV do Decreto 6583, que prescreve usem-se com hífen “os advérbios bem e mal, quando estes formam com o elemento que se lhes segue uma unidade sintagmática e semântica”? Trabalho bem-acabado ou mal-acabado, pessoa bem-afortunada, mulher bem-vestida, quarto bem-arrumado, sala mal-arranjada levam hífen; mas não sabemos por qual razão um projeto bem ou mal estruturado, instrumento bem tocado, trabalho bem ou mal remunerado, violão bem ou mal afinado, espetáculo bem produzido são privados do maroto sinalzinho; ou, pelo menos, não figuram no Vocabulário Ortográfico. Porventura não formam também, segundo a expressão do decreto, “unidade sintagmática e semântica” com o outro vocábulo? E como resolver o enigma da existência de malcuidado (junto) e a ausência de bem-cuidado (ou bencuidado, a exemplo de bem-dizer e bendizer)? E maltratado sem o correspondente bem-tratado, ou bentratado, como benquerer, ao lado de bem-querer? O VOLP registra algumas formas alternativas, não mencionando qual é o critério: são só aquelas ou pode ser estendido às demais? A solução para tais desencontros seria empregar o hífen apenas em expressões substantivadas: Entrou uma moça bem vestida (advérbio mais particípio, sem caracterizar expressão); e Eu também vou, disse a bem-vestida (expressão substantivada, com hífen); Aquele rapaz é bem falante (advérbio mais adjetivo, sem hífen) e Ouçam ‒ começou o bem-falante (expressão substantivada, hífen); Dia a dia vai avançando o trabalho (expressão adverbial, sem hífen); O seu dia-a-dia é sempre agitado (expressão substantivada; hífen); Ele é mal informado (adjetivo mais particípio adjetivado, sem hífen); e: Esse mal-informado nada esclarece (substantivo composto, com hífen). Sentia-se como lebre em boca de lobo (não há expressão); Tiraram a tampa da boca-de-lobo (expressão substantivada, hífen); Bom dia, disse ela (adjetivo mais substantivo, sem hífen). E: Ela deu um bom-dia seco (substantivo composto, hífen); O salário mínimo aumentou (substantivo mais adjetivo, sem hífen); ‒ Tô na pió! gemeu o salário-mínimo (substantivo composto: hífen). Comeu um prato de arroz com feijão (comida), sem hífen; O trabalho tem sido um arroz-com-feijão, metáfora.

O VOLP omite compostos que deveriam, pelas regras do “acordo”, ser grafados com hífen, donde resulta que não é confiável, ficando o consulente, muitas vezes, sem saber se usa ou não o tracinho. Se a regra fosse clara e coerente, desapareceria a dúvida: expressões substantivadas ou metafóricas levam hífen: Ela machucou o braço direito (uso próprio), mas Ela é o braço-direito do gerente (metáfora). Um homem em mangas de camisa pediu a palavra (não formam expressão); e Atenção! ‒ disse o mangas-de-camisa (expressão substantivada).

Publicação normativa como o VOLP deveria registrar todos os casos de determinada qüestão; sendo impossível na prática, elaborassem regras mais claras e simples.

Quanto a mal-, a norma ordena hífen “antes de vogal ou h”, não compreendidos, portanto, os vocábulos que se iniciam com L, que, se não estamos errados, não é vogal nem h. O VOLP, todavia, registra mal-limpo.

Enfim, não logramos entender por que não se usa o hífen em bem traçado e em mal traçado, e em muitas outras expressões afins; e por qual motivo não existem as variantes bentraçado e maltraçado, a exemplo de bem-querer, benquerer e malquerer (no VOLP), e todas as da mesma natureza. Convenhamos, aliás, em que seria impossível registrar todas as expressões com bem e mal + particípio adjetivado ou substantivado.

Caso estranho é o de água-marinha do sião: apenas os dois primeiros vocábulos são ligados por hífen; constitui então locução mista, não podendo ser integralmente hifenada por não se tratar de animal ou vegetal? No nosso ver, na escrita desse modo apenas água-marinha constitui composto, e portanto sião é substantivo próprio, não componente da expressão, devendo ser com inicial maiúscula: Sião. Outras como cara de segunda-feira (o VOLP, contudo, traz chá da meia noite, tirando o hífen da expressão de tempo), arroz-doce de festa, canela-à toa (sic!), capitão-mor das ordenanças são exemplos de expressões parcialmente hifenadas. Quanto a sargento mor de campanha, sargento mor de ordenanças, é eliminado o hífen original de sargento-mor. Partícula poderosa esse de, que subverte a índole do hífen; não podemos entender como a preposição pode determinar a presença ou não do sinal, provocando grafias que tocam as raias da incoerência.

Um período como “Maria vai com as outras, arroz-doce (hífen somente aqui) de festa, foi ao chá de cozinha da diretora presidente” é mera seqüência de palavras soltas, total negação do princípio do emprego do hífen; o bom-senso gráfico o impõe nesses casos: “Maria-vai-com-as-outras, arroz-doce-de-festa, foi ao chá-de-cozinha da diretora-presidente.

Esmeralda do brasil (b minúsculo mesmo) não é igual a esmeralda-brasileira? Aliás, aquela, como está escrita no VOLP, é anômala, uma vez que não forma expressão, devendo o nome do país ser grafado com inicial maiúscula. Feijão de tropeiro deve ser o mesmo que feijão-tropeiro; então, para que essa diferença no emprego do hífen? Até parece ser a preposição que prescreve a existência ou não do risquinho.

Peso-mosca, peso-pena, peso-pesado, com hífen, são categorias do boxe; peso meio mosca, peso meio pena, peso meio pesado também, mas escrevem-se sem hífen; a presença do adjetivo, que parece promovido nestes casos a “elemento de ligação”, elimina a necessidade do sinal. Qual é o sentido prático, gramatical, lingüístico, expressivo ou significativo da diferença? Pensem na confusão que isso provoca, principalmente para os estudantes! Será que compensa procurar uma uniformidade superficial da ortografia, de todo inútil, em troco da quase impraticabilidade dessas novas normas?

O Decreto admite exceções como água-de-colônia, arco-da-velha, cor-de-rosa, mais-que-perfeito, pé-de-meia, à queima-roupa, ao deus-dará, sob alegação de que são formas consagradas pelo uso; não diz se são somente estas as exceções ou se há outras, igualmente consagradas, e mais uma vez somos obrigados a socorrer-nos do VOLP, já que carecemos da faculdade de adivinhar.

Resta saber se são sujeitos às novas normas de emprego do hífen certos casos particulares em que o seu uso dá maior expressividade ao texto. Suponhamos, numa narrativa, a passagem:

“Chegaram uma moça, um rapaz com jaqueta de couro e um menino. Estavam muito alegres e comentavam a respeito da festa. O jaqueta-de-couro parecia o mais animado.” Expressão substantivada, com hífen.

O texto quer referir-se ao personagem caracterizando-o com uma expressão que é quase cognome. Qualquer que tenha o sentimento do vernáculo usará o hífen neste e em casos semelhantes, ainda que arriscando-se a um franzir de sobrolhos por parte dos censores.

Quem lida com o idioma somos nós, simples cidadãos, quem tem de aprender são os que o estudam; não podemos aceitar que membros de qualquer que seja a academia ou parlamento se arroguem o direito de mudar a seu talante ‒ mudar para pior ‒ as regras.

Enfim, não sabemos o que é locução, expressão, sintagma... Não conhecemos filologia ou lingüística; apenas escrevemos e lemos, e queremos uma ortografia racional, prática, não interessa se usada ou não em outros países de língua portuguesa. Uniformizar para complicar, convenhamos, não é inteligente. E a nenhuma entidade do mundo, por importante que seja, deve ser dado poder para determinar a escrita dessa ou daquela língua. Cremos que organizações internacionais têm finalidades de natureza bem mais elevada do que a preocupação com questões de ortografia.

Quanto às outras mudanças, são aceitáveis algumas; cabem, contudo observações:

É absolutamente injustificada e inexplicável (salvo se por louvável medida de economia...) a eliminação do acento em para, do verbo parar, dissílabo tônico, que pode evitar ambigüidades, enquanto se mantém em pôr, verbo, que dificilmente se confundiria com por, preposição; mantém-se igualmente em , verbo, distinto de da: preposição de + artigo a; vêm (verbo, plural) diferente de vem (singular); e todavia é facultativo em falámos, perfeito de falar, assim como o circunflexo em dêmos, subjuntivo de dar. Ficam de fora os verbos da segunda conjugação, em -er, e da terceira, em -ir; seria o caso de agora vendemos (presente, sem acento) e há um mês vendêmos/vendémos (passado, com acento); hoje partimos (presente, sem acento) e ontem partímos (passado, com acento). Resta saber se a pronúncia deverá retratar essas diferenças ‒ atendendo a ser a língua falada a única real, de que a escrita é simples representação, sem nenhum valor linguístico ‒ pronúncia aliás de execução inviável, ou pelo menos forçada, na terceira conjugação. A acentuação é igualmente facultativa em fôrma/forma.

E agora, para voltarmos com o risquinho em para, só com permissão do Congresso Nacional!

Se se trata de suprimir acentos, seriam igualmente dispensáveis, por exemplo, em hoteis (é) ‒ quem sabe não lê hotêis, em papeis (é) ‒ quem sabe não lê papêis, em anzois (ó) ‒ quem sabe não lê anzôis; em corroi, destrois, naturalmente oxítonos, ou em sois (ó), que não se confunde com o verbo sois (ô). E ainda em ceus (é), chapeus (é), que não são cêus, chapêus, da mesma forma que não se lê idêia, herôico, suprimido o diacrítico agudo pelo acordo. Ou deixá-los como acentos facultativos, circunstanciais, qual em outras línguas que não adotam regularmente a acentuação gráfica.

A arbitrária eliminação do trema impede que se use um recurso que auxilia a correta pronúncia de muitas palavras. Além disso, temos no Brasil vocábulos e nomes próprios de origem indígena que demandam orientação quanto à pronúncia. Itaquera (ke) ou Itaqüera? Sagüi ou sagui (gu = γ gama)? Güiri ou guiri (γ)? Anhangüera ou Anhanγera? Guaratingüetá ou Guaratinγetá?

Absolutamente impossível vislumbrar o critério para se hifenizar sem-gracice e não sem graça; compare-se sem-vergonhice e sem-vergonha, ambos com hífen. Da mesma forma, caminhão-tanque com hífen e caminhão pipa sem hífen. E ainda bem-adaptado (com hífen) e bem equipado (sem hífen). Então surge o dilema: usar o hífen nas expressões em que as regras o obrigam, ainda que não constem do VOLP, ou ater-se a este e contrariar o “acordo”?

Boa medida foi a eliminação do hífen em expressões como não alinhado, não fumante, não ingerência...

A adoção oficial das letras K, W e Y no nosso alfabeto deixou a qüestão na mesma, uma vez que já eram usadas nas condições referidas pelo Decreto; salvo se a oficialização concorre para evitar o aportuguesamento de grafias estranhas; assume, aliás, o caráter de ponto de honra a resistência do brasileiro em escrever ao nosso modo palavras estrangeiras já em curso no idioma, como se fosse sinal de cultura, de progresso... Imitação nunca foi demonstração de adiantamento, mas, ao contrário, denuncia mentalidade de colônia.

Mas, enquanto gastamos atenção com o acordo, rola solta a degeneração do idioma nacional, com a absurda e ridícula mania da sua substituição por estrangeirismos. Tal é a grande ameaça à língua pátria, à sua integridade, à sua feição particular e única. Entre outros abusos, já não aparece produto, serviço, evento com nome brasileiro.

Vamos exigir a revogação do Decreto 6583 porque o idioma é nosso, do povo, e não de uns poucos que se arvoram em seus donos. Podemos promover revisão ortográfica coerente, que venha para facilitar; proporcionar melhor ensino do idioma, e coibir o uso já calamitoso de estrangeirismos. Isto sim, é zelar pela língua pátria.

Alguma coisa que do acordo se possa aproveitar não compensa o seu lado impraticável.

Em Portugal a Associação Nacional dos Professores de Português ‒ Anproport tem feito campanha pela revogação do acordo, medida que conta com a simpatia do presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Há também o movimento “Cidadãos contra o acordo ortográfico” e outras meritórias formas de protesto.

É impossível, numa escrita alfabética, reproduzir exatamente a linguagem oral; a ortografia do português, contudo, havia chegado a um ponto satisfatório, podendo ser aperfeiçoada, mas eis que vem o malfadado “acordo” e embaralha tudo.

Enfim: inconseqüência por parte dos inventores desse “acordo” inútil e irresponsabilidade por parte do governo que o oficializou.




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