domingo, 1 de fevereiro de 2015

“Encantação pelo riso”, de Khlebnikov


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Sempre gostei de traduzir prosa, especialmente textos em russo do período soviético, com cujo vocabulário estou acostumado. Mas hoje estou me arriscando pelo caminho pétreo da tradução de poesia, cujas dificuldades residem exatamente no fato de termos que sacrificar muito do conteúdo para manter o efeito da forma, e às vezes nem sempre serem iguais os valores do que é ou não poético em uma ou outra sociedade. Por isso mesmo, em poesia nem sempre devemos esperar “corretas traduções literais”, como nos ensinam um dos miniclássicos no assunto, Oficina de tradução: a teoria na prática, de Rosemary Arrojo, e, mais recente e mais específico sobre poesia, Tradução: teoria e prática, de John Milton.

Tendo conhecido meu trabalho de tradução e legendagens, um rapaz me contatou pelo Facebook para falar de um poema do russo Viktor Vladimirovich Khlebnikov, mais conhecido sob o nome artístico de Velimir Khlebnikov (Велимир Хлебников), nascido em 1885 e falecido em 1922. Também dramaturgo, foi cronologicamente o primeiro vanguardista na poesia russa e uma figura central no movimento futurista nacional, embora sua influência tenha ultrapassado essas fronteiras. O referido poema, denominado “Заклятие смехом” (Zakliatie smekhom) e escrito em 1908 ou 1909, foi traduzido no Brasil pelos irmãos Campos nos anos 1950, e era uma versão de que aquele jovem gostava muito, com o título “A encantação pelo riso”. Ele também havia encontrado, após alguma pesquisa, uma versão em inglês, cuja fonte, título e tradutor ele não soube me dizer, e que em sua opinião “é muito fechada e peremptória, me remete quase que a Joyce”, enquanto a brasileira “é muito mais lúdica, apesar dos termos”.

Seu desejo que o motivou a me escrever era o de sempre querer “saber em russo como é, se o poema está mais bem traduzido em português ou inglês, qual o verdadeiro sentido que Khlebnikov quis lhe dar”; enfim, “saber qual que se aproxima mais do original”, “tentar alcançar o que o Khlebnikov realmente quis dizer”. Por isso, quebrando um pouco a ordem cronológica de nossa conversa, vou postar primeiro a versão em russo, que achei na Wikipédia, depois em português e finalmente em inglês:


«Заклятие смехом»

О, рассмейтесь, смехачи!
О, засмейтесь, смехачи!
Что смеются смехами, что смеянствуют смеяльно,
О, засмейтесь усмеяльно!
О, рассмешищ надсмеяльных — смех усмейных смехачей!
О, иссмейся рассмеяльно, смех надсмейных смеячей!
Смейево, смейево,
Усмей, осмей, смешики, смешики,
Смеюнчики, смеюнчики.
О, рассмейтесь, смехачи!
О, засмейтесь, смехачи!


“A encantação pelo riso”

Ride, ridentes!
Derride, derridentes!
Risonhai aos risos, rimente risandai!
Derride sorrimente!
Risos sobrerrisos - risadas de sorrideiros risores!
Hílare esrir, risos de sobrerridores riseiros!
Sorrisonhos, risonhos,
Sorride, ridiculai, risando, risantes,
Hilariando, riando,
Ride, ridentes!
Derride, derridentes!


O, laugh, laughers!
O, laugh out, laughers!
You who laugh with laughs, you who laugh it up laughishly
O, laugh out laugheringly
O, belaughable laughterhood - the laughter of laughering laughers!
O, unlaugh it outlaughingly, belaughering laughists!
Laughily, laughily,
Uplaugh, enlaugh, laughlings, laughlings
Laughlets, laughlets.
O, laugh, laughers!
O, laugh out, laughers!


Como eu havia dito, embora eu tenha traduzido alguma poesia para o esperanto e para a interlíngua, nunca fui um especialista no assunto, e o que respondi ao rapaz foi uma percepção baseada naqueles dois livros que citei inicialmente. A primeira coisa que notei de cara é que não há preocupação com métrica: essa despreocupação também passou às traduções. Segundo minha pesquisa na Wikipédia em russo, o poema original nasceu de uma técnica do Khlebnikov que consistia em formar famílias de neologismos a partir de um mesmo radical, o que achei semelhante a um famoso hábito de Guimarães Rosa. Por isso abundam prefixos, sufixos, mutações consonânticas e flexões... O russo é uma língua muito rica e frutífera nessas derivações, então ele pôde jogar inclusive com terminações de adjetivos, verbos etc., em suas várias pessoas e casos. Além de tudo as palavras são bem compridas, o que dá dinamismo à fala.

A sacada principal do poema foi jogar com três formas de um radical do russo que passa a ideia de “riso”, “graça”, e que se encontram nestas palavras: “смех” (smekh – riso), “смеяться” (smeiatsia – rir) е “смешно” (smeshno – engraçado). Assim, esses três radicais (smey-, smekh-, smesh-) se combinam com uma infinidade de prefixos e sufixos que dão os mais finos matizes de significado. Por exemplo, “рассмейтесь”, “смехачи”, “засмейтесь”, “смеянствуют”, “усмеяльно”, “рассмешищ”, “смейево”, “смеюнчики” etc.

Esses radicais e afixos promovem uma riqueza sonora que passa a ideia do riso, da zombaria, do fuxico, do sussurro, e que se dá essencialmente em torno das consoantes С (som de SS, especialmente em sua versão branda, palatizada; escute a palavra russa “семь”, com essa palatal), Х (que soa como o J espanhol) e Ш (versão dura do nosso CH). Acresçam-se também vários sufixos diminutivos em que aparecem as consoantes Ч (TCH) e Щ (versão branda do nosso CH; escute a palavra russa “щи”, com essa consoante), também chiantes. Acredito que a repetição das vogais Я (YA), Е (YE) e Ю (YU), além da semivogal Й (Y, como no inglês “yard” ou “say”), também ajuda no efeito.

Flexões ricas e palavras compridas são propriedades muito presentes no russo, um pouco menos no português e quase ausentes no inglês, e isso justifica a impressão do rapaz, para quem a versão nesta língua seria repetitiva e breve. Acredito que os três poemas também trabalham com os sons que cada língua considera característicos do riso: a concepção de russo e do português é mais consonântica, e a dos ingleses, mais vocálica, e acredito que com um toque de glotalismo. Por isso a versão em inglês fica limitada à combinação dos sons “ló”, “lóf”, derivada do único radical repetido (“laugh”), enquanto a versão em português nos oferece no máximo duas consoantes associadas ao riso e à zombaria (RR e Z), a partir de derivados de “rir” e “riso”. Como falei acima, o russo tem uma repetição de chiantes, sibilantes, fricativas e palatais inimitável em qualquer tradução.

Além da parte formal, ainda não falei do conteúdo. Afinal, como disse nosso amigo do Facebook, “Eu queria saber qual que se aproxima mais do original. Queria tentar alcançar o que o Khlebnikov realmente quis dizer”. De fato, logo após começar a consultar dicionários, eu desisti, pois quase todas as palavras estão ausentes de dicionários russos, e a saída dos tradutores deve ter sido, portanto, “inventar” eles também palavras novas em suas línguas para manter a graça do poema. A qualquer um que leia o poema em russo resta a alternativa de captar nos prefixos e sufixos as ideias de “início”, “dispersão”, “excesso”, “agentes”, “maneiras”, “propriedades”, enfim, combiná-las com a ideia mais geral de “riso” ou “graça” e ao menos entender o sentido global de cada palavra, e não tentar achar outras palavras que traduzam literalmente esses neologismos.

Portanto, de forma geral, as duas traduções estão “próximas” na semântica, mas o português consegue recriar um pouco mais que o inglês o efeito sonoro. Mesmo assim, na verdade os dois estão muito longe de recriar o efeito primário, e se o objetivo do leitor é buscar o que Khlebnikov quis dizer, que ele “largue mão”, como dizemos no interior de São Paulo: tradução não é transposição de palavras, mas interpretação (quase sempre subjetiva) do conteúdo da língua de chegada e recriação da forma na língua de partida. E ainda mais em poesia, geralmente o conteúdo é sacrificado em favor da forma. Por isso falei que na busca de tentar recriar as invenções neologísticas do russo, os dois autores acertaram, mas a língua russa tem vários aspectos formais que se mostraram irreproduzíveis: a riqueza de consoantes sibilantes, chiantes e palatais; a riqueza de prefixos e sufixos formadores de todas as classes de palavras e que dão vários matizes precisos de significado; a riqueza das terminações de caso, que permitem ampliar ainda mais os efeitos sonoros.



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