segunda-feira, 24 de outubro de 2022

As três fontes e três partes componentes do marxismo


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Esta é a segunda das três brochuras escritas por Vladimir Ilich Lenin (1870-1924), revolucionário comunista russo, que traduzi pra editora Expressão Popular publicar, o que ela só fez justamente com esta aqui. A que lhes apresento hoje se chama “As três fontes e três partes componentes do marxismo”, (1) publicada na revista Prosveschenie (Esclarecimento), n.º 3, em março de 1913. Assinado com as iniciais V. I., o texto está conforme o que aparece na revista Prosveschenie, e as notas são dos redatores soviéticos. Sem as notas da edição soviética, o original em russo pode ser lido nesta página.



Em todo o mundo civilizado, os ensinamentos de Marx atraem para si uma enorme hostilidade e ódio da parte de toda a ciência burguesa (seja estatista [kazionny] ou liberal), a qual vê no marxismo algo como uma “seita perigosa”. Não se deve esperar nenhuma outra atitude, já que numa sociedade erigida sobre a luta de classes não podem existir ciências sociais “neutras”. De uma forma ou de outra, toda ciência estatista ou liberal defende a escravidão assalariada, enquanto o marxismo declarou uma guerra implacável contra essa escravidão. Esperar que haja ciência imparcial numa sociedade com escravidão assalariada é uma ingenuidade tão absurda quanto esperar que os fabricantes sejam neutros quando lhes questionam se é preciso aumentar os salários dos operários diminuindo os lucros do capital.

Mas não é só isso. A história da filosofia e a história das ciências sociais mostram com clareza meridiana que no marxismo não há nada semelhante a um “sectarismo” no sentido de algum ensinamento fechado, rígido, surgido separadamente do caminho principal da evolução da civilização mundial. Pelo contrário, toda a genialidade de Marx consiste exatamente em ele ter dado respostas a perguntas já feitas pelos pensadores progressistas da humanidade. Seus ensinamentos surgiram como uma continuação direta e natural dos ensinamentos dos maiores representantes da filosofia, da economia política e do socialismo.

Os ensinamentos de Marx são inquebrantáveis porque são corretos. Eles são completos e coerentes, dando às pessoas uma visão integral de mundo, irreconciliável com toda superstição, todo reacionarismo [reaktsia] e toda defesa do jugo burguês. Constituem a herança legítima do melhor que a humanidade criou no século 19, na forma da filosofia alemã, da economia política inglesa e do socialismo francês.

Vamos nos deter brevemente sobre essas três fontes e, ao mesmo tempo, partes componentes do marxismo.


I

A filosofia do marxismo é o materialismo. Ao longo de toda a história contemporânea da Europa, e em particular no fim do século 18, na França, onde havia irrompdo um combate encarniçado contra todo tipo de tralha medieval, contra a servidão nas instituições e nas ideias, o materialismo se revelou a única filosofia consequente, fiel a todas as descobertas das ciências naturais, hostil às superstições, à carolice e similares. Por isso, os inimigos da democracia tentaram com todas as forças “refutar”, desmontar e difamar o materialismo e defenderam formas diversas de idealismo filosófico, sempre reduzido, de um jeito ou de outro, ao apoio ou defesa da religião.

Da maneira mais decidida, Marx e Engels advogaram o materialismo filosófico e desvelaram reiteradamente a profunda falsidade de cada desvio desse fundamento. As formulações mais claras e detalhadas de suas visões se encontram nas obras Ludwig Feuerbach e O Anti-Dühring, de Engels, as quais – à semelhança do Manifesto Comunista (2) – são os livros de cabeceira de qualquer operário consciente.

Marx, porém, não se deteve no materialismo do século 18, mas fez a filosofia avançar. Ele a enriqueceu com os aportes da filosofia clássica alemã, sobretudo do sistema de Hegel, que por sua vez conduziu ao materialismo de Feuerbach. Desses aportes, o principal foi a dialética, isto é, a doutrina do desenvolvimento em seu aspecto mais pleno, profundo e isento de unilateralismo, a doutrina da relatividade do conhecimento humano, que nos dá a imagem da matéria em evolução perpétua. As mais recentes descobertas das ciências naturais – o elemento rádio, os elétrons, a transformação dos elementos – comprovaram admiravelmente o materialismo dialético de Marx, em detrimento das doutrinas dos filósofos burgueses com suas “novas” recaídas no velho e podre idealismo.

Aprofundando e desenvolvendo o materialismo filosófico, Marx o levou até o fim, estendendo sua compreensão da natureza à compreensão da sociedade humana. A mais alta conquista do pensamento científico é o materialismo histórico de Marx. O caos e o arbítrio que até então reinavam nas visões sobre a história e a política espantosamente deram lugar a uma teoria científica integral e coerente, que mostra como a partir de determinada formação social desenvolve-se, na sequência do aumento das forças produtivas, outra formação, mais elevada – por exemplo, do feudalismo nascendo o capitalismo.

E exatamente tal como a compreensão do homem, independentemente dele, reflete a natureza existente, isto é, a matéria em desenvolvimento, da mesma forma a compreensão social do homem (ou seja, as diversas visões e doutrinas filosóficas, religiosas, políticas etc.) reflete a estrutura econômica de uma sociedade. As instituições políticas constituem uma superestrutura sobre a base econômica. Vemos, por exemplo, como as diversas formas políticas dos Estados europeus modernos servem para reforçar o domínio da burguesia sobre o proletariado.

A filosofia de Marx é o materialismo filosófico finalizado, que deu à humanidade, em particular à classe operária, grandes ferramentas de conhecimento.


II

Reconhecendo que a estrutura econômica constitui a base sobre a qual se ergue a superestrutura política, Marx dedicou sua atenção, antes de tudo, a conhecer essa estrutura econômica. Principal trabalho de Marx, O capital é consagrado ao estudo da estrutura econômica da sociedade atual, isto é, capitalista.

Antes de Marx, a economia política clássica havia amadurecido na Inglaterra, o país capitalista mais desenvolvido. Adam Smith e David Ricardo, pesquisando a estrutura econômica, deram início à teoria do valor-trabalho. Marx continuou o trabalho deles e deu um fundamento sólido e um desenvolvimento lógico a essa teoria. Ele mostrou que o valor de toda mercadoria é definido pela quantidade do tempo de trabalho socialmente necessário que decorre ao se produzir a mercadoria.

Lá onde os economistas burgueses viam uma relação entre coisas (a troca de uma mercadoria por outra), Marx revelou relações entre pessoas. A troca de mercadorias expressa uma ligação entre produtores individuais sob a intermediação do mercado. O dinheiro significa que essa ligação está se tornando cada vez mais estreita, unificando irreversivelmente a vida econômica inteira dos produtores individuais num todo único. O capital indica o desenvolvimento subsequente dessa ligação: a força de trabalho do homem se torna mercadoria. O operário assalariado vende sua força de trabalho ao proprietário da terra, da fábrica, dos instrumentos de trabalho. O operário emprega uma parte de seu dia de trabalho para cobrir as despesas que mantenham a si e à sua família (salário), e na outra parte de seu dia o operário trabalha de graça, criando a mais-valia para o capitalista, a fonte do lucro, a fonte da riqueza da classe capitalista.

As lições sobre a mais-valia são a pedra angular da teoria econômica de Marx.

O capital, criado com o trabalho do operário, oprime o mesmo operário, arruinando os pequenos fabricantes e formando um exército de desempregados. Na indústria, o triunfo da grande produção é imediatamente visível, mas na agricultura também vemos o mesmo fenômeno: a superioridade da grande lavoura capitalista está aumentando, o emprego de máquinas está crescendo, a economia camponesa, em declínio e ruína sob o jugo de uma técnica atrasada, está caindo no laço do capital financeiro. Na agricultura há diferentes formas de decadência da pequena produção, mas a decadência em si é um fato indiscutível.

Suprimindo a pequena produção, o capital conduz ao incremento da produtividade do trabalho e à formação de uma posição monopolística ocupada pelas alianças entre grandes capitalistas. A produção em si está se tornando cada vez mais social – centenas de milhares e milhões de operários são postos em ligação num organismo econômico planificado –, mas o produto do trabalho comum é apropriado por um punhado de capitalistas. Estão crescendo a anarquia na produção, as crises, a busca tresloucada por mercados e a penúria material do grosso da população.

Aumentando a dependência do operariado face ao capital, o regime capitalista forma uma grande força de trabalho unificada.

Marx examinou a evolução do capitalismo desde os primeiros germes da economia mercantil, desde a simples troca, até suas formas superiores, até a grande produção.

E a experiência de todos os países capitalistas, tanto os velhos quanto os novos, mostra a um número cada vez maior de operários, ano após ano e de forma patente, a justeza desse ensinamento de Marx.

O capitalismo triunfou no mundo inteiro, mas essa vitória constitui apenas a antessala da vitória do trabalho sobre o capital.


III

Quando a servidão foi abolida e apareceu nesse mundo de Deus a sociedade capitalista “livre”, logo se descobriu que essa liberdade significava um novo sistema de opressão e exploração dos trabalhadores. Variadas doutrinas socialistas começaram rapidamente a surgir, como uma réplica a esse jugo e um protesto contra ele. Mas o socialismo inicial era um socialismo utópico. Ele criticava a sociedade capitalista, condenava-a e amaldiçoava-a, sonhava com sua destruição, fantasiava sobre o melhor dos regimes, convencia os ricos quanto à imoralidade da exploração.

Mas o socialismo utópico não podia indicar uma saída efetiva. Ele era incapaz de desvelar a essência da escravidão assalariada sob o capitalismo, de descobrir as leis de seu desenvolvimento e de encontrar a força social que está apta a se tornar a artífice de uma nova sociedade.

Além disso, as explosivas revoluções que acompanhavam a queda do feudalismo e da servidão por toda a Europa, em particular na França, demonstravam com crescente evidência que a base e a força motora de todo desenvolvimento são a luta de classes.

Nenhum triunfo da liberdade política sobre a classe senhorial [klass krepostnikov] foi conquistado sem uma resistência encarniçada. Nenhum país capitalista se estabeleceu sobre bases mais ou menos democráticas sem uma luta mortífera, e não pacífica, entre as diversas classes da sociedade capitalista.

A genialidade de Marx consiste em ele ter, antes de todos, sabido tirar daí e levar às últimas consequências a conclusão ensinada pela história mundial. Essa conclusão é a doutrina da luta de classes.

As pessoas sempre foram e sempre serão vítimas ingênuas do engano e do autoengano em política, enquanto não aprenderem algo além de qualquer proclamação ou fraseado moral, religioso, político ou social prometendo decifrar os interesses destas ou daquelas classes. Os partidários de reformas e melhorias sempre serão enganados pelos defensores do antigo enquanto não entenderem que toda velha instituição, por mais bruta e carcomida que pareça, escora-se nas forças destas ou daquelas classes dominantes. E para esmagar a resistência dessas classes, existe apenas um meio: encontrar na própria sociedade que nos circunda, esclarecer e organizar para a luta aquelas forças que podem – e devem, dada sua posição social – reunir a força capaz de varrer o velho e criar o novo.

Somente o materialismo filosófico de Marx indicou ao proletariado a saída da escravidão espiritual em que vegetavam até hoje todas as classes oprimidas. Somente a teoria econômica de Marx desvelou a verdadeira situação geral do proletariado no regime capitalista.

Em todo o mundo, da América ao Japão e da Suécia à África do Sul, multiplicam-se as organizações independentes do proletariado. Com educação e esclarecimento, ele está conduzindo sua luta de classes, livrando-se dos preconceitos da sociedade burguesa, coligando-se em ascendente união, aprendendo a avaliar a medida de seus sucessos, aguerrindo suas forças e crescendo impetuosamente.


Notas (clique no número pra voltar ao texto)

(1) O artigo “As três fontes e três partes componentes do marxismo” foi escrito por V. I. Lenin para o 30.º aniversário da morte de Karl Marx e publicado na revista Prosveschenie (Esclarecimento), n.º 3, 1913.

Prosveschenie” foi uma revista teórica bolchevique que saía legalmente todo mês; foi editada em São Petersburgo de dezembro de 1911 a junho de 1914. A tiragem da revista chegava a 5 mil exemplares.

A revista foi criada por iniciativa de V. I. Lenin para substituir a revista bolchevique Mysl (Pensamento), publicada em Moscou e fechada pelo governo tsarista. Participaram da revista V. V. Vorovski, A. I. Ulianova-Ielizarova, N. K. Krupskaia, V. M. Molotov, M. S. Olminski, I. V. Stalin e M. A. Saveliev. Para dirigir a seção de literatura de Prosveschenie, Lenin chamou A. M. Gorki. De Paris, e depois de Cracóvia e Poronin, Lenin dirigia Prosveschenie, redigia artigos e conduzia uma correspondência regular com membros do conselho editorial. Na revista foram publicados os trabalhos de Lenin “As três fontes e três partes componentes do marxismo”, “Notas críticas sobre a questão nacional”, “Sobre o direito das nações à autodeterminação”, entre outros.

A revista desmascarava os oportunistas (liquidacionistas, otzovistas, trotskistas), bem como os nacionalistas burgueses, esclarecia a luta da classe operária nas condições de uma nova ascensão revolucionária e fazia a propaganda das palavras de ordem bolcheviques na campanha eleitoral para a 4.ª Duma de Estado; ela atuava contra o revisionismo e o centrismo nos partidos da 2.ª Internacional. A revista desempenhou um importante papel na educação internacional marxista dos trabalhadores de vanguarda da Rússia.

Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, a revista Prosveschenie foi fechada pelo governo tsarista. Na primavera de 1917 a edição do jornal foi retomada, mas saiu apenas um número (duplo), no qual foram publicados os trabalhos de Lenin “Os bolcheviques vão conservar a direção do Estado?” e “Para a revisão do programa do Partido”.

(2) Cf. F. ENGELS, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (K. MARX e F. ENGELS, Obras escolhidas em dois tomos, t. II, 1955, pp. 339-382, em russo); F. ENGELS, O Anti-Dühring, 1957 (em russo); K. MARX e F. ENGELS, Manifesto do Partido Comunista (Obras completas, 2.ª ed., t. 4, pp. 419-459, em russo).



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