sábado, 18 de maio de 2024

Fabrice Luchini e a “merda de celular”


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A edição de 8 de maio do C dans l’air, programa diário de debate entre especialistas sobre assuntos do momento exibido pelo canal estatal francês France 5, foi dedicada à morte do escritor e apresentador Bernard Pivot, muito adorado na França por comandar programas de literatura e concursos de ditado, os quais despertaram em muitos o gosto pelos livros e pelo idioma. Não somente pelo palavrão (tão adorado pelos brasileiros!), mas também pelo conteúdo crítico da submissão das sociedades ocidentais aos smartphones, decidi separar e traduzir o trecho em que o ator francês Fabrice Luchini deplora que a sociabilidade tem sido minada pelo vício nas telas; que ele mesmo se considera “viciado” e encara o teatro como uma forma de escape e resistência; e que, viajando um pouco na maionese geopolítica, a despeito de todos os conflitos globais, “essa merda chamada (telefone) celular” pode destruir o próprio Ocidente.

Não costumo publicar palavrões na página, e mesmo quando eles aparecem, adoto termos mais eufêmicos nas traduções. Porém, a expressão foi tão extrema que vai muito além da crítica que eu mesmo também faço aqui dessa nova ordem informativa, tanto de minha lavra quanto de textos copiados, no mais das vezes, sem autorização. O subtítulo da edição era “Mas quem ainda lê?”, e se refere ao fato de Pivot ter sido no passado um vulgarizador da leitura e da literatura, enquanto hoje o volume e a qualidade dos leitores parecem estar em queda – fato que justamente não é unânime entre os convidados. Eu mesmo traduzi, mas não legendei o vídeo (disponível no fim da página) nem ofereci uma transcrição do original francês, não procurei ser literal em alguns pontos e pus algumas observações entre colchetes.

Também já vou fazer aqui as notas explicativas, ao invés de as deixar pro fim do texto. O livro que Luchini menciona, de autoria de Gérald Bronner, se chama Apocalypse cognitive: La face obscure de notre cerveau (Apocalipse cognitivo: A face obscura de nosso cérebro), e há inclusive uma conferência virtual disponível ao público, em que brasileiras o discutem. Sobre o poema de Charles Baudelaire, trata-se do soneto “À une passante” (A uma passante), publicado em seu livro Les fleurs du mal (As flores do mal), de 1857, muito criticado e perseguido pelas autoridades em seu tempo. Há pelo menos duas boas traduções em português disponíveis, só você procurar no Google.

Aproveite o conteúdo e a reflexão sobre ele, e torça comigo pra que o doidão ator Fabrice volte pra Atibaia, Jundiaí ou Bragança Paulista e fique cuidando de uma das três filiais da concessionária Chevrolet da família, rs:



Caroline Roux: Tive a oportunidade, Fabrice Luchini, de ver os livros com os quais você trabalha. São livros completamente usados, avariados, anotados, há uma relação física com o objeto do livro no modo como você se apropriava deles.

Fabrice Luchini: Duas coisinhas rápidas: a primeira é que há um livro extraordinário de Bronner a se ler, que mostra a tragédia que está invadindo os adultos, bem como os adolescentes e as crianças. Quer dizer... há um poema de Baudelaire, não tenho tempo de o ler inteiro, mas quando ele diz: La rue assourdissante autour de moi hurlait [tradução minha: “A rua ensurdecedora berrava a meu redor”], ele conta que vê uma mulher maravilhosa, “alta, magra, de luto fechado” etc. E é exatamente essa cena de Baudelaire vendo essa mulher, essa pedestre sublime, isso não é mais possível. Porque a alienação em que estamos todos – no cair da noite estou no teatro pra escapar de meu vício, porque sou viciado... Então, atualmente estou atuando num filme, mas a verdade é que passo horas monstruosas na frente da tela. Então o teatro...

Caroline Roux: Me deixe entender bem o que você está dizendo, Fabrice Luchini: seu vício em telas?

Fabrice Luchini: Ele é real, não tenho vontade de julgar as outras pessoas! Fico aterrado ao ver o isolamento no TGV [trem-bala], mas eu mesmo agora estou viciado em tudo isso, e escapo por meio da prática teatral. [Victor] Hugo me salvou completamente este ano, é extraordinário servir à prosa de Hugo e ter 500 pessoas [assistindo]. O que eu queria dizer é que quando você lê Bronner... leiam Bronner, ele explica que o psiquismo dos seres humanos vai se reduzir ao “curti, não curti, curti, não curti”. Todas as nuances da realidade, todas as imensas cores da variedade da vida, todo o gênio oferecido pelos grandes escritores são aniquilados em reações simplistas de “curti, não curti”. Então, há uma civilização que está... o verdadeiro drama é obviamente a guerra na Ucrânia, é obviamente a China, é obviamente o drama em Israel, é por isso. Mas o drama é que o Ocidente vai perecer, porque vai ser reduzido à dependência dessa merda chamada [telefone] celular. Não estamos nos dando conta que não podemos mais nos apaixonar olhando um rosto de mulher, não estamos nos dando conta da vida em que vamos parar. E é por isso que o teatro é uma maravilha, é um lugar de resistência.


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