quarta-feira, 22 de maio de 2024

Joël Legendre – “J’ai vu le loup” (1976)


Link curto pra esta publicação: fishuk.cc/legendre


Este menino canadense (reportagem em francês) aparece numa montagem que um amigo meu me enviou pelo Instagram, feita por um professor de francês, brincando que passamos anos aprendendo o idioma, pra depois chegar no Canadá francófono (no essencial, a província do Québec) e não entender nada. Pesquisando melhor, descobri que esse vídeo viralizou em abril e em maio por meio do TikTok e que se trata do ator canadense Joël Legendre (n. 1966) quando tinha 10 anos de idade e participava então do antigo programa folclórico televisivo Soirée canadienne (Noite Canadense). Exibido todo sábado pelo canal CHLT e, depois, também pela Télé-Métropole, durou de 1960 a 1983, apresentado por Louis Bilodeau (1924-2006).

Legendre é apresentador de rádio e TV, ator e diretor, mais conhecido por quase sempre ter dublado os atores americanos Leonardo DiCaprio e Neil Patrick Harris, mas também é vegetariano, abstêmio e não fumante e milita por esse modo de vida. Segundo diz em seu Instagram, apresenta programas na rádio Rouge FM e um concurso televisivo de confeitaria no Québec, e sem querer ser homofóbico, acho que sua condição de gay assumido explica um pouco de seu “gingado” na tela, rs. Em 2015, chegou a ficar um tempo longe do público após um jornal ter revelado que ele foi multado por ter batido punheta num parque, à vista potencial dos passantes.

E a canção em si? Curiosamente, a viralização do vídeo, que se deve provavelmente à publicação numa conta do TikTok de recordação da juventude quebequense antiga, gerou uma onda de zombaria da parte dos franceses com relação ao sotaque do Québec. É algo parecido com o preconceito que alguns portugueses ainda têm com a variante brasileira do idioma (querendo ou não, de longe a mais falada e ela mesma subdivida em incontáveis falares e sotaques), tanto mais que, ao contrário desse caso, o “parisiense” ainda tem prestígio mundial e são poucos os estrangeiros que estudam especificamente a língua no Canadá. Isso porque as variações usadas na África não são consideradas “variantes” ou “padrões” à parte, enquanto no Québec o idioma chegou ainda no século 17 e sofreu tantas modificações quanto o português no Brasil. Ou seja, em alguns aspectos, na América os idiomas se tornaram até mais “conservadores”, sobretudo na pronúncia e em parte do vocabulário.

Por isso, muitos dizem mesmo que, longe de “não ser francês” ou ser um “francês deturpado”, o quebequense seria até “mais francês do que o próprio parisiense”, já que na própria França a língua padronizada só se imporia no território como um todo bem depois do século 17. É o caso, por exemplo, da região sul (o Midi, ou “Meio-Dia”), onde línguas românicas mais próximas do catalão e das nativas do norte da Itália eram predominantes e hoje ainda são um pouco cultivadas, em especial o occitano e sua variante majoritária, o provençal. De fato, sendo uma canção anônima transmitida oralmente e, portanto, de letra original impossível de se definir, é possível que a versão provençal, mais antiga, remonte ao século 13. Ai vist lo lop, lo rainard, la lèbre (Vi o lobo, a raposa, a lebre) tem um teor claramente de crítica social figurada, dirigida aos nobres, clérigos e reis que se divertiriam em orgias, enquanto o povo trabalhava duro por nada. A versão da Borgonha (J’ai vu le loup, le renard, le lièvre), que serviu de base pra Legendre, tem a parte política menos explícita, embora vários usuários do YouTube tenham visto nos animais uma metáfora do poder.

De fato, a letra como um todo parece não fazer muito sentido, o que é comum pra canções populares passadas oralmente, e ainda mais passadas a crianças. Tanto que uma versão folclórica quebequense também é conhecida como M’en revenant de Saint-André, e Legendre curiosamente mudou o nome do santo pra Sainte-Hélène, suponho que em referência a sua cidade natal, Sainte-Hélène-de-Bagot. Desde a década de 1970, várias bandas folclóricas regravaram a canção de modo mais ou menos modificado. Apesar da viralização e montagens recentes, a primeira versão do YouTube surgiu no canal de certo Steven Grimard ainda em janeiro de 2014, e nesta página de canções do Québec apareceu em dezembro de 2020.

A caça sempre teve um papel central na cultura canadense, e a própria expressão ferme ta boîte (feche tua caixa) foi interpretada de modo dúbio por alguns: ou uma expressão figurada pra “cale tua boca”, ou o pedido pra fechar uma armadilha que estava sendo montada pra caçar os “bichos”. Eu mesmo traduzi literalmente do francês, que tem poucas expressões propriamente quebequenses, e não reproduzi os versos repetidos. Seguem abaixo o vídeo de 2014, o mesmo áudio legendado por outro canal também em inglês, o Ai vist lo lop provençal que também é bonito e um dos “remixes” com Legendre e a letra original:








M’en revenant de Sainte-Hélène
Ferme donc ta boîte
Laisse-moi donc chanter
Trois beaux canards s’en vont à baignade
Touchez haut, touchez bas, touchez-y, touchez-y pas
Laissez ça, la m’man veut pas
Je me revire de bord, j’y touche encore
J’ai vu le loup, le renard, le lièvre
J’ai vu le loup, le renard passer

Trois beaux canards s’en vont à baignade
Ferme donc ta boîte
Laisse-moi donc chanter
Le fils du roi s’en va chassant
Touchez haut, touchez bas, touchez-y, touchez-y pas
Laissez ça, la m’man veut pas
Je me revire de bord, j’y touche encore
J’ai vu le loup, le renard, le lièvre
J’ai vu le loup, le renard passer

Le fils du roi s’en va chassant
Ferme donc ta boîte
Laisse-moi donc chanter
Avec son beau fusil d’argent
Touchez haut, touchez bas, touchez-y, touchez-y pas
Laissez ça, la m’man veut pas
Je me revire de bord, j’y touche encore
J’ai vu le loup, le renard, le lièvre
J’ai vu le loup, le renard passer

Avec son beau fusil d’argent
Ferme donc ta boîte
Laisse-moi donc chanter
Visa le noir, tua le blanc
Touchez haut, touchez bas, touchez-y, touchez-y pas
Laissez ça, la m’man veut pas
Je me revire de bord, j’y touche encore
J’ai vu le loup, le renard, le lièvre
J’ai vu le loup, le renard passer

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Retornando de Sainte-Hélène,
Então feche tua caixa
Então me deixe cantar
Três belos patos vão tomar banho
Atirem pra cima, pra baixo, atirem, não atirem
Deixem isso, a mamãe não quer
Respondo com força, continuo atirando
Eu vi o lobo, a raposa e a lebre
Eu vi o lobo e a raposa passarem

Três belos patos vão tomar banho
Então feche tua caixa
Então me deixe cantar
O filho do rei se vai caçando
Atirem pra cima, pra baixo, atirem, não atirem
Deixem isso, a mamãe não quer
Respondo com força, continuo atirando
Eu vi o lobo, a raposa e a lebre
Eu vi o lobo e a raposa passarem

O filho do rei se vai caçando
Então feche tua caixa
Então me deixe cantar
Com seu belo fuzil de prata
Atirem pra cima, pra baixo, atirem, não atirem
Deixem isso, a mamãe não quer
Respondo com força, continuo atirando
Eu vi o lobo, a raposa e a lebre
Eu vi o lobo e a raposa passarem

Com seu belo fuzil de prata
Então feche tua caixa
Então me deixe cantar
Mirou no preto, matou o branco
Atirem pra cima, pra baixo, atirem, não atirem
Deixem isso, a mamãe não quer
Respondo com força, continuo atirando
Eu vi o lobo, a raposa e a lebre
Eu vi o lobo e a raposa passarem



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