Ontem, dia 8, foi publicado no site da Rádio França Internacional (RFI) o artigo Iran: le cri d’indignation d’une femme fouettée, « symbolique de l’arbitraire du régime », fait vivre la résistance (Irã: o grito de indignação de uma mulher açoitada, “símbolo da arbitrariedade do regime”, dá vida à resistência), de autoria de Caroline Renaux. Já está circulando nas páginas brasileiras de notícias a informação de que uma mulher iraniana de 33 anos, Roya Heshmati, recebeu no ano passado 74 chibatadas na surdina pela ditadura terrorista do aiatolá Ali Khamenei. Ao que parece, o relato só foi publicado pela moça agora, pois deve ter sido difícil se recuperar de um choque desses por um motivo banal. Tinha decidido não traduzir a matéria, pois vários outros sites brasileiros também publicaram a respeito. Mas como percebi que os textos diziam mais ou menos a mesma coisa, restrita ao relato fatual, sem reflexão sobre o contexto geral, e como geralmente nossas mídias se baseiam nas mesmas fontes de língua inglesa, acredito estar contribuindo fatualmente pra quem só lê português. Mesmo na Wikipédia em inglês, o verbete relativo a Heshmati foi iniciado esses dias, sem nenhum detalhe de sua vida pregressa, e só há também versões em persa e inglês simples.
Não tenho certeza se a crueza com que a pena foi descrita vai dar impulso a novas manifestações de rua no Irã, mas a repercussão do caso, que descobri exatamente ao folhear o portal da RFI, ainda está no começo e pode dar combustível pra muita discussão ainda. Na Banânia, a gente sempre vai ter “aquêlus universitáries” radical chic que defendem qualquer ditadura ou grupo terrorista, desde que não seja judeu nem cristão e/ou que destile ódio à civilização ocidental cujos impostos pagam o Toddynho deles, em particular aos EUA – e, claro, desde que eles mesmos não vivam as situações na pele. Com fascista eu sequer discuto, por razões de princípio. Mas quando o ser se diz “amigo do povo” e fala essas cacas, não consigo ficar quieto: peguem esses perfis pró-Palestina, de extrema-esquerda (que eles dizem ser “esquerda radical” o correto, mesmo estrume) e de defesa das mulheres e dos grupos de gênero nos países árabes, e comparem a proporção com que eles criticam os terroristas em Teerã e com que eles chamam Israel de “genocida” e o Hamas de “resistência”. Se o Sete de Outubro continuasse e triunfasse, veríamos surgir um novo Irã, pior até, mas é claro que é fácil passar pano quando se está longe!
Roya Heshmati, uma jovem militante iraniana, foi açoitada 74 vezes por “atentado público aos bons costumes”. Seu depoimento, massivamente divulgado, suscita uma onda de indignação e se transforma em símbolo pras mulheres iranianas que, apesar do ano e meio de repressão do movimento “Mulher, vida, liberdade”, multiplicam os atos de desobediência.
“O homem começou me batendo nos ombros, nas costas, nas nádegas, nas coxas e nas pernas. Parei de contar os golpes. Eu murmurava: ‘Em nome das mulheres, em nome da vida...’” O relato de Roya Heshmati é arrepiante. Condenada a 74 chibatadas por ter se recusado a usar o véu obrigatório, essa iraniana de 33 anos detalhou, em sua página do Facebook, como se realizou sua pena de flagelação. Desde então, seu texto suscita uma vaga de comoção e raiva em parte da população iraniana.
Nas palavras de seu advogado, Maziar Tatai, compartilhadas pelo diário iraniano Shargh, Roya Heshmati foi presa em abril de 2023 “por ter publicado nas redes sociais uma foto sem portar o lenço”. Por sua vez, o órgão de imprensa da justiça, Mizan Online, afirma que ela teria “encorajado a permissividade [aparecendo] de maneira inconveniente em lugares públicos muito frequentados de Teerã”, e depois, em outra declaração, que ela teria recebido dinheiro do exterior pra se exibir sem véu. “As investigações mostram que ela foi envolvida num movimento organizado a partir do exterior e que ela recebia dinheiro [...] pra promover a prostituição”, esclarece o Mizan Online.
“Põe teu Alcorão debaixo do braço e bate” – Em seu texto, Roya Heshmati conta que se apresentou ao escritório do investigador do setor 7 de Teerã sem portar seu véu. Após inúmeras recusas, o agente de execução teria então lhe advertido que sua pena seria agravada se ela não cobrisse a cabeça. “Ele se aproximou de mim e disse: ‘Ponha seu hijab e me siga.’ Eu recusei. Ele disse: ‘Então você não quer pôr? Vou te açoitar de um jeito pra que você entenda onde está hoje. Também vou abrir um novo inquérito por desobediência, com mais 74 chibatadas por vir.’ Persisti em minha recusa”, ela escreve.
Levada a seguir a uma sala que ela descreve como uma “câmara de tortura medieval”, Roya Heshmati teria insistido em se recusar a pôr o véu, antes de levar as 74 chibatadas. “Põe teu Alcorão debaixo do braço e bate”, teria ela dito ao agente de execução.
Seu depoimento é massivamente difundido nas redes sociais, nas quais ela é elogiada como “heroína”, enquanto outros denunciam um “apartheid de gênero” e um “regime bárbaro e desumano”. Pra Shahla Shafiq, socióloga e ensaísta iraniana, esse texto é um “ponto culminante”. “O véu, que normalmente deve esconder, se torna aqui revelador da condição de vida das mulheres iranianas e de sua resistência”, explica.
Endurecimento das sanções – No Irã, sob o jugo do regime dos mulás, todas as mulheres são obrigadas por lei a cobrirem seu pescoço e sua cabeça, desde a revolução islâmica de 1979. Se o relato de Roya Heshmati não é novo, ele dá espaço, porém, a uma série de depoimentos parecidos. Pra Chirinne Ardakani, advogada e membro do coletivo Iran Justice, as palavras de Roya Heshmati simbolizam um “ato de insubmissão”, contribuindo pro “relato coletivo que as mulheres iranianas estão construindo”. Este “se insere na prolongação dos atos de resistência que participam da criação de uma narrativa de resistência das mulheres iranianas que, após um ano e meio [do movimento “Mulher, vida, liberdade”], vem irrigar a sociedade civil e dá o tom de uma mudança profunda das mentalidades da sociedade”, deseja crer Chirinne Ardakani.
Sua recusa a se submeter à lei sobre o véu obrigatório, arriscando sua vida e sacrificando seu próprio corpo, também “simboliza a arbitrariedade desse regime”, segundo Firuzeh Nahavandi, professora da Universidade Livre de Bruxelas e especialista do Irã. “Por que ela, e não outras mulheres, foi presa e açoitada desse jeito? É pra mostrar que a situação está sob controle, tanto mais que as eleições legislativas estão próximas e que o regime teme que haja uma retomada das manifestações. Ele prefere tomar a dianteira e endurecer a repressão”, analisa. Promovida a exemplo, a punição de Roya Heshmati lembra que o corpo das mulheres segue submetido ao uso do véu obrigatório. “É como se, de um certo modo, o caso de Roya fosse usado pra pôr em alerta todas as outras mulheres contra esses alegados casos de insolência na República Islâmica”, comenta Chirinne Ardakani. Esse evento ocorre alguns meses depois do desenvolvimento e proliferação das câmeras de vigilância nos locais públicos pra prevenir as infrações e da adoção de um projeto de lei visando endurecer as punições contra quem infringir o código indumentário.
Um movimento transformado – Um ano e meio depois do impulso do movimento “Mulher, vida, liberdade”, esse ato de repressão ressoa profundamente no seio da população iraniana, determinada a manter o braço de ferro com as autoridades. “Simbolicamente, isso diz tudo. Diz que as mulheres não vão desistir e que pouco importa o que o regime islâmico faça, as mulheres iranianas dizem ‘não’ e vão continuar dizendo ‘não’”, garante Shahla Shafiq. “A barreira do medo e da mentira caíram com o movimento. O mundo inteiro viu. O que esse texto diz é que se trata de uma mudança irreversível e que a resistência vai continuar.”
Pra Chirinne Ardakani, também é o sinal de que o movimento entra numa “fase de maturação política”. Esta é “encarnada pela resistência contínua das mulheres iranianas e pela recusa a se submeterem à injusta lei patriarcal. Não é o ato isolado de Roya que o torna um símbolo, mas a justaposição de todos esses atos de resistência que agora vão se inscrever na longa duração”, explica a advogada. “O movimento decididamente se transformou em desobediência civil. Os iranianos demonstram sua contestação cantando, dançando, saindo sem véu”, acrescenta Firuzeh Nahavandi.
E estes últimos não estão se pacificando. “Continuem com sua lei. Vamos continuar com nossa resistência”, afirma Roya Heshmati ao concluir seu texto. Palavras que lembram que, apesar da repressão e dos riscos corridos ao se desafiar o regime islâmico, a revolta que abala o Irã desde a morte de Mahsa Amini parece longe do fim.
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