Há uma escassez de textos de Trotsky, líder do Exército Vermelho durante a guerra civil russa de 1918-1921, anteriores a 1927 traduzidos em português. Quero começar a suprir tal falta agora, com esta tradução que fiz, aparecida pela primeira vez em português. De fato, esta breve carta, como outros escritos, estão reunidos nas Obras de Trotsky que pararam de ser publicadas na URSS em 1927, quando ele caiu em desgraça perante o regime de Stalin. A relação completa desses escritos em russo, organizados por tomo e por ordem alfabética de título, pode ser acessada aqui.
A carta intitulada “Atenção à teoria” (no original em russo, “Vnimanie k teorii”) foi originalmente enviada à redação da revista soviética Pod znamenem marksizma (Sob a Bandeira do Marxismo) e publicada em seu número 1-2 de janeiro-fevereiro de 1922, e posteriormente, em 1927, nas Sochinenia (Obras) de Trotsky, série VI (“Problemas da cultura”), tomo 21 (“Cultura do período de transição”). A referência mais famosa à carta se encontra no artigo “Sobre o significado do materialismo militante” (página em russo), de Vladimir Lenin, publicado no número 3 da referida revista e reproduzido no tomo 45 da 5.ª edição de suas Obras completas de 1986 (em português, ainda não digitalizado, no tomo 3 das Obras escolhidas em três tomos da Avante/Progresso e reimpressa no Brasil pela Alfa-Omega), em que corrobora todas as observações de Trotsky sobre a função da revista no contexto social soviético do início dos anos 1920.
A carta de Trotsky inicialmente elogia a fundação da revista filosófica e socioeconômica Pod znamenem marksizma (1) e ressalta como estava sendo fácil pra juventude da época, formada sob os auspícios do Estado soviético recém-fundado, receber pronta a doutrina marxista, quando os velhos militantes a haviam assimilado com muita dificuldade, sendo perseguidos pelo tsarismo e refinando seu conhecimento com a prática real de lutas. Trotsky também destaca a importância de se enraizar fortemente a formação materialista entre os jovens, especialmente os proletários, pra que as turbulências políticas não desorganizassem suas mentes nem os atraíssem pra doutrinas contrárias ao marxismo. Por fim, apologiza a destruição das velhas concepções mágicas do mundo e parabeniza a fundação da revista, esperando que ela servisse ativamente nesse trabalho educacional revolucionário entre a juventude soviética.
Foram mantidas as notas explicativas contidas nas Obras em russo, com sua numeração original, acrescidas de observações do tradutor em casos de necessidade. Uma das inúmeras cópias do original em russo (esta fiel à impressão de 1927) pode ser lida aqui. Há também uma tradução em inglês, provavelmente com algumas passagens duvidosas, publicada no site The Platypus Affiliated Society e reproduzida também no blog The Charnel House.
Caros camaradas!
A ideia da publicação de uma revista que introduzisse a juventude proletária de vanguarda à esfera da concepção materialista do mundo parece-me extremamente valiosa e fecunda.
A geração mais velha de operários comunistas que desempenha hoje um papel dirigente no Partido e no país despertou para a vida política consciente há 10, 15, 20 anos ou mais. Sua reflexão iniciava o trabalho crítico com a polícia do tsar, com o apontador e o contramestre, subia até o tsarismo e o capitalismo e em seguida, no mais das vezes na prisão ou no exílio, orientava-se para questões de filosofia da história e do conhecimento científico do mundo. Assim, antes de atingir as questões mais importantes da explicação materialista do desenvolvimento histórico, o proletário revolucionário já conseguira reunir certo número de conclusões gerais que se expandiam cada vez mais do particular ao geral, baseado em sua própria experiência real de lutas. O jovem operário de hoje desperta no ambiente do Estado soviético, que é por si só uma crítica viva do velho mundo. Aquelas conclusões gerais, às quais a geração mais velha de operários chegava com muito custo e que se fixavam na consciência com os pregos firmes da experiência pessoal, atualmente são passadas aos operários da geração mais nova de forma pronta, diretamente das mãos do Estado em que vivem e do Partido que o dirige. É claro que isso representa um gigantesco passo adiante no sentido da criação dos requisitos para a futura educação política e teórica dos trabalhadores. Mas ao mesmo tempo, nesta etapa histórica incomparavelmente mais avançada, atingida pelo trabalho das gerações mais velhas, surgem novas tarefas e dificuldades para as jovens gerações.
O Estado soviético é uma negação viva do velho mundo, de sua ordem social, de suas relações pessoais e de suas concepções e crenças. Mas ao mesmo tempo esse Estado ainda está repleto de contradições, de falhas, de incoerências, de uma efervescência confusa – numa palavra, de fenômenos em que os restos do passado se entrelaçam com os germes do futuro. Numa época tão crucial, crítica e instável como a nossa, a educação da vanguarda proletária exige bases teóricas firmes e fortes. Para que os grandiosos acontecimentos, os poderosos ascensos e refluxos e as rápidas mudanças de tarefas e métodos no Partido e no Estado não desorganizem a mente do jovem operário nem quebrantem sua vontade mesmo antes de ele iniciar seu trabalho responsável independente, é indispensável munir seu pensamento e sua vontade com o método da concepção materialista do mundo.
Munir a vontade, e não somente o pensamento, dizemos, porque em tempos de enormes abalos mundiais, mais do que nunca, nossa vontade só se fortalece e se torna indestrutível sob a condição de apoiar-se na compreensão científica das condições e causas do desenvolvimento histórico.
Por outro lado, justamente em tempos cruciais como esses, especialmente o nosso, se ele arrastar-se longamente, isto é, se o ritmo dos eventos revolucionários no Ocidente mostrar-se mais vagaroso do que o esperado, potencializam-se ao extremo as tentativas das diversas escolas e seitas filosóficas idealistas e semi-idealistas de apoderar-se da consciência da juventude operária. Pegas de surpresa pelos acontecimentos – sem a rica experiência prévia da prática nas lutas de classe –, as mentes dos jovens operários podem mostrar-se indefesas às diversas doutrinas idealistas, que não são nada mais do que a tradução dos dogmas religiosos para uma linguagem pseudofilosófica. Todas essas escolas, apesar das diversas denominações idealistas, kantianas, (2) empiriocriticistas (3) e outras, no fim das contas convergem ao afirmar que a consciência, o pensamento, a cognição precede a matéria, e não o contrário.
A missão da educação materialista da juventude operária consiste em revelar-lhe as leis fundamentais do desenvolvimento histórico, sendo a mais importante delas aquela segundo a qual a consciência humana não constitui um processo psicológico livre e independente, mas uma função da base material econômica, isto é, a ela serve e por ela é determinada.
A subordinação da consciência aos interesses e relações de classe, e destes à organização econômica, torna-se mais notável, aberta e rude apenas em tempos revolucionários, em cuja insubstituível experiência nós devemos ajudar a juventude operária a fixar em suas consciências os fundamentos do método marxista. Mas isso não é tudo. As origens históricas e econômicas da própria sociedade humana moderna encontram-se no mundo histórico-natural. O homem moderno deve ser visto como o elo de toda uma evolução que começa na primeira célula orgânica, gerada, por sua vez, no laboratório da natureza, onde atuam as propriedades físicas e químicas da matéria. Quem aprendeu a examinar com olhos tão límpidos o passado do mundo, aí inclusas a sociedade humana, os reinos animal e vegetal, o Sistema Solar e os infinitos sistemas ao seu redor, não se disporá a procurar as chaves para o conhecimento dos segredos do Universo em decrépitos livros “sagrados” e suas fábulas filosóficas de uma infantilidade primária. E quem não reconhece a existência de forças místicas celestes capazes de interferir na vida pública e privada e de orientá-la para esta ou aquela direção, quem não acredita que a miséria e o sofrimento serão altamente recompensados em outro mundo, tem os pés mais firmes e fortes na terra e buscará nas condições materiais da sociedade, com mais coragem e confiança, as bases de seu trabalho criador. A concepção materialista do mundo não só abre uma ampla janela para todo o Universo, mas também fortalece a vontade. Ela é a única que humaniza o homem moderno, o qual ainda depende, é claro, das rígidas condições materiais, mas já sabe como superá-las e participa conscientemente da construção de uma nova sociedade fundada simultaneamente na mais elevada técnica e na mais elevada solidariedade.
Dar uma educação materialista à juventude proletária é nossa maior missão. Faço votos sinceros de sucesso a vossa revista desejosa de tomar parte nesse trabalho educacional.
Saudações comunistas e materialistas,
27 de fevereiro de 1922
Notas da redação das Obras de Trotsky
(1) [Nota 72 das Obras, inserida pouco antes do início do texto] Pod znamenem marksizma [Sob a Bandeira do Marxismo] – revista filosófica e socioeconômica mensal publicada pela editora do jornal Pravda e cujo número 1-2 saiu em março de 1922. A revista tem como objetivo [ela foi publicada até junho de 1944 – N.T.] a reunião dos marxistas que sustentam a consequente visão materialista em questões fundamentais de filosofia, ciências sociais e ciências naturais. No número 3 (março de 1922) apareceu o artigo de Lenin “Sobre o significado do materialismo militante” [trechos extraídos da tradução portuguesa das Obras Escolhidas de Lenin publicadas pela Editora Progresso e pela Editora Avante – N.T.]: ressaltando ao início que “O camarada Trotsky disse já tudo o que é essencial, e disse muito bem, sobre as tarefas gerais da revista [...] no n.º 1-2”, Lênin diz em seguida que a revista “deve ser, em primeiro lugar, um órgão combativo no sentido do desmascaramento e da perseguição incansável de todos os atuais ‘lacaios diplomados do clericalismo’ [filósofos idealistas – nota da redação das Obras de Trotsky], quer atuem na qualidade de representantes da ciência oficial quer na qualidade de franco-atiradores que a si próprios se chamam publicistas ‘democratas de esquerda ou ideologicamente socialistas’ [...] deve dedicar muito espaço à propaganda ateísta, à recensão da literatura respectiva, e corrigir as enormes insuficiências do nosso trabalho estatal neste domínio.” “É especialmente importante”, prossegue Lenin, “utilizar livros e brochuras que contenham muitos fatos concretos e comparações que mostrem os laços entre os interesses de classe e as organizações de classe da burguesia moderna e as organizações das instituições religiosas e da propaganda religiosa.” Aprovando totalmente a linha adotada pela redação da revista de aproveitar o trabalho dos materialistas não comunistas, Lenin ressalta que “Além da aliança com os materialistas consequentes que não pertençam ao partido dos comunistas, não é menos importante, mas talvez ainda mais, para o trabalho que o materialismo militante deve realizar, a aliança com os representantes das ciências modernas [...]”. Finalizando, Lenin conclama os colaboradores da revista a organizar “o estudo sistemático da dialética de Hegel do ponto de vista materialista, isto é, da dialética que Marx aplicou praticamente [...]”.
(2) [Nota 73 das Obras] Kant – ver tomo 20, nota 76. [A referida nota, pertencente ao artigo “Russki Darvin” (“O Darwin russo”), resume brevemente as teses das principais obras de Kant e cita os nomes de alguns críticos marxistas de suas ideias – N.T.]
(3) [Nota 74 das Obras] Empiriocriticismo – corrente filosófica fundada pelo filósofo alemão Richard Avenarius e pelo físico austríaco Ernst Mach, independentes entre si, nos anos 1890 e 1900 (somente Avenarius emprega o termo “empiriocriticismo” para designar suas posições). Essa corrente tinha como objetivo “superar” a oposição entre materialismo e idealismo e retornar a uma visão “natural” do mundo, mas na prática ela apenas reaviva, num formato renovado, as velhas falácias idealistas dos filósofos ingleses do século XVIII Berkeley e Hume. Em sua época, o empiriocriticismo exerceu grande influência sobre vários marxistas russos ([Aleksandr] Bogdanov, [Anatoli] Lunacharski, [Pavel] Iushkevich e outros) que tentaram conciliar as visões de Avenarius e Mach com o materialismo econômico. Essas tentativas sofreram fortes críticas da parte de [Georgi] Plekhanov, Lenin, [Abram] Deborin, [Liubov] Axelrod e outros.
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