Há alguns dias, o sr. Otoni Rodrigues da Silveira, ex-advogado e ocupado de forma amadora com interessantes trabalhos sobre a história de Cabreúva, SP, sua cidade natal, e da região circundante, me mandou uma afável mensagem após ter lido minha publicação com a origem e a tradução da Marcha de San Lorenzo, peça marcial muito importante pra memória argentina. Dentre os escritos memorialísticos que costuma publicar ou deixar guardados como anotações, ele me enviou este e gentilmente me permitiu publicá-lo, chamado “A Marcha San Lorenzo”, narrando o encontro com essa música em sua juventude nos anos 60. O sr. Otoni também me agradeceu e me parabenizou pela antiga publicação nesta página, que o teria ajudado a enriquecer suas anotações (“rabiscos”, como ele chama).
Segue a agradável reflexão, que revela não só a fama que a Marcha de San Lorenzo alcançou ao redor do mundo, mas também uma instrutiva história de como as bandas e fanfarras foram importantes pra cultura popular do interior de SP. Inclusive, na escola da capital onde minha mãe dava aula, ainda há uma ótima fanfarra que ganhou vários prêmios municipais. Fiz apenas algumas adequações na formatação, já que o sr. Otoni, autor do já publicado Cabreúva, História e Contexto (2015), se revela um escritor muito culto e primoroso.
A Marcha San Lorenzo é uma belíssima marcha militar argentina, que se tornou muito conhecida no continente europeu e, por isso, faz parte do repertório de muitas bandas militares de diversos países. No Brasil, além das bandas militares, ela também fez parte do repertório de bandas do interior paulista, numa época em que essas bandas faziam parte do cotidiano da vida de nossas cidades. Mesmo em nossas pequenas cidades, era comum haver duas bandas de música. Aquela realidade, aliás, inspirou o então jovem Chico Buarque de Hollanda a compor sua célebre marchinha, que se tornou antológica, seu primeiro grande e retumbante sucesso.
Aqui em Cabreúva, por exemplo, na década de 60, quando sua população ainda não atingia seis mil habitantes (Itu beirava 40 000), havia duas bandas de música, que se revezavam (e se rivalizavam, como já ocorria na primeira década do século, quando Tonico Mafalda, pai de Erothides de Campos, era o maestro de uma delas). E a Marcha San Lorenzo fazia parte das datas festivas.
Essa festejada marcha militar foi composta no ano de 1901 por Cayetano Alberto Silva, curiosamente um uruguaio, afrodescendente, que mais tarde obteria a cidadania argentina. Estreou no dia 30 de outubro de 1902, na inauguração de um monumento do General San Martín, na província de Santa Fe. No ano de 1907, em face de sua grande aceitação, ela recebeu letra escrita pelo poeta Carlos Javier Benielli.
A música e a letra foram inspiradas na Batalha de San Lorenzo, na cidade de igual nome, na referida província, que ocorreu no dia 3 de fevereiro de 1813. Vale lembrar que a independência da Argentina formalmente ocorreu no dia 25 de maio de 1810, aliás abrangendo um território maior, mas somente se consolidaria no ano de 1825. Houve muita resistência dos espanhóis. Naquela batalha, após sofrer uma queda de seu cavalo, o General San Martín foi socorrido pelo soldado Juan Bautista Cabral, que acabaria morto e se tornaria herói. Na Argentina, a marcha é interpretada como autêntico hino pátrio. É sempre presente nas datas cívicas.
Erick Fishuk, historiador pela Unicamp, interessou-se pelo tema e, nesse labor, interessou-se também pela história da marcha. Aliás, ele traduziu a letra para o vernáculo. A Marcha San Lorenzo foi interpretada por uma banda militar alemã, quando os nazistas, a 14 de junho de 1940, ocuparam Paris. Não por acaso, ela também foi interpretada quatro anos depois, por ordem de Eisenhower, quando as tropas aliadas a reconquistaram.
Voltemos à nossa região, aos anos 60 e às nossas bandas de música.
O ano era 1963. Era uma bela manhã dominical em Itu, programada para a realização do desfile inaugural da Exposição Agropecuária e Industrial. O ponto de partida era a Praça Conde de Parnaíba, o Largo do Liceu. Meus saudosos amigos Dirceu Cano, Francisco de Assis dos Santos e eu fomos a Itu. O Dirceu era uma pessoa extrovertida, uma companhia sempre divertida. O Chiquinho foi meu colega profissional por dez anos e um de meus melhores amigos aqui em Cabreúva.
Para melhor acompanhar, posicionamo-nos no jardim do Largo do Carmo bem diante do portão do Seminário do Carmo, que no final daquela década receberia a Faculdade de Direito de Itu. Após algum tempo, dentro do horário programado, ouve-se o som de uma banda de música a anunciar o início do desfile. Pouco demorou, e pudemos reconhecer que era interpretada a Marcha San Lorenzo. Quando a banda se aproximava da esquina da Floriano Peixoto, ouvia-se o tema final, uma bela e reflexiva melodia, talvez um andante cantábile (não sou músico), que parece retratar a morte do soldado Carlos Javier Benielli, o que, aliás, se confirma na letra que a marcha recebeu. O tema, bastante curto, recebe um expressivo toque militar e, em seguida, faz-se repetir.
O som que se ouvia era primoroso. Meu amigo Dirceu opinou: “Deve ser a Banda da Força Pública”. Meu amigo Chiquinho discordou: “Acho que é a Banda da Guarda Civil. Ela possui uma sonoridade mais agradável”. Eis que, passados poucos segundos, saindo da Floriano para entrar no Largo do Carmo, surge garbosamente a “União dos Artistas”, com 11 fileiras de quatro músicos!!! O maestro Anísio Belculfinè não se colocava na frente. Estava com o bombo, como frequentemente o fazia nas imponentes procissões religiosas daquela época.
Dois anos mais tarde, a “União dos Artistas” participou de um certame nacional de bandas de música em São Paulo, patrocinado pela TV Tupi. Cumprida a fase em que as bandas, isoladamente, apresentaram um concerto, houve a prova final, ocorrida numa tarde de sábado, no Vale do Anhangabaú. Após cada banda interpretar um número, foi chamada a banda ituana, anunciada como a vencedora. Ainda era o tempo do preto e branco. Surge uma pessoa de pequeno porte físico e se joga sobre o maestro, como a comemorar um gol dentro do campo! Se minha memória visual não me trai, era o político Galileu Bicudo, então deputado estadual...
Proclamada vencedora, a banda ituana interpreta a Marcha San Lorenzo. Reconhecido por sua sensibilidade musical, certamente o maestro Anísio tinha consciência de que, quando com formação completa, sua banda conseguia dar uma interpretação excelente a essa premiada marcha militar argentina. De minha parte, diria que, em particular em seu tema final, era insuperável na reprodução do sentimento dos autores da música e da letra.
Adendo: Segue abaixo parte da última mensagem sobre si que o sr. Otoni me enviou, após eu lhe ter pedido (e agora obtido) autorização pra publicar o texto que você acabou de ler.
Em 2006, publiquei um livro de memórias, não a meu respeito, mas com descrições, relatos, relatos-crônicas e crônicas acerca do minúsculo centro urbano de Cabreúva, de minha infância e adolescência (1950-63). No ano da publicação, as histórias tinham uma média de 50 anos. Hoje, algumas já completaram 70. Portanto, já fazem parte da História local.
Em 2008, esbocei um modesto ensaio para Música e Nacionalidade. Fugi do termo nacionalismo, pois nos últimos tempos ele adquiriu um sentido dúbio. Não possuía notebook; por isso, usei a datilografia. Estou digitando os poucos capítulos escritos. Interrompi esse ensaio, para as minuciosas pesquisas de fonte primária acerca da história de Cabreúva, que me permitiram os dois volumes de Cabreúva, História e Contexto, editados em 2015.
Fiquei alguns anos sem nada escrever. A partir do ano passado [2021], fiz algumas releituras de minhas pesquisas, ensejando alguns textos novos, fruto de um intercâmbio com uma professora de história e pesquisadora amiga, que esteve à frente da Secretaria Municipal de Cultura. Paralelamente, sempre que dá vontade, escrevo algumas quase-crônicas. Tornei-me um ex-advogado.
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