domingo, 3 de agosto de 2014

“Socialismo e religião” (Vladimir Lenin)


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Breve introdução (Erick Fishuk)

Eu gosto de estudar o comunismo internacional, principalmente o regime soviético e os regimes europeus do “socialismo real” erigidos em 1945. Sempre me interessei pelo pensamento de Vladimir Ilich Ulianov, ou Lenin, porque sendo o fundador da União Soviética, certamente me forneceria alguma pista sobre a inspiração desses Estados. Também gosto, no líder bolchevique, de sua enorme capacidade mental, de sua relativa teimosia, de sua firmeza em meio às adversidades e, acima de tudo, de sua aspiração sincera por um mundo melhor e mais justo, ainda que tivesse cometido excessos em sua política, alguns, confessemos, inevitáveis, outros nem tanto. Mas poucos condutores de massas conseguirão superar a quantidade e a qualidade de seus escritos, por constituírem autêntico conhecimento fresco extraído da prática imediata.

A visão comum é a de um Lenin perseguidor de religiosos, como o seria Stalin em determinado período de seu governo e como o seriam igualmente os outros chefes soviéticos do início dos anos 1960 até Gorbachov. De fato, a Revolução de Outubro de 1917 suprimiu a liberdade de vários clérigos ortodoxos, mas deve-se lembrar que o momento era de reação a um regime opressor e ineficiente, e a Igreja russa constituía uma peça do aparelho de Estado tsarista. Mas “Socialismo e religião”, embora repita o velho chavão “A religião é o ópio do povo”, mostra alguém atento realisticamente à impregnação da fé em sua sociedade, especialmente no proletariado, e ao quanto setores clericais supostamente insatisfeitos com o controle estatal de seus assuntos poderiam acatar a separação entre Igreja e Estado e a declaração da religião como assunto privado. Em suma, mesmo sendo um ateu militante, Lenin, teoricamente e a princípio, opta pela liberdade de expressão e de consciência de todos aqueles que decidissem apoiar os socialistas em sua luta contra a tirania, mesmo se sustentassem visões de mundo distintas das da pretensa vanguarda revolucionária.

O artigo “Socialismo e religião” (título original: “Sotsializm i religia”), de autoria de Lenin, foi publicado primeiramente no número 28 da revista Novaia Zhizn (Nova Vida), em 3 de dezembro de 1905. A primeira versão em português (que eu conheço, claro), sem qualquer referência ao tradutor, saiu no site Marxists.org, extraída do site do PCO. Notando que a tradução tinha algumas inadequações, especialmente falta de fluidez, e percebendo a importância do artigo, decidi começar a corrigi-la por conta própria, trabalho iniciado por volta de março de 2011, mas, constantemente interrompido e por muito tempo paralisado, concluído somente por volta de outubro. Em meados de 2012, o administrador do Marxists.org em português substituiu a versão do PCO pela minha versão, mas aquela primeira já tinha sido copiada por inúmeros outros blogueiros, portanto o link levará à postagem do ótimo blog “O inverso do contraditório” que tem essa versão antiga. Parece que agora o PCO reproduziu a minha versão, mas publicou algumas notas a mais. Pode-se ter acesso neste link a uma das inúmeras páginas com o texto de partida em russo.

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A sociedade contemporânea baseia-se toda na exploração das enormes massas operárias por uma minoria insignificante da população, pertencente às classes dos proprietários de terras e dos capitalistas. Essa sociedade é escravista, pois os operários “livres”, que trabalham a vida toda para o capital, “têm direito” apenas aos meios de subsistência indispensáveis para sustentá-los como escravos produtores do lucro e para assegurar e perpetuar a escravidão capitalista.

A opressão econômica dos operários gera inevitavelmente todas as formas de opressão política, de humilhação social, de embrutecimento e obscurecimento da vida espiritual e moral das massas. Os operários podem alcançar uma liberdade política maior ou menor para lutar por sua libertação econômica, mas nenhuma liberdade os livrará da miséria, do desemprego e da opressão enquanto não for derrubado o poder do capital. A religião é uma das formas de opressão espiritual que pesa em toda parte sobre as massas esmagadas por seu perpétuo trabalho para outros, pelas privações e pelo isolamento. A impotência das classes exploradas na luta contra os exploradores gera tão inevitavelmente a fé numa vida melhor após a morte como a impotência dos selvagens na luta contra a natureza gera a fé em deuses, diabos, milagres etc. Àquele que toda a vida trabalha e passa necessidades, a religião ensina a resignação e a paciência na vida terrena, consolando-o com a esperança da recompensa celeste. E àqueles que vivem do trabalho alheio, a religião ensina a filantropia na vida terrena, propondo-lhes uma justificação muito barata para sua existência de exploradores e vendendo-lhes a preço módico bilhetes para a felicidade celestial. A religião é o ópio do povo. A religião é uma espécie de aguardente espiritual ruim na qual os escravos do capital afogam sua imagem humana e suas reivindicações de uma vida minimamente digna.

Mas o escravo que se deu conta de sua escravidão e se ergueu para a luta por sua libertação já deixou pela metade de ser escravo. O operário consciente moderno, formado pela grande indústria fabril e esclarecido pela vida urbana, repele com desprezo os preconceitos religiosos e deixa o céu à disposição dos popes (1) e dos carolas burgueses, conquistando uma vida melhor aqui na terra. O proletariado moderno põe-se ao lado do socialismo, que se vale da ciência na luta contra o nevoeiro religioso e liberta os operários da fé na vida após a morte por meio de sua arregimentação para uma verdadeira luta por uma vida terrena melhor.

A religião deve ser declarada um assunto privado – com essas palavras se exprime habitualmente a atitude dos socialistas perante a religião. Mas é preciso definir com exatidão o significado dessas palavras para que elas não causem nenhum mal-entendido. Exigimos que a religião torne-se um assunto privado em relação ao Estado, mas não podemos de modo algum considerar a religião um assunto privado em relação a nosso próprio partido. O Estado não deve manter conúbio com a religião, e as sociedades religiosas não devem ligar-se ao poder estatal. Cada um deve ser absolutamente livre para professar qualquer religião ou para não reconhecer nenhuma, isto é, para ser ateu, o que todo socialista geralmente é. São absolutamente inadmissíveis quaisquer diferenças entre os cidadãos quanto a seus direitos conforme suas crenças religiosas. Deve ser totalmente eliminada até mesmo qualquer referência à religião dos cidadãos em documentos oficiais. Não deve haver qualquer subvenção a uma Igreja estatal nem qualquer pagamento de somas do Estado a sociedades eclesiásticas e religiosas, que devem tornar-se associações de cidadãos correligionários absolutamente livres e independentes das autoridades. Só a satisfação plena dessas reivindicações pode acabar com aquele passado vergonhoso e maldito em que a Igreja se encontrava numa dependência servil em relação ao Estado e em que os cidadãos russos se encontravam numa dependência servil em relação à Igreja estatal, em que existiam e eram aplicadas leis medievais e inquisitoriais (que ainda hoje permanecem nos nossos códigos e regulamentos penais) que perseguiam pessoas pela sua fé ou descrença, que violavam a consciência do indivíduo e que vinculavam sinecuras e rendimentos públicos à distribuição de uma ou outra “drogas” pela Igreja estatal. Completa separação entre Igreja e Estado – eis a reivindicação que o proletariado socialista apresenta ao Estado e à Igreja atuais.

A revolução russa deve realizar essa reivindicação como um componente indispensável da liberdade política. Nesse aspecto, a revolução russa situa-se em condições particularmente vantajosas, pois o abominável burocratismo da autocracia policial-feudal causou descontentamento, agitação e indignação até mesmo entre o clero. Por mais embrutecido, por mais ignorante que fosse o clero ortodoxo russo, até ele foi agora acordado pelo estrondo da queda da velha ordem medieval na Rússia. Até ele adere à reivindicação de liberdade, protesta contra o burocratismo e a arbitrariedade dos funcionários públicos e contra a fiscalização policial imposta aos “servos de Deus”. Nós, socialistas, devemos apoiar esse movimento, levando a cabo as reivindicações dos membros honestos e sinceros do clero, cumprindo as promessas de liberdade que lhes fizemos e exigindo deles que rompam decididamente todos os laços entre a religião e a polícia. Ou vocês são sinceros, e então devem defender a completa separação entre Igreja e Estado, entre escola e Igreja, e a completa e incondicional declaração da religião como um assunto privado; ou vocês não aceitam essas consequentes reivindicações de liberdade, e então quer dizer que ainda são prisioneiros das tradições da Inquisição, então quer dizer que ainda se encostam às sinecuras e rendimentos públicos, então quer dizer que vocês não acreditam na força espiritual de sua arma, continuam a extorquir o poder estatal – então os operários conscientes de toda a Rússia declarar-lhes-ão uma guerra implacável.

Em relação ao partido do proletariado socialista, a religião não é um assunto privado. Nosso partido é uma associação de combatentes conscientes e de vanguarda pela libertação da classe operária. Essa associação não pode nem deve ser indiferente à inconsciência, à ignorância ou ao obscurantismo das crenças religiosas. Reivindicamos a completa separação entre Igreja e Estado para lutar contra o nevoeiro religioso com armas tão-somente ideológicas, com nossa imprensa e com nossa voz. Mas nós fundamos nosso partido, o POSDR, (2) entre outras coisas, precisamente para essa luta contra o entontecimento religioso dos operários. E para nós a luta ideológica não é um assunto privado, mas um assunto de todo o partido e de todo o proletariado.

Se é assim, por que não declaramos em nosso programa que somos ateus? Por que não proibimos os cristãos e os que acreditam em Deus de entrar em nosso partido? A resposta a essa pergunta deve esclarecer a importantíssima diferença entre a maneira democrático-burguesa e a social-democrata de colocar a questão da religião.

Nosso programa baseia-se todo numa concepção científica, a saber, materialista do mundo. Por isso, o esclarecimento de nosso programa necessariamente inclui também o esclarecimento das verdadeiras raízes históricas e econômicas do nevoeiro religioso. Nossa propaganda também inclui necessariamente a propaganda do ateísmo; a edição da literatura científica correspondente, que o poder estatal autocrático-feudal rigorosamente proibia e perseguia até agora, deve atualmente constituir um dos ramos de nosso trabalho partidário. Teremos agora, provavelmente, de seguir o conselho que Engels deu certa vez aos socialistas alemães: traduzir e difundir maciçamente a literatura iluminista e ateísta francesa do século 18. (3)

Mas ao fazê-lo jamais devemos cair no modo abstrato e idealista de colocar a questão religiosa “a partir da razão”, fora da luta de classes, como não raro é feito pelos democratas radicais da burguesia. Seria um absurdo pensar que, numa sociedade baseada na opressão e no embrutecimento infindáveis das massas operárias, pode-se dissipar os preconceitos religiosos unicamente por meio da propaganda. Seria estreiteza burguesa esquecer que o jugo da religião sobre a humanidade é apenas produto e reflexo do jugo econômico que existe dentro da sociedade. Nenhum livrete ou propaganda pode esclarecer o proletariado se sua própria luta contra as forças obscuras do capitalismo não o esclarecer. A unidade dessa luta realmente revolucionária da classe oprimida pela criação do paraíso na terra é mais importante para nós do que a unidade de opiniões dos proletários sobre o paraíso no céu.

Eis por que não declaramos nem devemos declarar nosso ateísmo em nosso programa; eis por que não proibimos nem devemos proibir aos proletários que conservaram vestígios dos velhos preconceitos de aproximar-se de nosso partido. Sempre pregaremos a concepção científica do mundo, e é indispensável que lutemos contra a incoerência dos “cristãos”, mas isso não significa de modo algum que se deva pôr a questão religiosa em primeiro lugar, o qual de maneira alguma lhe pertence, nem que se deva permitir a dispersão das forças da luta econômica e política realmente revolucionária por causa de opiniões ou delírios insignificantes que perdem rapidamente todo significado político e são rapidamente jogados no ferro-velho pelo próprio curso do desenvolvimento econômico.

Em toda parte a burguesia reacionária inquietou-se e começa agora também em nosso país a buscar atiçar a hostilidade religiosa, a fim de desviar para ela a atenção das massas voltadas às questões econômicas e políticas realmente importantes e fundamentais, as quais o proletariado de toda a Rússia, praticamente unido em sua luta revolucionária, está agora resolvendo. Essa política reacionária de dispersão das forças proletárias, que hoje se manifesta principalmente nos pogroms das Centúrias Negras, (4) talvez pense amanhã em outras formas mais refinadas. Nós, em todo caso, opor-lhe-emos uma propaganda tranquila, sóbria e paciente da solidariedade proletária e da concepção científica do mundo, livre de todo atiçamento de divergências secundárias.

O proletariado revolucionário conseguirá tornar a religião um assunto realmente privado para o Estado, e nesse regime político depurado do bolor medieval, travará uma luta forte e aberta pela eliminação da escravidão econômica, verdadeira fonte do entontecimento religioso da humanidade.


Notas (clique no número pra voltar ao texto)

(1) Sacerdotes ortodoxos. (N.T.)

(2) Partido Operário Social-Democrata da Rússia, que futuramente se tornaria o Partido Comunista soviético. (N.T.)

(3) Ver artigo de Friedrich Engels, “Programa dos Refugiados Blanquistas da Comuna” (artigo II da série “Literatura de Refugiados”). [N.T.: O artigo pode ser encontrado em português em Karl Marx e Friedrich Engels, Obras escolhidas em três tomos, tomo II, Lisboa, Avante; Moscou, Progresso, 1983, pp. 411-418. A referência citada está na p. 415. A mesma versão ainda está na rede nesta página.]

(4) Movimento paramilitar ultranacionalista e xenófobo que suportava o regime tsarista contra os movimentos revolucionários de oposição. (N.T.)



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