Em 2020, a editora de esquerda brasileira Expressão Popular, em conjunto com outras casas editoriais, publicou a coletânea especial Lenin 150, em memória dos 150 anos de nascimento do revolucionário russo Vladimir Ilich Ulianov, destacado teórico marxista da então chamada “Segunda Internacional”, criador da fração bolchevique da social-democracia na Rússia, líder da Revolução de Outubro de 1917, fundador da Terceira Internacional (Comintern) em 1919 e da União Soviética (URSS) em 1922. Extremamente pressionado por seu trabalho intelectual e por seu governo autoritário de 1918 a 1924, acabou tendo vários derrames e, com a saúde fragilizada, morreu relativamente novo. Sua memória foi, de fato, santificada num regime autodeclarado ateu e laico, e mesmo hoje, nos países capitalistas ocidentais, Lenin ainda é admirado pela luta social no antigo império tsarista e por ter chamado de “comunismo” sua reinterpretação crítica do legado dos alemães Karl Marx e Friedrich Engels.
A Expressão Popular trabalha com a concessão voluntária dos direitos autorais do autor ou do tradutor, a fim de baratear o custo final do livro pra população acadêmica e militante, e nos últimos anos muitos clássicos esgotados têm sido relançados. A proposta que a editora me fez em 2019 foi a publicação de três brochuras antigas de Lenin, traduzidas pro português: “Friedrich Engels” (1895), “As três fontes e três partes componentes do marxismo” (1913) e “Karl Marx (Breve esboço biográfico com uma exposição do marxismo)” (1914). No ano seguinte, foi publicada a referida coletânea Lenin 150 apenas com a segunda brochura, junto com um texto de Vijay Prashad traduzido por Miguel Yoshida e um poema de Vladimir Maiakovski traduzido por Zoia Prestes, uma das filhas do líder histórico comunista Luiz Carlos. Por algum tempo, o arquivo PDF estava disponível no site da editora, e podia ser baixado com ou sem uma contribuição financeira simbólica. Porém, esses dias percebi que a própria Expressão Popular retirou o produto do ar, e ficou disponível online apenas a cópia que indiquei acima, guardada no acervo Marxists.org, ao qual tanto já contribuí.
Em sua página, a editora afirma que nem sequer está recebendo novos originais pra publicação, talvez porque além de manter os funcionários em regime domiciliar, deve estar sobrecarregada. Não faço ideia se vão publicar as outras duas brochuras sobre Marx e Engels que traduzi, nem a introdução que fiz aos três textos em conjunto. Independente do que diz o contrato que assinei com eles, estou publicando a partir de hoje aqui na página, sem alterações, a referida introdução e as três brochuras de Lenin, que vão aparecer respectivamente nos dias 22, 24 e 26 de outubro. Os links dados abaixo são ativados à medida que os textos programados forem publicados, com notas explicativas que julguei necessário inserir.
O presente volume contém as traduções, feitas diretamente da língua russa, de três conhecidos artigos de Vladimir Ilich Ulianov (1870-1924), mais conhecido na história como Vladimir Lenin: “Фридрих Энгельс” [Fridrikh Engels], redigido em 1895 e publicado em 1896; “Три источника и три составных части марксизма” [Tri istochnika i tri sostavnykh chasti marksizma], publicado em 1913; e “Карл Маркс (Краткий биографический очерк с изложением марксизма)” [Karl Marks (Kratki biograficheski ocherk s islozheniem marksizma)], redigido em 1914, publicado pela primeira vez em 1915 e reeditado numa brochura ampliada em 1918. Os textos digitais (1) utilizados como base pertencem à quinta edição, a última dos tempos do comunismo, da “Полное собрание сочинений” [Polnoie sobranie sochinenii], as Obras completas de Lenin publicadas na extinta União Soviética pela Izdatelstvo politicheskoi literatury (Editora de Literatura Política) ao longo das décadas de 1960 e 1970: o tomo 2 (ed. 1967, abarcando o período 1895-1897) para Friedrich Engels, o tomo 23 (ed. 1973, abarcando o período entre março e setembro de 1913) para As três fontes e três partes componentes do marxismo e o tomo 26 (ed. 1969, abarcando o período entre julho de 1914 e agosto de 1915) para Karl Marx (Breve esboço biográfico com uma exposição do marxismo).
Segundo as teorias tradutórias modernas, nenhum tipo de texto pode ser visto como um objeto intocável ou um monumento incorruptível, ou como tendo uma essência imutável que caberia descobrir, dado que ele não passa de um código intermediário imperfeito entre o pensamento do autor e o pensamento dos leitores. Por isso, o público e o objetivo da tradução também serão fundamentais para as escolhas de quem a redige. Contudo, sem fazer distinção entre um público militante, acadêmico ou leigo culto, e atendendo também à demanda de trabalhos de documentação ainda tão escassos no Brasil, adotei uma série de procedimentos-padrão que pretendo sumarizar abaixo.
As traduções dos três textos de Lenin supracitados são perfeitamente utilizáveis tanto por quem fala a língua russa ou tem algum conhecimento dela, quanto por quem não a domina em nenhum grau. Portanto, respeitam o contexto em que foram redigidos os originais e também o contexto de utilização por um determinado público no Brasil de inícios do século 21. O balanço entre esses dois contextos nem sempre permitiu a tradução “literal”, ou “palavra por palavra”, do russo para o português, seja porque em ambos os idiomas a mesma ideia era expressa de forma “idiomática”, seja porque certos recursos de estilo de Lenin não faziam sentido num texto em português brasileiro. Por vezes a discrepância vocabular foi tamanha que julguei necessário colocar entre colchetes “[ ]” uma transliteração da palavra original no alfabeto latino, formatada em itálico, para a informação do público poliglota, sem indicar que se trata de inserção minha. Porém, essas observações linguísticas são dispensáveis para os que desconhecem o russo.
O recurso aos colchetes também ocorreu em outros três contextos: para demarcar adendos de Lenin dentro de citações alheias, as quais estavam inicialmente separadas pelos parênteses “( )”, para indicar adendos meus dentro do texto de Lenin visando esclarecer determinada passagem (estas se abrem com as iniciais “N.T.” ‒ nota do tradutor) e para introduzir as traduções de títulos em russo dentro de notas ou em listas bibliográficas, não contendo, como as indicações de palavras originais, as iniciais “N.T.”. Em grau mais restrito, vali-me igualmente dos colchetes ao apontar notas que foram abertas por Lenin (simbolizadas pelo asterisco “ * ”, e não por algarismos indo-arábicos, e inseridas no rodapé da página na edição soviética) ou, dentro destas, observações feitas pelos editores soviéticos.
Mesmo não respeitando a numeração original, as notas explicativas foram todas traduzidas e adaptadas a partir da versão russa, e por isso não há indicações quando se trata de notas de editores, mas apenas quando se trata de “[Nota de Lenin]” ou de “Nota do tradutor” ([N.T.]). Diversas citações diretas que Lenin transcreveu na brochura Karl Marx foram redigidas no texto em português conforme traduções consagradas em edições brasileiras ou portuguesas dos mesmos livros, sendo as notas da edição soviética substituídas pelas referências das obras traduzidas; exceção feita às citações do texto Misère de la philosophie, que Marx escreveu diretamente em francês e desta língua foram traduzidos.
Ainda no tocante à brochura Karl Marx, convém explicar outro procedimento na longa bibliografia que a encerra. Os títulos em russo dos textos de autores russos foram transliterados, com a tradução para o português colocada entre colchetes, enquanto os títulos em russo dos textos de autores não russos foram todos traduzidos, sendo usada especialmente, no caso de escritores famosos, sua forma consagrada quando existente em português. Os títulos em outras línguas (a saber, inglês, francês, alemão e italiano) não foram traduzidos, nem tiveram sua tradução adicionada entre colchetes, por se tratar de línguas razoavelmente conhecidas no Ocidente; foram corrigidas apenas grafias errôneas, se fosse o caso.
Até 1.º de fevereiro de 1918, o calendário na Rússia era atrasado em 13 dias, para corresponder ao calendário juliano, utilizado pela Igreja Ortodoxa e até hoje referencial para celebrações religiosas. Porém, ainda hoje, não se fala na Rússia em “calendário juliano” e “calendário gregoriano”, mas respectivamente “velho estilo” e “novo estilo”; muitas datas históricas e aniversários foram registrados nesse “velho estilo”, (2) por isso é comum que obras de referência russas tragam as duas datas equivalentes. O próprio Lenin registra essa diferença, tendo eu optado, em prol da fluidez na leitura, por chamar o “velho estilo” de “calendário ortodoxo”, e o “novo estilo” de “(data) no Ocidente”. Outra coisa que pode parecer óbvia: como na Europa as estações do ano são muito mais marcadas, é comum seu uso como referência temporal. Mas não custa lembrar que nos dois hemisférios elas ocorrem “ao contrário”: quando aqui é primavera ou verão, lá é respectivamente outono ou inverno, e vice-versa.
Todavia, para qualquer tradutor do russo, o problema mais espinhoso é o da transliteração do alfabeto cirílico para o alfabeto latino, necessária uma vez que, exceto por razões didáticas, nunca misturamos alfabetos diversos num mesmo texto. Espinhoso não somente porque a própria Rússia jamais adotou um padrão único (como ocorreu na China comunista, por exemplo, com o sistema pinyin), mas também porque cada idioma ocidental tem formas diferentes de representar os sons equivalentes em russo, o qual, porém, tem muitos sons ausentes nas línguas românicas e germânicas. Essa questão pode parecer irrelevante a quem não conhece o russo, mas para quem tem alguma noção do que está sendo transliterado, sistemas aleatórios e incoerentes podem levar à confusão.
Nas melhores traduções mais recentes dos clássicos da literatura russa, há o costume de se utilizar uma transliteração mais ligada à pronúncia do que à ortografia, e que o professor Nivaldo dos Santos me disse certa vez ser a usada por Paulo Bezerra. (3) Eu, contudo, emprego um sistema próprio, em parte baseado no inglês (influência mais comum entre os historiadores, dada a preeminência anglo-saxã nos estudos russos e soviéticos), em parte baseado no português (tanto por economia de espaço quanto para melhor compreensão dentro da lusofonia), equilibrando, portanto, a reprodução dos sons da língua e das letras do alfabeto cirílico. (4) A verdade é que tal equilíbrio, exceto no âmbito técnico, jamais pode ser alcançado, e eu preferi criar uma espécie de alusão visual simples, por vezes reconhecível em grande parte do mundo, mas em todo caso provisória e acessória, porque o não iniciado dispensa minúcias linguísticas (sem, porém, ter a inteligência subestimada), enquanto o conhecedor pode obter detalhes mais precisos em outras fontes. Mesmo sendo a sílaba tônica em russo bastante imprevisível, dispensei qualquer sinal diacrítico, exceto o acento agudo em palavras oxítonas termnadas em vogal (como trudá), para dar maior naturalidade.
Um breve adendo: nas poucas vezes em que nomes de cidades hoje localizadas na Ucrânia diferem entre as línguas russa e ucraniana, optei pelo uso das variantes russas, em vista do então domínio histórico do tsarismo russo: Kiev ao invés de Kyiv, Kharkov ao invés de Kharkiv, Lvov ao invés de Lviv, Odessa ao invés de Odesa etc. Essa preferência é desaconselhada, sobretudo pelos ucranianos, em textos atuais ou mais modernos. Topônimos de outros países com formas consagradas no português brasileiro, como Cracóvia (Kraków), Colônia (Köln) e Mosela (Mosel), aparecem como tal.
É de se lembrar ainda que, quanto às referências bibliográficas, Lenin segue as mais diversas regras, omitindo vários dados e muitas vezes colocando títulos de artigos em itálico e os títulos das revistas entre aspas (ao contrário de nosso costume), ou até mesmo, por vezes, nomes de autores em itálico, em geral quando o livro está em língua estrangeira e, por isso, o nome do autor também aparece em alfabeto latino. Além disso, o idioma russo usa normas diferentes para redação de referências, as quais, quando possível, foram convertidas para a norma brasileira da ABNT, com a simplificação de algumas regras. Nomes de cidades eslavas de edição que costumam aparecer abreviados (o que ocorre também com topônimos alemães), como M. = Moscou, SPB. = São Petersburgo e K. = Kiev/Kyiv, obviamente foram desdobrados.
Entre os incontáveis anexos, a edição soviética das Obras completas de Lenin comporta índices onomásticos das pessoas citadas nos textos e, dispensáveis para o estudo, planos de redação esboçados pelo próprio autor. Neste volume, optamos por deixar apenas o plano de As três fontes e três partes componentes do marxismo, pois o plano de Karl Marx era demasiado grande e complexo para uma brochura já longa e importante.
Por fim, mas não menos importante, não houve qualquer intenção em imitar o estilo mais erudito do russo ou do português do início do século 20. É obrigação de toda boa tradução, sobretudo das áreas política e acadêmica, primar pelo entendimento e utilidade aos contemporâneos e pela clareza e precisão conceituais.
Notas (clique no número pra voltar ao texto)
(1) Todos os 55 tomos em russo, além dos principais textos em arquivos separados, estão em formato .DOC disponíveis nesta página. Acesso em: 28 jun. 2019.
(2) Isso explica por que se fala em “Revolução de Fevereiro” e “Revolução de Outubro” de 1917, quando na verdade já se tratava de março e novembro no calendário ocidental.
(3) Ligada principalmente à opção de jovens tradutores formados na USP, ela também aparece nas traduções feitas por Boris Schnaiderman, Rubens Figueiredo, Cecília Rosas, Elena Vássina e outros literatos.
(4) Um texto explicativo e as tabelas de equivalência, abrangendo também o ucraniano, o belarusso, o búlgaro e o macedônio, estão disponíveis nesta página. Acesso em: 28 jun. 2019.
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