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As traduções de clássicos do pensamento sistemático mundial a partir de línguas bem diferentes em estrutura das euro-ocidentais (inglês, francês, espanhol, italiano, português) sempre levantaram muitas dificuldades e deram origem a mal-entendidos, especialmente no tocante ao vocabulário. Freud a partir do alemão deve ser o desafio mais conhecido, e também o mais rico em casos, dentre os quais cito apenas a polêmica distinção entre “cultura” e “civilização”. Até dizem por aí, também, que a virgindade de Maria teria se baseado em problemas de tradução dos textos sagrados do hebraico para o grego...
O russo não causa menos problemas, principalmente porque em vários domínios seu vocabulário é bem mais rico do que os das línguas euro-ocidentais, e só para “trabalho”, “trabalhador”, “escravo”, “batalha” e “lutador”, por exemplo, existem diversos sinônimos que ainda por cima, às vezes, fazem o favor de aparecer juntos em trechos bem curtos de texto! Na semana passada mesmo troquei alguns e-mails com Alvaro Bianchi, professor de ciência política da Unicamp, militante do PSTU, especialista e teórico da ideologia e prática trotskistas, a respeito de uma expressão que aparece em algumas traduções inglesas de textos de Leon Trotsky, e que Alvaro julgava ser a tradução errada de alguma expressão do alemão ou do russo.
Segue abaixo o essencial de sua primeira mensagem do dia 19 de fevereiro, com algumas adaptações, mas que nos ensina muita coisa interessante: “Trotsky escrevia em russo, obviamente, mas também era fluente em alemão e ocasionalmente escrevia em francês. O problema está com os textos do exílio mexicano, os quais eram vertidos para o inglês imediatamente e publicados nessa língua em revistas como New International, ou no jornal The Militant. Minha dúvida está com uma expressão que geralmente é traduzida por ‘nova classe média’. Ela aparece em dois textos publicados em inglês em 1938 e 1939 como ‘new middle classes’. Minha dúvida é se essa foi uma tradução exata. Em Marx é comum a expressão ‘Mittelstand’, que literalmente é camadas ou estratos médios. Com Marx as traduções em inglês cometem a impropriedade de traduzir ‘Mittelstand’ por ‘middle class’.”
“O erro pode ter se reproduzido com Trotsky. Na literatura alemã, particularmente nos textos de Kautsky, nos quais aparece pela primeira vez essa noção, a expressão utilizada é ‘neuen Mittelstand’. Em alguns textos de Trotsky que eu tenho certeza que foram imediatamente publicados em alemão (particularmente aqueles sobre o nazismo), a palavra usada é ‘neuen Mittelstand’ (ler o texto “Was Nun?”). Ele pode ter escrito esses textos em alemão ou revisado as traduções. Em outros, aparentemente traduzidos do inglês, a expressão utilizada é ‘neuen Mittelklassen’ (ler o texto “Neunzig Jahre Kommunistisches Manifest”). A resposta para a questão pode estar nas edições russas de Nossas tarefas políticas (ler a parte 3 em inglês) e de 1905 (ler o capítulo 4 em inglês), ambas existentes nas Sochinenia, as obras completas de Trotsky. Nas edições em inglês aparece a expressão ‘new middle classes’. Você faz ideia de qual é a palavra utilizada por Trotsky em russo nesses dois textos? Tem como descobrir isso?”
Na sequência, as ideias principais de minha resposta. Entre os dias 19 e 20, fiz uma pesquisa no Google e em páginas com obras de Trotsky em russo digitalizadas, e a primeira coisa que notei foi a citação, no prefácio em inglês de Nossas tarefas políticas que o Alvaro me indicou, de quão raro é achar essa obra em qualquer língua, por causa da contradição entre seu conteúdo político e a adesão posterior de Trotsky às fileiras bolcheviques. E de fato, mesmo procurando muito, não achei em russo nem essa obra, que de fato existe como uma brochura chamada Наши политические задачи [Nashi politicheskie zadachi], nem 1905.
Porém, combinei algumas palavras em russo também no Google com o que seria “nova classe média” em russo (“новый средний класс” [novy sredni klass]), e acabei chegando a obras de Trotsky que usavam o termo “новое среднее сословие” [novoye sredneie soslovie], sendo “сословие” [soslovie], pois, o termo em torno do qual gira a questão.
Segundo minhas consultas a dicionário e enciclopédia, “сословие” [soslovie] tem várias traduções, dentre as quais “classe” mesmo, “estamento”, “estado” (como em “terceiro estado”), “casta”, “grêmio”, “ofício”, “grupo” (por exemplo, na expressão “женское сословие” [zhenskoie soslovie], “o mulherio”), e acredito que se refira a um grupo mais fechado, que exige algum tipo de iniciação ou a posse de uma característica inata ou herdada, sendo que na Wikipédia o artigo em russo “Soslovie” remete ao português “Estamento”. Não conheço alemão para confirmar a equivalência com os termos que o Alvaro me indicou nessa língua, e lhe sugeri polidamente que talvez ele compreendesse melhor do que eu essa sociologia das “camadas” e “classes” ao longo da história.
Em todo caso, apontei-lhe ainda que nessa busca acabei caindo em outros escritos de Trotsky, e um deles que me chamou mais a atenção está no tomo 4 das Sochinenia, tomo que se chama “Ante um limiar histórico. Crônica política” e tem artigos dele relacionados a acontecimentos políticos entre 1900 e 1914. Como o Alvaro disse, vários desses artigos foram publicados em jornais estrangeiros e tiveram de ser traduzidos para o russo. Nesse tomo, há uma subdivisão chamada “Às vésperas da revolução” (referência à Revolução Russa de 1905), em que se encontram vários artigos publicados no Iskra (periódico de socialistas russos exilados do início do século 20) entre 1903 e 1905, e sete deles estão agrupados sob o título geral de “Cartas políticas”, embora eu não saiba o contexto geral de sua redação, nem por que receberam juntas esse título.
O referido artigo saiu no número 59 do Iskra de 10 de fevereiro de 1904 e tem o longo título “Новое ‘среднее сословие’. Выборы в Петербургскую думу. ‘Более или менее социалистическая’ демократия. ‘Оседло-образовательный’ ценз. Кто скажет последнее слово?”, traduzindo aproximadamente, “A nova ‘classe [soslovie] média’. Eleições para a Duma de São Petersburgo. Uma democracia ‘mais ou menos socialista’. Grau de ‘instrução-sedentarismo’. Quem dirá a última palavra?”. A tradução dos escritos dessa época é um tanto difícil, porque Trotsky se vale de um estilo muito peculiar, com ironias e repetições só compreensíveis naquele contexto. Porém, as primeiras palavras do artigo são as seguintes, muito sugestivas:
Русская “интеллигенция” дописывает последние страницы своей истории. Ее рост, развитие, упрочение ее позиций вызывают полное ее перерождение. Из своеобразного “ордена” с привлекательной романтической окраской она превращается в прозаическое “среднее сословие” буржуазного общества. В среднее сословие, ибо она стоит между крайними социальными классами, буржуазией и пролетариатом.Tradução aproximada:
A “intelligentsia” russa está concluindo a escrita da última página de sua história. Seu crescimento, desenvolvimento e o fortalecimento de suas posições estão provocando seu pleno renascimento. De algo semelhante a uma “ordem” com uma atraente coloração romântica, ela está se transformando numa prosaica “classe [soslovie] média” da sociedade burguesa. É uma classe [soslovie] média, pois se localiza entre as classes [klassami, instrumental plural de klass] sociais extremas, a burguesia e o proletariado.Como o paciente leitor deste blog deve ter notado, falei, falei, joguei inúmeras informações e no fim não dei nenhuma resposta pronta sobre a tradução da palavra russa “soslovie”. De fato, só notei isso ao terminar de transformar esta conversa em postagem, mas acredito que a resposta agradecida do Prof. Alvaro Bianchi já no fim da tarde do dia 20 deu o fecho que supre minha omissão involuntária: “Fiz outras consultas e cheguei à conclusão de que no início do século 20 a palavra ‘soslovie’ era utilizada na literatura marxista com o sentido de ‘estamento’ ou ‘casta’. Assim, parece-me que a melhor tradução para ‘новое среднее сословие’ [novoie sredneie soslovie] é ‘nova camada média’ ou ‘novos estamentos médios’. Quando se fala de classe burguesa ou classe operária, em russo o termo é sempre ‘класс’ [klass], e nunca ‘soslovie’.”
Coisas da vida, hehehe. Minha alegria só aumentou quando ele comunicou, por fim, que “Quando terminar de redigir a pequena nota na qual estou trabalhando te envio para dar uma olhada.” Vamos aguardar, quem sabe até eu não comunique algo a vocês quando sair!
Nota (29/5/2015): Um acadêmico, após ler esta postagem, enviou em meu e-mail pessoal alguns excertos de textos de Gregory L. Freeze, historiador da Rússia e professor da Universidade Brandeis, localizada em Waltham, perto de Boston, nos EUA. Um deles é o curto verbete “Soslovie”, da Encyclopedia of Russian History, publicado no site Encyclopedia.com. Outro é o artigo “The Soslovie (Estate) Paradigm and Russian Social History”, publicado na American Historical Review, vol. 91, n. 1 (Feb., 1986), pp. 11-36, e que pode ser visualizado e baixado na base de dados JSTOR, mas apenas em computadores de faculdades ou outras entidades cadastradas. Eu não tive tempo de ler a fundo os textos, mas quem quiser se aventurar, fique à vontade! Também agradeço ao amigo correspondente pelas dicas.
“Até a próxima postagem, amigos! Nos encontramos na revolução!”