quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Puigdemont, líder empossado/afastado


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O imbróglio diplomático e geopolítico entre a Espanha, reino soberano, e a Catalunha, sua região autônoma, continua. Em 27 de outubro, o Parlamento de Barcelona proclamou a República Catalã de forma unilateral, sem a aprovação do Estado espanhol, de seu rei Felipe 6.º e de seu primeiro-ministro Mariano Rajoy. Estes, pelo contrário, investiram violentamente contra a secessão e decretaram no mesmo dia o controle provisório da Generalitat, o governo local, que passava a ter depostos seu presidente, Carles Puigdemont, seu vice-presidente, Oriol Junqueras, e sua presidente parlamentar, Carme Forcadell. Estes, contudo, resistiram e se consideram um país independente, falando agora, portanto, em “nossa nação”, e não “nossa região”.

O povo da Catalunha está nas ruas permanentemente e em número massivo, mas a grande mídia brasileira só mostra os protestos em Madri pela unidade da Espanha, cuja representatividade entre os catalães é duvidosa. (Nesses protestos do tipo “Viva España” é conhecida a participação de xenófobos, fascistas e franquistas com sua saudação do braço erguido.) Não parece provável que a independência se mantenha sem uma nova abertura de diálogo conjunto entre Puigdemont e Rajoy, que até agora têm se recusado a ceder um ao outro. Mas um fato é certo: o sentimento dos catalães como um povo ou até país separado dos espanhóis (que falam a língua castelhana), tal como ocorre entre os galegos e os bascos, é secular, e infelizmente o governo central está ignorando isso. Claro que isso, por si só, não justifica a cisão (e o Brexit nos dá uma pista dos custos de tal reconfiguração), mas já é um fator de enorme peso.

Alguns analistas de esquerda, como o site Resistir.info, pensam que boa parte do movimento operário catalão está alijada do processo separatista, cujo protagonismo sempre teria sido da burguesia regional, que nos últimos anos promoveu profundos cortes nos investimentos sociais. Contudo, essa imagem, muito associada ao antecessor de Puigdemont, Artur Mas, fez com que ele justamente ficasse só um mandato no cargo, tendo sido substituído pelo jornalista com a peruca dos Beatles. O diferencial de Carles é justamente mostrar-se como um “outsider”, não saído dessa burguesia catalã, filho de profissionais liberais e que seria mais consequente no processo de independência. Eu mesmo acho que esse projeto é essencialmente esquerdista, como se nota pela maioria dos que apoiam a cisão na Catalunha e pela composição básica do Junts pel Sí, coligação a que pertence o atual presidente. Agrava ainda mais o fato de que Rajoy e seu Partido Popular são de um evidente nacionalismo direitista.

Mas a empreitada continua soando muito quixotesca (ai de mim, Cervantes!), a começar por este vídeo gravado no dia 28 de outubro. A bandeira da União Europeia, colocada à força pelos líderes catalães, destoa com o silêncio que o bloco lhes dedicou, quando não com o repúdio aberto de seus principais membros, França (que tem no sul uma minoria occitana muito próxima culturalmente dos catalães), Alemanha e Reino Unido. Vemos também que o púlpito já não tem mais a marca “Generalitat de Catalunya”, mas somente o brasão nacional; só que o bizarro fica por conta da posição aparentemente torta em que ele está. O “Quixote” Puigdemont pensa que é agora o presidente da recém-proclamada República Catalã, com o “mandato do povo” que ele evoca de forma enjoativa. Pra Rajoy ele não passa de um rebelde recém-deposto, trocado agora pela sua vice-premiê.

Recomendo que, se vocês entendem catalão ou até espanhol, procurem mais mídia local que aluda aos interesses catalães, e não apenas o El País ou a grande mídia brasileira. O canal de onde eu tirei o vídeo sem legendas, por exemplo, é de um periódico muito bom em catalão, o ElNacional.cat. Sugiro que leiam ou folheiem também o Ara.cat, outro site bastante informativo (ara = agora), e o ElPeriodico.cat. Acabei de descobrir que o site oficial da Presidência da Generalitat tem transcrita a maioria dos discursos, inclusive este legendado, com PDF disponível pra baixar. Por fim, vejam o próprio site do governo, também em inglês, espanhol e occitano, com dados sobre turismo, estudos, serviço social etc.

Eu mesmo traduzi e diretamente legendei o vídeo, baseado naquela transcrição que mencionei. Depois, revisei o texto das legendas novamente pra poder fazer uma tradução escrita que não precisasse ser abreviada, mas mais clara e literal. Seguem o vídeo e a reescrita em português:


Caros e caras compatriotas,

Vivemos ontem um dia histórico, um dia carregado de sentido democrático e de sentido cívico. O Parlamento da Catalunha cumpriu com o que os cidadãos escolheram no dia 27 de setembro, quando a maioria surgida das urnas encarregou o Parlamento de proclamar a independência.

Também ontem, o Conselho de Ministros espanhol decidiu pela demissão de todo o Governo da Catalunha, pela censura em nosso autogoverno e pela dissolução do Parlamento. São decisões contrárias à vontade mostrada pelos cidadãos de nosso país nas urnas, o qual sabe perfeitamente que numa sociedade democrática são os parlamentos que elegem ou demitem os presidentes.

Porém, nestas primeiras horas, todos vocês, cidadãos e cidadãs, entenderam que a etapa na qual entramos deve continuar sendo defendida com um incansável senso cívico e um engajamento pacífico. A reação de vocês foi digna de um país maduro, que sabe aonde quer chegar e como quer chegar. Continuemos assim: sejamos perseverantes na única atitude que nos pode fazer vencer. Sem violência, sem insultos, de maneira inclusiva, respeitando pessoas e símbolos, opiniões e respeitando também os protestos dos catalães que não concordam com o que decidiu a maioria parlamentar.

Nossa vontade é a de continuar trabalhando para cumprir os mandatos democráticos, bem como buscar a estabilidade e tranquilidade máximas, sabendo das dificuldades lógicas que comporta uma etapa desta natureza, que nosso país nunca havia percorrido, ou melhor, nunca antes do jeito que está fazendo agora.

A mensagem que eu gostaria de lhes dar é: tenhamos paciência, perseverança e perspectiva. Por isso, saibamos bem que a melhor maneira de defender as conquistas que até hoje alcançamos é a oposição democrática à aplicação do artigo 155, que é a consumação de uma agressão premeditada à vontade dos catalães, que de forma muito majoritária e ao longo de muitos anos têm se sentido como Nação da Europa.

Faremos isso preservando-nos da repressão e das ameaças, sem jamais abandonar, nunca na vida, em nenhum momento, uma conduta cívica e pacífica. Não podemos e não queremos vencer pela força. Nós, não. Peço-lhes isso convicto de que essa condição é a que todos esperam, também fora de nosso país.

Seguiremos trabalhando para construir um país livre, para garantir uma sociedade com menos injustiças, mais igualdade, mais solidariedade, mais fraternidade com todos os povos do mundo, a começar pelos povos da Espanha, com os quais queremos vincular-nos em respeito e reconhecimento mútuos.

Muito obrigado, e viva a Catalunha!



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