Aqui está outro texto que publiquei num antigo site sobre esperanto por mim mantido entre 2005 e ca. 2007. Seu nome é “Explicação de conceitos acerca do esperanto”, e certamente não é um tom nem um conteúdo que eu externaria atualmente. Mesmo assim, pra fins de registro e memória, decidi o rever, reeditar, corrigir, atualizar e publicar aqui, pois mesmo que eu não seja mais um grande propagandista, acho muito interessantes algumas das ideias que expus aqui:
Esta página tem o objetivo de esclarecer a você algumas ideias expressas em vários meios de comunicação acerca do esperanto, sua história e seus usos, que nem sempre são verdadeiras. Devido às pessoas que adotaram e a algumas obras deixadas por Luís Lázaro Zamenhof, é comum que muitas pessoas associem o esperanto à ideia de religião ou de ideal. Parte dessas associações possui algum fundamento, mas várias correlações não possuem o menor cabimento. Cito o caso de um ex-esperantista que resolveu criar seu próprio projeto de idioma internacional [trata-se do “fasile”, do gaúcho Balduino Egon Breitenbach (n. 1949), que foi lançado em 1999 e, na versão mais recente que consegui encontrar, se chama “fasile21”, mas criatura e criador hoje são praticamente ignorados pelas redes modernas] e, em uma página na qual ele compara seu idioma com o esperanto, escreve que, enquanto a criação de Zamenhof possui focos difusos, com ideal e religião, seu próprio idioma possui como único foco a solução prática; com certeza faltou a este homem refletir um pouco mais sobre o caminho que o esperanto percorreu para chegar até nossos dias.
Sem misticismo, poesia, romantismo ou idealismo excessivo, procurarei explicar com os conhecimentos que adquiri por que normalmente se pensa que o esperanto é um ideal ou o idioma de uma filosofa ou religião. Acredito que há dois motivos principais para que se façam tais associações: 1) O conjunto de obras de cunho filosófico deixadas por Zamenhof; 2) A adoção do esperanto pelos espíritas para a publicação de várias obras.
Esperanto: uma doutrina? – As idéias de Zamenhof são inicialmente fundamentais pro entendimento do “idealismo esperantista”. O criador do esperanto foi, antes de tudo, um filósofo por natureza. Desde criança, sempre conviveu com os conflitos étnicos dentro da região onde morava: a Polônia dominada pelo Império Russo, onde vários grupos étnicos viviam sobre o mesmo chão, era palco de várias disputas entre tais grupos e das opressão tsarista, que procurava manter uma hegemonia cultural nos territórios dominados. Além do mais, Zamenhof, por ser judeu, já sofria desde criança as perseguições dos vizinhos. Nesse clima de total desigualdade, nossa criança-prodígio sempre meditava sobre as causas de tais conflitos e como um idioma-ponte poderia resolver todos esses problemas, pra que as etnias em atrito pudessem se entender mutuamente. Por isso, desde a época ginasial, Zamenhof já havia começado a criar seu projeto de idioma internacional (a pouco conhecida “Lingwe Uniwersala”), tendo que reconstrui-lo após várias perseguições por parte de seu pai. Mesmo formado médico e especializado como oftalmologista, nunca deixou seu trabalho pelo esperanto de lado, vendo o fruto de seu trabalho refletido nos diversos congressos e encontros que realizou na Europa e nos EUA.
Daquela velha ideia de sua infância, vemos nossa conhecida frase: “A diversidade de línguas é a única, ou ao menos a principal causa da dispersão da família humana e de sua divisão em partes inimigas”, expressa em uma carta escrita em russo a um conhecido, onde ele conta vários detalhes de sua vida e da criação do esperanto. Daí, surgiu o que se chamou de “idéia interna” do esperanto ou “esperantismo”. Segundo Zamenhof, “a essência do esperanto é a plena neutralidade, e a ideia do esperantismo apresenta somente um sentimento de fraternidade indefinido e uma esperança que são naturalmente geradas pelo constante encontro sob um fundamento linguístico neutro e que todo esperantista tem o pleno direito não só de comentar a si tal como ele queira, mas até de geralmente aceitá-lo ou não”. Por isso, temos aqui uma prova da conceituação de Zamenhof de um idioma internacional como auxiliar nos processos de paz por ajudar reunir as culturas numa base neutra: uma ideia naturalíssima que já expressei neste artigo e que, como disse Zamenhof, pode ser aceita ou não. Por isso muitos chamam o esperanto de “língua da paz”.
Esperanto: uma religião? – O trabalho de Zamenhof não se limitou ao esperanto e seus benefícios, mas à elaboração de um sistema filosófico que ele chamou de homaranismo, pois, como eu já disse, ele era um filósofo nato. Basicamente, a ideia do homaranismo é a de que o homem, acima de todas as suas características pessoais (raça, cor, língua materna, religião etc.), é parte integrante da humanidade: Zamenhof era um humanitarista! Composta de doze dogmas, sua base filosófica, chamada de “Declaração de homarano” (em esperanto, homarano significa “membro da humanidade”), expressa várias ideias e visões sobre ideais humanos, preconceito entre os povos, igualdade, direito à escolha de língua e religião, nacionalidade e mais. A principal correlação do esperanto com religião são os fatos do homaranismo apresentar uma ideia pra proposição de uma religião neutra, em que pessoas de todos os credos possam se unir em princípios filosóficos neutros, e de Zamenhof ter escrito a maior parte desses documentos em esperanto; mas em seus vários escritos sobre o homaranismo, Zamenhof deixa claro que devemos separar o esperanto do homaranismo, pois ele diz: “o homaranismo é um programa político-religioso especial e totalmente definido [em detrimento da idéia interna, que representa pra ele apenas um sentimento], que apresenta meu credo puramente privado e que totalmente não concerne aos outros esperantistas”.
A declaração ainda expressa como um idioma internacional é fundamental na concretização dos ideais do homaranismo, por este ser um programa cultural de bases neutras, mas, pra mostrar como o esperanto não tem nenhuma ligação estrutural com o homaranismo, Zamenhof escreveu no 9.º dogma: “Os novos homaranistas, que não dominam ainda a ‘língua dos homaranos’, podem em um primeiro tempo usar nas reuniões a língua que eles quiserem (...). Como atualmente só existe uma língua neutra, chamada ‘esperanto’, os homaranistas justamente a aceitam; todavia, eles reservam a si o direito de substitui-la algum tempo depois por outra língua, se isto se mostrar útil”. Conclusão: quem fala esperanto não precisa seguir os princípios do homaranismo, e quem possui as mesmas ideias filosóficas de Zamenhof não é obrigado a falar esperanto.
Um bom livro pra que você possa conhecer mais sobre as ideias de Zamenhof e de seu homaranismo é Homaranismo; a ideia interna, do espírita Délio Pereira de Souza, (Rio de Janeiro, Spirita Eldona Societo F. V. Lorenz, 1992). Apesar de ser o melhor comentário contemporâneo sobre o homaranismo na visão do espiritismo, o autor mistura os conceitos de “ideia interna” e homaranismo, a começar pelo título do livro. Ele ainda escreve na página inicial: “Despretensioso comentário à ideia interna do esperanto, segundo seu criador, Dr. Lázaro Luís Zamenhof”. É claro que o criador do esperanto deu total permissão pra que cada um interprete a “ideia interna” tal com queira, mas o livro inteiro praticamente só fala das concepções filosóficas de Zamenhof concernentes ao homaranismo, enquanto a “ideia interna” é algo relacionado à língua esperanto. Apesar disso, não deixe de ler esta genial obra, que apresenta uma alternativa pra este mundo tão conturbado.
Esperanto: uma língua de espíritas? – Coincidência ou não, o Brasil é o país onde se desenvolveu o espiritismo e onde se encontra o maior número de espíritas do mundo, mesmo seguindo uma doutrina criada por um francês, Allan Kardec, e é também o país onde podemos encontrar o maior número de esperantistas (por isso se diz também no meio esperantista que o Brasil é a capital da “Esperantolândia”). Possivelmente, isso se explica pelo fato dos espíritas terem adotado o esperanto como uma de suas línguas de trabalho, através da qual eles escrevem livros, fazem palestras etc., apoiando intensamente seu uso e sua difusão. Assim, nas principais livrarias espíritas, podemos encontrar vários livros sobre ou em esperanto: eu mesmo, quando ia pra Mongaguá, no litoral paulista, gostava muito de visitar a livraria espírita que havia no local não pra comprar livros espíritas, mas sim pra encontrar materiais sobre ou em esperanto (sejam livros espíritas ou não) e conversar com professores e alunos do “idioma da paz”.
Como sabemos, os espíritas têm um ideal e, segundo eles, pra concretizar esse ideal, o esperanto seria uma ferramenta muito eficaz, pois sua neutralidade pode fazer com que ele colabore, ainda que com pouca intensidade, no processo de paz mundial. A ideia é parecida com a do homaranismo: tem-se uma ideia e um idioma que ajudará na concretização desse ideal. Devido a essa estreita relação entre o esperanto e os ideais pacifistas, muitos acabam confundindo as coisas e pensando que o esperanto é um sistema filosófico. Ora, lemos que Zamenhof já separava o esperanto do homaranismo e disse que os homaranistas podem usar qualquer idioma; assim, provamos que o esperanto não tem o rígido caráter doutrinário ou filosófico, mas é apenas um instrumento destinado a essas e a outras realizações, de acordo com o desejo do falante, seja na religião, no turismo, na diplomacia etc. Uma famosa frase diz que “o esperanto não é de ninguém, mas de todos”, ou seja, ninguém possui propriedades exclusivas sobre o idioma, com relação a alterações, vendas de materiais etc., mas ao mesmo tempo todos têm o direito de aprender e colaborar pro crescimento do esperanto; por isso, não se pode dizer que o esperanto é “língua dos espíritas”, mas, se me permitem, que os espíritas são do esperanto, assim como todos aqueles que se dedicam a trabalhar por ele.
Não, esperanto: uma língua DE TODOS! – “O esperanto não pertence a ninguém, mas ao mesmo tempo pertence a todos”. Sabendo disso, em 1912, durante o 8.º Congresso de Esperanto, Zamenhof se abstém da liderança das causas esperantistas e dispensa o constante título de “Mestre”, como nos informa o livro Doutor Esperanto, de Walter Francini (São Paulo, Associação Paulista de Esperanto, 1973): “Não envolver o esperanto com as ideias filosóficas de seu criador, evitar que o mundo considere ‘esperantismo’ [que Francini também define com o esforço pra expansão da língua neutra, resultando na compreensão mútua e na troca de informações úteis entre os povos] e ‘homaranismo’ como uma coisa só. Fora da posição de líder do esperanto, ele teria mais liberdade para defender o seu ideal ético. Ele também quer dar mais liberdade aos esperantistas, possibilitando-lhes tomar decisões próprias, desligadas de qualquer influência dele, mesmo involuntária”. Zamenhof concebeu sua obra-prima como um presente à humanidade, algo a que todos pudessem ter acesso facilmente, sendo recompensados pelas grandes facilidades e vantagens que seu uso proporciona, e não com um instrumento pro benefício de poucos, apenas aos quais o uso do idioma “internacional” estaria restrito. Portanto, associar o esperanto a uma filosofia, religião ou outro tipo de entidade fechada é um grave erro!
Quem fala esperanto deseja ver a humanidade mais unida, sejam quais forem suas características pessoais, não se digladiando por motivos fúteis, mas promovendo um grande intercâmbio cultural por meio de bases linguísticas neutras! O mundo atual precisa de uma ponte que una a todos com justiça, e o esperanto é um grande auxiliar nesse objetivo. Sua grande mobilidade faz com que qualquer setor seja beneficiado por seu uso: a diplomacia, a cultura, o turismo, a amizade, a religião, a economia e qualquer outro, sendo o idioma independente de qualquer filosofia ou sistema filosófico: separar o esperanto dos idealismos de Zamenhof, mas compreender sua utilidade pra eles e pra qualquer outra causa honesta é compreender como o mundo possui um grande instrumento pro progresso, mas está dando pouco valor a ele, ou o está usando de forma errada.
Conclusão – Espero que com este documento você tenha se esclarecido sobre algumas ideias confusas que o principiante pode ter a respeito do esperanto, pra que ele possa aprendê-lo livremente e sem medo de se prender a determinados preceitos ético-filosóficos. Lembre-se: o esperanto não é uma filosofia, uma religião ou uma doutrina, mas o idioma de quem deseja se sentir um verdadeiro cidadão do mundo sem deixar de ser o que é e entendendo as diferenças entre todos nós, respeitando os preceitos particulares de cada um.
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