Hoje trago esta reportagem traduzida por mim diretamente do francês e publicada no site da Rádio França Internacional (RFI) em 11 de novembro de 2022. Foi escrita pela enviada especial ao Catar, Anne Bernas, e se chama “Welcome to Qatar, le pays où parler anglais est une nécessité” (Welcome to Qatar [Bem-vindo ao Catar], o país onde falar inglês é uma necessidade). Não mudei essencialmente o conteúdo, mas adaptei algumas coisas, como a redação do texto (pra adequar ao que parece mais com português) e a transliteração de palavras em árabe, nas quais procurei ser o mais fiel possível à pronúncia.
Destaco a pequena palavra aal (provavelmente comparável ao von alemão ou o Mac gaélico), presente no sobrenome da dinastia Aal Thaanii, que é proprietária do governa o país desde sempre; ela significa “família”, e não se trata do artigo definido al-, que é prefixado a substantivos e adjetivos. Nesse caso, pelas regras árabes de eufonia, o ele do artigo devia ser assimilado ao “th” do nome, e teríamos então “Ath-thaanii”. Alguns links que coloquei no meio do texto levam a outras páginas explicativas, e substituem eventuais notas de rodapé.
Doha com as cores da Copa, com essa mensagem que significa “maravilhoso”, com o logotipo da Fifa (reproduzido da reportagem original).
Embora o árabe seja a língua oficial do pequeno emirado do Golfo, o inglês aparece aí como a língua mais falada. Não é de se espantar, tendo em vista a população desse micro-Estado que é igualmente membro da Francofonia.
“As-salaam aleykum” (A paz esteja sobre você). “Hello, give me your passport please” (Olá, dê-me seu passaporte, por favor), responde uma jovem catari vestida com a tradicional abaaya preta que deixa apenas seus olhos à mostra. Welcome to Qatar, país onde a língua oficial é o árabe, mas onde a população sequer o fala, ou muito pouco.
Não é por menos: dos cerca de três milhões de habitantes, 2,8 milhões são estrangeiros, a maioria vinda de países do Sudeste Asiático e do Chifre da África. Segundo o cálculo mais recente (2014) do World Factbook da CIA, a população é formada por 40% de árabes (entre os quais cataris, egípcios, sudaneses e jordanianos), 18% de paquistaneses, 18% de indianos, 10% de iranianos e 14% de outras origens. As nacionalidades são tão numerosas que no sul da capital, no Religious Complex (Complexo Religioso) onde se reúnem centenas de milhares de fiéis não muçulmanos que vivem no país, as missas são rezadas em inglês, francês e árabe, bem como em urdu, indonésio, tagalog etc.
O inglês como único meio de comunicação – Desde então, é num inglês aproximativo que se fazem os contatos. Às vésperas da Copa do Mundo de futebol, não é raro, portanto, que o motorista de táxi, mal tendo saído de seu país na esperança de fazer fortuna durante esse evento planetário, não fale uma palavra de inglês e peça pro próprio cliente escrever no GPS do veículo o destino aonde ele deve dirigir. Dirigir pro lugar certo pode então se tornar no mínimo cômico pro viajante que, da mesma forma, desconhece tudo a respeito do país.
“Acabei de chegar do Marrocos pra trabalhar como motorista de Uber durante a Copa”, conta Mehdi. “Não entendo o inglês deles, eles não falam árabe ou então, quando alguns falam árabe, não é a mesma variante que a minha, e ninguém fala francês. Enfim, é um suplício.” “Já é complicado aprender inglês, o árabe então, nem sequer cogito. Felizmente, todas as placas estão escritas nas duas línguas”, brinca Hasan, um jovem empregado na hotelaria vindo da Indonésia há pouco mais de seis meses.
Contudo, o domínio da língua árabe é uma das condições para obter a nacionalidade catari, além de ter vivido 25 anos seguidos no emirado, não mais do que dois meses por ano no exterior, comprovar seu bom comportamento e ter renda suficiente. Uma missão mais do que hercúlea pra maioria dos trabalhadores migrantes, um sésamo que as autoridades oferecem a conta-gotas na medida em que desejam preservar sua identidade nacional. O Estado atualiza sua população total por habitante quase todo mês, mas é impossível saber o número exato dos estrangeiros que lá vivem, como se fosse um segredo guardado a sete chaves, conforme lemos em Le Monde diplomatique.
O francês, uma língua estudada, mas pouco falada – “Com meus amigos cataris”, conta um jovem cidadão de Doha, “eu falo inglês. Não sei por quê, mas é assim. Somente em casa, em família, nós falamos árabe.” Desde muito novos, mesmo se persiste um ensino em árabe, os jovens cataris quase sempre escolhem outra língua, entre as quais o inglês ou o francês. Por outro lado, inúmeros cataris “da gema” realizam uma parte de seus estudos no exterior em universidades internacionais e voltam ao Catar totalmente bilíngues.
Nesse antigo protetorado britânico, a língua de Molière está longe de ser praticada na vida cotidiana. Porém, após incontáveis polêmicas, o país se tornou membro da Organização Internacional da Francofonia (OIF) em 2012. Hoje, 10% da população fala francês. E grandes escolas francesas como a Sorbonne ou a Escola de Altos Estudos Comerciais (HEC) estão presentes no Catar e participam do programa Qatar National Vision 2030, que visa transformar o país e aumentar o soft power do emirado ao redor do mundo. Da mesma forma, escolas privadas tunisianas, libanesas, suíças, indianas etc. também lecionam em francês.
Longe das polêmicas e dos holofotes do emirado na França, a família Aal Thaanii sempre afirmou ter ligações com a língua francesa. Curiosidade: em 21 de setembro de 1971, o representante do Catar solicita na tribuna da ONU a adesão de seu país à organização não em inglês, mas em francês. O xeique Khaliifa bin Hamad Aal Thaanii, aliás, nunca escondeu sua atração pela França, sua cultura e sua língua.
Adendo: Pela primeira vez na história das copas, o país-sede perdeu o jogo de estreia, no caso o Catar contra o Equador (que também nunca foi uma grande seleção) no último domingo, dia 20, por 2 a 0. A insinuação de que os responsáveis não puderam ou não quiseram “comprar” a vitória rendeu memes hilários no Twitter brasileiro, e houve tantos que selecionei apenas dois vídeos ótimos, postados com alguns comentários cômicos!
Muitos usaram a palavra sheik (que pode ser “xeique” ou “xeque” em português), que deveria ser mais exatamente sheykh ou shaykh, pra designar um líder árabe genérico, de viés autoritário, neste caso certamente o dono emir do Catar, que de fato também é um xeique. Porque na verdade, xeique não é um cargo, e sim um título nobiliárquico, nem é exclusivo do Catar, e originalmente significa “ancião”, enquanto o chefe de Estado e de governo do Catar, e de algumas outras monarquias do Golfo, aí sim, é o emir.
“Não pode ser gay no Catar!”
Xeique fã da Anitta:
Depois da derrota do Catar pro Equador, o xeique corre atrás do goleiro e ameaça o juiz por não ter anulado os dois gols [nota: de fato, após exaustivo recurso ao VAR, um primeiro gol da partida foi anulado por impedimento]:
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