Este menino canadense (reportagem em francês) aparece numa montagem que um amigo meu me enviou pelo Instagram, feita por um professor de francês, brincando que passamos anos aprendendo o idioma, pra depois chegar no Canadá francófono (no essencial, a província do Québec) e não entender nada. Pesquisando melhor, descobri que esse vídeo viralizou em abril e em maio por meio do TikTok e que se trata do ator canadense Joël Legendre (n. 1966) quando tinha 10 anos de idade e participava então do antigo programa folclórico televisivo Soirée canadienne (Noite Canadense). Exibido todo sábado pelo canal CHLT e, depois, também pela Télé-Métropole, durou de 1960 a 1983, apresentado por Louis Bilodeau (1924-2006).
Legendre é apresentador de rádio e TV, ator e diretor, mais conhecido por quase sempre ter dublado os atores americanos Leonardo DiCaprio e Neil Patrick Harris, mas também é vegetariano, abstêmio e não fumante e milita por esse modo de vida. Segundo diz em seu Instagram, apresenta programas na rádio Rouge FM e um concurso televisivo de confeitaria no Québec, e sem querer ser homofóbico, acho que sua condição de gay assumido explica um pouco de seu “gingado” na tela, rs. Em 2015, chegou a ficar um tempo longe do público após um jornal ter revelado que ele foi multado por ter batido punheta num parque, à vista potencial dos passantes.
E a canção em si? Curiosamente, a viralização do vídeo, que se deve provavelmente à publicação numa conta do TikTok de recordação da juventude quebequense antiga, gerou uma onda de zombaria da parte dos franceses com relação ao sotaque do Québec. É algo parecido com o preconceito que alguns portugueses ainda têm com a variante brasileira do idioma (querendo ou não, de longe a mais falada e ela mesma subdivida em incontáveis falares e sotaques), tanto mais que, ao contrário desse caso, o “parisiense” ainda tem prestígio mundial e são poucos os estrangeiros que estudam especificamente a língua no Canadá. Isso porque as variações usadas na África não são consideradas “variantes” ou “padrões” à parte, enquanto no Québec o idioma chegou ainda no século 17 e sofreu tantas modificações quanto o português no Brasil. Ou seja, em alguns aspectos, na América os idiomas se tornaram até mais “conservadores”, sobretudo na pronúncia e em parte do vocabulário.
Por isso, muitos dizem mesmo que, longe de “não ser francês” ou ser um “francês deturpado”, o quebequense seria até “mais francês do que o próprio parisiense”, já que na própria França a língua padronizada só se imporia no território como um todo bem depois do século 17. É o caso, por exemplo, da região sul (o Midi, ou “Meio-Dia”), onde línguas românicas mais próximas do catalão e das nativas do norte da Itália eram predominantes e hoje ainda são um pouco cultivadas, em especial o occitano e sua variante majoritária, o provençal. De fato, sendo uma canção anônima transmitida oralmente e, portanto, de letra original impossível de se definir, é possível que a versão provençal, mais antiga, remonte ao século 13. Ai vist lo lop, lo rainard, la lèbre (Vi o lobo, a raposa, a lebre) tem um teor claramente de crítica social figurada, dirigida aos nobres, clérigos e reis que se divertiriam em orgias, enquanto o povo trabalhava duro por nada. A versão da Borgonha (J’ai vu le loup, le renard, le lièvre), que serviu de base pra Legendre, tem a parte política menos explícita, embora vários usuários do YouTube tenham visto nos animais uma metáfora do poder.
De fato, a letra como um todo parece não fazer muito sentido, o que é comum pra canções populares passadas oralmente, e ainda mais passadas a crianças. Tanto que uma versão folclórica quebequense também é conhecida como M’en revenant de Saint-André, e Legendre curiosamente mudou o nome do santo pra Sainte-Hélène, suponho que em referência a sua cidade natal, Sainte-Hélène-de-Bagot. Desde a década de 1970, várias bandas folclóricas regravaram a canção de modo mais ou menos modificado. Apesar da viralização e montagens recentes, a primeira versão do YouTube surgiu no canal de certo Steven Grimard ainda em janeiro de 2014, e nesta página de canções do Québec apareceu em dezembro de 2020.
A caça sempre teve um papel central na cultura canadense, e a própria expressão ferme ta boîte (feche tua caixa) foi interpretada de modo dúbio por alguns: ou uma expressão figurada pra “cale tua boca”, ou o pedido pra fechar uma armadilha que estava sendo montada pra caçar os “bichos”. Eu mesmo traduzi literalmente do francês, que tem poucas expressões propriamente quebequenses, e não reproduzi os versos repetidos. Seguem abaixo o vídeo de 2014, o mesmo áudio legendado por outro canal também em inglês, o Ai vist lo lop provençal que também é bonito e um dos “remixes” com Legendre e a letra original:
M’en revenant de Sainte-Hélène
Trois beaux canards s’en vont à baignade
Le fils du roi s’en va chassant
Avec son beau fusil d’argent
____________________
Três belos patos vão tomar banho
O filho do rei se vai caçando
Com seu belo fuzil de prata
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe suas impressões, mas não perca a gentileza nem o senso de utilidade! Tomo a liberdade de apagar comentários mentirosos, xenofóbicos, fora do tema ou cujo objetivo é me ofender pessoalmente.