sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Shervin – “Barā-ye” (“Por causa de”)


Link curto pra esta postagem: fishuk.cc/baraye


A professora iraniana Leyla Shams, hoje residente no estado norte-americano do Texas com seu marido e três filhos, fundou há 12 anos uma pioneira iniciativa online em inglês, chamada Chai and Conversation (tchái = “chá” em diversas línguas orientais, inclusive russo), que consiste basicamente na produção de podcasts ensinando a variante iraniana coloquial da língua persa (que é muito diferente da variante escrita!), da qual havia então pouco material disponível. Hoje a iniciativa cresceu, e além de terem site próprio e canal no YouTube, também ensinam a escrita perso-arábica, noções essenciais da língua escrita e muita, muita poesia persa tradicional. Felizmente, há muito material bom de persa (iraniano, dari e tajique) na internet, mas eu recomendaria sem pestanejar o trabalho da Leyla, que de quebra ainda é uma pessoa muito gentil no trato pessoal!

Infelizmente, o Irã está passando por mais uma onda de protestos violentos contra sua ditadura clerical paranoica, assassina e retrógrada, que teve como estopim o assassinato da jovem curda Mahsa Amini pela “polícia dos costumes”, apenas devido a um uso incorreto do véu feminino de uso público obrigatório. Estopim, porque além do cansaço com a crise econômica e o marasmo político, confirmado pelo empossamento sem real sufrágio popular do presidente Ebrahim Raisi, as novas gerações estão mais bem instruídas e mais abertas ao mundo, e por isso mesmo não aceitam as restritivas regulações de base religiosa. Somam-se a isso as tensões nacionais, já que não são apenas persas xiitas que habitam o Irã, mas diversos outros povos e crenças, sendo os curdos sunitas os mais problemáticos, pois também reivindicam autonomia ou independência em outros países da região, cuja fronteira foi basicamente desenhada pelas potências europeias ao longo do século 20.

A maioria das grandes revoltas juvenis ou estudantis das últimas décadas acabou sufocada em vergonhosos banhos de sangue, como foi o caso da contestação da eleição do presidente reacionário Mahmud Ahmadinejad em 2009. Mas mesmo quem acompanha o Irã há décadas afirma que os acontecimentos de 2022 estão muito diferentes, não só por causa do uso massivo das redes sociais, mas também porque estão sendo comandados por mulheres, apoiadas massivamente pelos homens e também pelas gerações mais velhas, que costumam ser mais relutantes. E mesmo após o endurecimento da repressão nos últimos dias, os focos de protesto continuam, não se consegue contê-los, e facções da cúpula do poder iraniano já cogitam algumas concessões. Parte da nossa intelectualidade antiamericana culpa as sanções pela ruína econômica, mas desde o começo da revolução, em 1979, a economia já foi entregue a mãos incompetentes, por razões ideológicas, que causaram enormes estragos. E mesmo que admitamos alguma intervenção estrangeira na insurreição (Rússia e China parecem hoje perigos mais prementes pra OTAN), não há como negar que o regime dos aiatolás é completamente terrorista e ilegítimo, e uma das provas disso é o fornecimento de armas a Putin pra matar ucranianos inocentes.

A canção em persa Barā-ye (برای), Por causa de, composta e interpretada pelo jovem músico iraniano Shervin Hajipour (n. 1997), que se baseou em tuítes de meninas que explicavam a razão de estarem saindo às ruas (muitas das quais queimavam seus véus e dançavam de cabeça descoberta em praça pública), se tornou um hino não oficial das manifestações, junto com uma versão local de Bella Ciao. As moças postavam no Twitter mensagens sempre começadas pela preposição barā-ye (por causa de), ação que viralizou e inspirou Shervin a fazer sua própria canção de protesto. Ele a publicou pela primeira vez no Instagram em 28 de setembro, tendo sucesso imediato, mas o vídeo saiu do ar quando ele foi preso, bem no dia seguinte. Shervin foi solto após pagar fiança em 4 de outubro, mas vários artistas já tinham republicado o vídeo e feito covers ao vivo ou em suas redes sociais, replicando o sucesso nos vários protestos por Mahsa Amini ao redor do mundo. A letra termina, inclusive, aludindo ao principal lema dessa “revolução”, “zan zendegi āzādi” (زن زندگی آزادی), “mulher, vida, liberdade”. Recomendo que leiam os artigos na Wikipédia em inglês sobre o cantor e essa canção!

Leyla Shams foi uma dessas pessoas que, com poucas edições, reproduziu o vídeo em seu Instagram, e em mensagens nos e-mails de todos que temos uma conta em seu site, mandou sua própria tradução da música com a transliteração no alfabeto latino. Claro que há várias traduções em inglês circulando por aí, como as feitas nos comentários ao canal de Shervin e a da própria Wikipédia anglófona, mas aqui estou me baseando naquela feita pela Leyla pra retraduzir em português, já que meu persa é incipiente demais. Segundo ela, houve muitos pedidos pela tradução, já que ela traduz a todos uma canção por mês, mas a palavra barā-ye em si já traz dificuldades: ela pode significar “porque”, “por causa de” ou apenas “por”. Em sua versão, Leyla escolheu usar a palavra inglesa for (por) porque se aproximaria mais do significado de “What are we protesting for?” (Por/Pelo que estamos protestando?) – “For this reason!” (Por esta razão!).

Tenho que fazer um adendo próprio a respeito do sistema de transliteração, porque Leyla tem em vista, sobretudo, um público anglófono, portanto ela sempre translitera o som do “i” (quase sempre longo) como “ee”, e o som do “u” (também em geral longo) como “oo”, o que pode confundir um falante de português. Também não sou fã de sua opção de usar a grafia “é” pro nosso som de “ê”, sobretudo no fim das palavras, que é baseada essencialmente no francês e pode ser simplificada apenas como “e”. Essa diferença, assim como outra relacionada ao fenômeno “ezāfe” de ligação entre as palavras, me fez evitar o acento agudo e muitas vezes usar um hífen (“-e” ou “-ye”) separando essa letra, caso em que ela nunca deve ser tônica. No caso de ocorrerem, embora não seja comum fazer isso, também prefiro usar hífen em terminações possessivas (átonas) pra distingui-las do verbo “ser” posposto (tônico), como por exemplo em pedaram (sou pai, sou um pai) e pedaram (meu pai).

Mantive outras opções da Leyla, como o uso de “ā” pra indicar o “a” longo ao invés de “â” (que pode confundir) ou “aa” e o uso dos dígrafos “ch”, “sh”, “zh”, “kh” e “gh”. Onde o “h” não forma um desses dígrafos, mas tem seu som aspirado, o separei com hífen também. Tirei o acento do “ō”, que é uma transliteração pra pronúncia “o” da conjunção “va” (e). A responsabilidade pelo texto em português é minha, portanto se você é fluente em persa (lembrando que a letra está em linguagem essencialmente coloquial!) e tem outras sugestões ou quer falar algo sobre a transliteração da escrita perso-arábica, pode me mandar um e-mail sem medo. No canal do cantor, há também a letra em sua escrita original. Em todo caso, no final estou deixando a tradução em inglês da Leyla pra eventual comparação:


Barā-ye tu-ye kuch-e raghsidan – Pela dança nas ruas

Barā-ye tarsidan be vakht-e busidan – Pelo medo na hora de beijar (1)

Barā-ye khāhar-am khāhar-et khāharā-mun – Por minha irmã, sua irmã, nossas irmãs

Barā-ye taghir-e maghz-hā ke pusidan – Pela mudança das mentes que apodreceram

Barā-ye sharmandegi, barā-ye pipuli – Pelo constrangimento de ficar sem dinheiro

Barā-ye hasrate yek zendegi-ye ma’muli – Pelo lamento por uma vida normal

Barā-ye kudak-e zobālegard o ārezuhāsh – Pela criança que revira o lixo e pelos sonhos dela

Barā-ye in eghtesād-e dasturi – Por essa economia dirigista (2)

Barā-ye in havā-ye ālude – Por esse ar poluído

Barā-ye Vali Asr o derakhthā-ye farsude – Pela rua Vali Asr e suas árvores desgastadas (3)

Barā-ye Piruz o ehtemāl-e engherāzesh – Pelo Piruz e a probabilidade de sua extinção (4)

Barā-ye sag-hā-ye bigonāh-e mamnu’e – Pelos cães inocentes que estão contra a lei (5)

Barā-ye geryehā-ye bivakhfe – Pelas lágrimas que não têm fim

Barā-ye tasvire tekrār-e in lahze – Pelas imagens que repetirão esse momento (6)

Barā-ye chehreyi ke mikhande – Pelo rosto que ri

Barā-ye dānesh āmuz-hā, barā-ye āyande – Pelos universitários e por seus futuros

Barā-ye in behesht-e ejbāri – Por esse Paraíso forçado (7)

Barā-ye nokhbehā-ye zendāni – Pelas mentes brilhantes atrás das grades

Barā-ye kudakān-e afghāni – Pelas crianças afegãs (8)

Barā-ye in hame “barā-ye” ghayr-e tekrāri – Por todos esses “por” únicos e infinitos

Barā-ye in hame sho’ārhā-ye tu khāli – Por todos esses slogans que não levam a lugar nenhum (9)

Barā-ye āvār-e khunehā-ye pushāli – Pelas casas mal construídas que estão em ruínas (10)

Barā-ye ehsās-e ārāmesh – Pelo sentimento de tranquilidade

Barā-ye khorshid pas az shabhā-ye tulāni – Pelo nascer do Sol após uma longa madrugada

Barā-ye ghors-hā-ye asāb o bikhābi – Pelos comprimidos que ajudam contra ansiedade e insônia

Barā-ye mard mihan ābādi – Pelo homem, pela pátria e pela prosperidade

Barā-ye dokhtar-i ke ārezu dāsht pesar bud – Pela menina que queria ser um menino (11)

Barā-ye zan, zendegi, āzādi – Pela mulher, pela vida, pela liberdade

Barā-ye āzādi – Pela liberdade

For dancing in the streets; For the fear when it comes time to kiss; For my sister, your sister, our sisters; For changing the minds that have rotted; For the embarrassment of not having any money; For the longing for a normal life; For the child looking through the dumpster, and for his/her dreams; For this forced economy; For this polluted air; For Vali Asr Street and its ruined trees; For Pirouz and the probability of his extinction; For the innocent dogs that are against the law; For the tears that are endless; For the repeat images of this moment; For the face that laughs; For the college students and for their future; For this forced paradise; For the brilliant minds behind bars; For the Afghan children; For all these unique and endless ‘fors’; For all these slogans that go no where; For the poorly constructed buildings that are in ruins; For the feeling of calmness; For sunshine after a long night; For pills to help with anxiety and insomnia; For man, homeland, and prosperity; For the girl that wished to be a boy; For woman, life, freedom; For freedom.


Nos comentários a um dos vídeos de Shervin, achei também traduções voluntárias em italiano e russo, que me ajudaram um pouco a fazer a comparação final, e a segunda tinha várias explicações que me ajudaram a redigir as minhas próprias, quanto a alguns pontos da letra, que seguem abaixo:

(1) Provavelmente é uma referência à proibição do namoro em público no islã xiita. Nessa vertente, os futuros noivos sequer podem se tocar antes do casamento; o namoro, portanto, não passa de uma amizade aprofundada.
(2) “Dirigismo” é a doutrina que prega a intervenção total do Estado na economia; Dilma Rousseff foi acusada de “dirigismo” durante sua presidência, o que teria levado à crise de 2015-16. Os termos “forçada”, “imposta” ou “planificada” que encontrei não davam conta nem da exatidão, nem do caráter negativo que o termo podia comportar (eu mesmo tendo mais ao liberalismo). Portanto, ao baterem o olho, os entendedores entenderão.
(3) Vali Asr é a principal avenida, bastante arborizada, que corta Teerã, capital do Irã.
(4) “Piruz” é uma espécie de guepardo ou chita nativo do Irã, que é considerada a última espécie asiática ainda existente.
(5) O cão é um animal depreciado na cultura islâmica, e o regime iraniano tem uma aversão particular por eles, o que pode indicar dois fatos. Primeiro, com os anos o problema dos cães de rua (muitos deles atacando transeuntes) tem crescido, sobretudo em Teerã, e o governo é acusado de lidar cruelmente com eles. Em julho de 2022, por exemplo, ele teria simplesmente abatido mais de 1700 em todo o país. Segundo, na mesma época e antes dos grandes protestos, o regime tentava passar uma lei que proibia ter vários tipos de animais como mascotes, incluindo cães, o que foi considerado discussão inútil mesmo pelos políticos autorizados. Em Teerã, passear com pets na rua já é proibido.
(6) Em 8 de janeiro de 2020, um avião ucraniano de passageiros que voaria de Teerã a Kyiv foi abatido sem motivo aparente pela Guarda Revolucionária iraniana, logo após a decolagem, tendo matado todos os 176 passageiros. Segundo o comentário, seria uma referência à última visão que o ativista, escritor e dentista Hamed Esmaeilion teve de sua esposa e sua filha criança antes do voo. Esmaeilion preside hoje a associação das famílias das vítimas desse voo.
(7) Referência à imposição de leis religiosas ao conjunto do país.
(8) Com a volta dos Talibã ao poder no Afeganistão, os afegãos (muitos dos quais falam uma variante do persa) se tornaram o maior povo com refugiados no Irã.
(9) Referência às palavras de ordem ou frases de efeito simplistas e lacradoras que regimes autoritários em geral lançam contra seus inimigos na propaganda midiática e em eventos celebrativos.
(10) Referência à enorme corrupção que existe nas áreas de construção e habitação popular, levando à má qualidade das obras e não raro a catástrofes letais.
(11) Óbvia referência à transfobia reacionária.



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