Entre as três músicas revolucionárias francesas que E. P. Thompson cita em sua Formação da classe operária inglesa e que eram também cantadas pelos rebeldes ingleses, só faltava eu ter legendado esta: La Carmagnole (A Carmanhola). Ela foi recitada pela primeira vez, pelo que se diz, em 10 de agosto de 1792, quando o Palácio das Tulherias, residência do rei Luís 16, foi invadido e a família real foi presa, marcando o início do fim da monarquia constitucional. As outras canções que eu mencionei eram A Marselhesa e Ça ira ! A Carmanhola é um ritmo popular de origem italiana, e as letras aqui apresentadas não têm um autor conhecido.
No sentido comum, “carmanhola” era uma espécie de contradança acompanhada de canto e executada pelos adeptos da Revolução Francesa, sobretudo em torno das guilhotinas e das Árvores da Liberdade plantadas em todo o território nacional. Mas a festa era feita também em outras ocasiões combativas, e por vezes os opositores capturados eram obrigados a dançar e cantar uma carmanhola, antes de serem presos ou até executados. Ao que parece, o nome vem do vilarejo de Carmagnola, atualmente no Piemonte italiano, localizada num dos vales que fica entre Gênova e Turim e de onde uma corrente migratória se transferiu pra Marselha no fim do século 16, levando seus costumes, roupas e música. Não por acaso, a melodia deve lembrar muito aos brasileiros a tarantella.
Alguns fatos do fim do século 18 ainda carecem de explicação: o uso corrente, pelos sans-culottes, dos trajes dos cultivadores de cânhamo emigrados do vilarejo de Carmagnola; a vinda, ou não, do ritmo de dança a partir de Marselha; e a suposta ligação da antiga dança italiana da carmagnola, hoje quase extinta, e as carmagnoles francesas de 1792. Ocorria, porém, que por volta de 1780, o termo “carmagnole” designava em Paris as roupas curtas adotadas pelo povo e as pessoas contratadas pra serviços braçais de duração limitada. A primeira carmanhola revolucionária, que se escuta no vídeo, refere-se à transferência da família real francesa, em 10 de agosto de 1792, pra Torre do Templo, antigo castelo templário que agora servia de prisão. A monarquia seria abolida em 21 de setembro, Luís 16 seria executado em 1793 e a família real ficaria na Torre até 1795.
Também não se sabe ao certo se A Carmanhola aqui legendada foi composta de uma só vez por alguém, ou se teve as estrofes juntadas gradualmente por várias mãos. Desde 1792, na onda revolucionária, o ritmo ficou extremamente popular na França, tornando-se parte da identidade sans-culotte. A partir daí, durante o século 19 e mesmo durante o 20, novas “carmanholas” eram compostas, cantadas e dançadas pelo povo no mesmo ritmo, conforme o evento e situação social da época. Mesmo tendo Napoleão, como Primeiro Cônsul, proibido La Carmagnole e Ça ira !, ambas continuaram no seio popular. Antes, as tropas revolucionárias usavam carmanholas como marchas militares em suas expedições, e mesmo ao entrarem na Itália, no fim do século 18, fizeram o Piemonte ouvir o ritmo novamente, e lá mesmo chegaram até a ser feitas versões antijacobinas. Mas com o tempo, também surgiram carmanholas italianas com temas rebeldes.
A letra completa tem várias expressões idiomáticas que traduzi pelo significado, além dos apelidos “Sr. Veto” (Luís 16) e “Sra. Veto” (Maria Antonieta), entendendo-se véto figuradamente em francês, como uma imposição ou atitude autoritária. Há ainda referência à Guarda Suíça, unidades militares mercenárias alugadas por diversos soberanos entre os séculos 15 e 19 pra proteção pessoal e residencial (a única existente hoje é a do Vaticano). Nem todas as gravações disponíveis no YouTube abrangem o maior número possível de estrofes, sendo que nem mesmo há um texto que se possa considerar “oficial”. Dos dois melhores áudios que achei, aproveitei um mais antigo e a ele adicionei um mais novo, do qual retirei as estrofes já cantadas no primeiro. A divisão entre os dois está bem indicada no vídeo. E, como brinde, pus ainda no final uma gravação russa de 1970, feita pelo Coral dos Pioneiros da URSS!
Eu mesmo traduzi, legendei e fiz a montagem, tendo tirado o primeiro áudio de um vídeo cujo canal, infelizmente, foi apagado, e o segundo, com as estrofes não cantadas naquele, deste vídeo, que reproduz a gravação de Marc Ogeret no disco Chante la Révolution (1988). A letra completa da Carmagnole, que não está na mesma ordem do vídeo, está nesta página. A legenda é bilíngue, ou seja, em cima há a versão em francês ou russo (esta com transliteração segundo meu sistema próprio), e embaixo a tradução em português. A letra e o áudio da versão russa estão nesta página, e pode-se também ver um exemplo da carmanhola como dança típica neste vídeo. Seguem abaixo as legendas, as letras originais e as traduções em português:
1. Madam’ Véto avait promis Refrain: 2. Monsieur Véto avais promis (Refrain) 3. Le patriote a pour amis (Refrain) 4. Amis restons toujours unis (Refrain) 5. Oui je suis sans-culotte, moi (Refrain) 6. Oui, nous nous souviendrons toujours (Refrain) 7. Antoinette avait résolu (Refrain) 8. Son mari se croyant vainqueur (Refrain) 9. Les Suisses avaient promis (Refrain) 10. Quand Antoinette vit la Tour (Refrain) ____________________
Refrão: 2. O Sr. Veto tinha prometido (Refrão) 3. O patriota tem como amigos (Refrão) 4. Permaneçamos unidos, amigos (Refrão) 5. Sim, eu sou sans-culotte (Refrão) 6. Sim, sempre nos lembraremos (Refrão) 7. Antonieta tinha decidido (Refrão) 8. Seu marido se dizia vencedor (Refrão) 9. Os suíços tinham prometido (Refrão) 10. Ao ver a Torre, Antonieta (Refrão) ____________________
Припев: 2. Дворяне все стоят горой (Припев) 3. Друзья, сомкнём тесней ряды – (Припев) ____________________
Refrão: 2. Nobres erguem-se a todo custo (Refrão) 3. Amigos, cerremos bem as fileiras (Refrão) |
Um sans-culotte: “Aqui começa o país da liberdade.”
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