quarta-feira, 31 de maio de 2023

“A Internacional Tuvana” (1921-44)

Só após traduzir Tooruktuğ dolgay tañdım (A floresta cheia de pinhões), hino nacional da República Popular de Tuva (Tıva Arat Respublik) que na verdade vigorou por muito pouco tempo – depois, o pequeno país foi anexado à URSS, apesar da canção seguir em uso –, descobri que na maior parte de sua existência, a nação socialista usou como hino nacional a canção Tıva İnternatsional (A Internacional Tuvana), que não é uma tradução nativa da famosa Internacional, mas um poema próprio executado numa melodia folclórica. Pra você ter noção, quase não há referência a sua composição na internet, nem mesmo em língua russa, da mesma forma que a efêmera República de Tuva quase não deixou registros fonográficos ou filmados. A única versão da Wikipédia que relata sua origem e dá uma tradução numa língua euro-ocidental é em inglês, e curiosamente nem sequer sobre Tooruktuğ dolgay tañdım há um verbete na Wikipédia em russo.

Mesmo na Wikipédia em inglês, a única fonte citada sobre a canção, mas sem menção a páginas, é o volume 1 do livro Where Rivers and Mountains Sing: Sound, Music, and Nomadism in Tuva and Beyond, escrito por Theodore Levin “com” Valentina Süzükei e publicado nos EUA em 2010. A melodia é mencionada como “tradicional”, e nem na Wikipédia, nem em qualquer outro lugar, há alusões ao possível autor da letra. Segundo o site, A Internacional Tuvana foi usada de 1921 a 1944, e apesar do título, não é uma tradução poética da famosa canção operária A Internacional, escrita em francês no século 19 e cuja tradução poética em russo de Arkadi Kots foi o hino da URSS até 1944. Curiosamente, a referência da Internacional original é à Primeira Internacional na qual os próprios Karl Marx e Friedrich Engels atuaram e combateram Mikhail Bakunin e outros anarquistas, enquanto A Internacional Tuvana é dos raros hinos com esse nome cuja referência explícita é à Terceira Internacional, comunista, fundada por Lenin e também chamada “Comintern”.

Além da própria Rússia/URSS, a partir da década de 1920 apenas a Mongólia e Tuva (Tannu Tuva até 1926), países recém-criados e de culturas muito semelhantes, tinham conseguido implantar regimes socialistas, e por isso mesmo as duas últimas repúblicas dependiam praticamente em tudo da irmã mais que maior. E justamente em homenagem a ela, também adotaram hinos nacionais chamados A Internacional Tuvana e A Internacional Mongol, esta usada de 1924 a 1950 e que era igualmente uma canção toda nova, aludindo à Comintern. Havia, de fato, uma verdadeira tradução poética mongol da Internacional, mas não em tuvano, até onde eu saiba, e podemos pensar que não faria sentido manter hinos com referências à 3.ª Internacional após ela ter sido extinta por ordem monocrática de Stalin em 1943. Não por menos, quando o país foi anexado pela URSS durante a 2.ª Guerra Mundial, Tooruktuğ dolgay tañdım continuou usada pelo agora Oblast Autônomo de Tuva (cujas fronteiras não correspondiam exatamente às da antiga nação), dentro da RSFS da Rússia, e depois, quando foi promovida a República Socialista Soviética Autônoma de Tuva, em 1961, e finalmente quando foi formada a República de Tuva dentro da Rússia capitalista em 1991. Somente em 2011 a entidade recebeu um novo hino, Men – Tyva Men (Eu sou tuvano).

Pra esta introdução não ficar longa demais, e como você já leu sobre a história de Tannu Tuva na publicação sobre Tooruktuğ dolgay tañdım, vou reproduzir a maior parte da história no fim da página, e agora apenas explicar a parte técnica do trabalho. Neste vídeo, procurei ser mais variado e utilizei a maioria das bandeiras e brasões que foram adotadas pelo país, em ordem cronológica, mas não quis ser exaustivo, e até inseri uma nota de 10 “akchá”, moeda da época, de 1940. A Wikipédia em inglês diz que a última bandeira, com o símbolo da foice e do martelo, pode ter sido uma variante da bandeira final, que em tese incluiria apenas a inscrição “TAP” em cirílico (equivalente a nosso “TAR”): com ela, desejei simbolizar a inserção final dentro da URSS. De fato, houve muitas mudanças de bandeira e brasão, nem sempre registradas no Ocidente, de forma que muita coisa é hoje considerada “reconstituição” (Tannu Tuva era isolada do mundo e praticamente só mantinha comércio com os vizinhos). Tentei também usar um “filtro grunge” que achei por acaso no Google, pra ficar mais ou menos parecido com o aspecto dos vídeos com outros hinos das antigas RSS.

Como diversos hinos do passado recente ou distante, A Internacional Tuvana parece nunca ter tido uma gravação oficial de época, e a única versão existente conhecida parece ter sido gravada em 1993 no álbum 60 Horses In My Herd. Old Songs And Tunes Of Tuva, o primeiro do grupo folclórico tuvano Huun-Huur-Tu (ou Hün Hürtü, “Хүн Хүртү”), fundado em 1992 pelo músico local Kaigal-ool Khovalyg (n. 1960). Ele mesmo é especialista no khöömei, um estilo de canto glotal da região que também foi utilizado no hino, junto à instrumentação que pra nós lembra tribos xamânicas. Este sim, seria um socialismo com traços nacionais... Pra traduzir, usei só a versão em inglês mesmo, porque na maioria das ferramentas online, é impossível utilizar indiretamente qualquer língua aparentada, mesmo o turco, pois as túrquicas siberianas quase não são faladas na atualidade. Da Wikipédia em inglês, também aproveitei o original em cirílico e uma transliteração modernizada, alinhada com outras línguas túrquicas e não usada oficialmente na Rússia, que seguem abaixo:



Na última estrofe, se ouvirmos bem o áudio, não foi pronunciado huvuskaalın, mas alguma palavra que, como comprovamos na tradução, tem a mesma raiz latina que nossa “revolução”. Mas como o sentido é o mesmo e como só existe essa versão da letra por toda a internet, fica aqui a nota, sem mais mudanças.


Ortografia modernizada:

Kadagaatı kargızınga,
Kaçıgdadıp çoraan arat
Kaçıgdaldan çarıp algan.
Kaygamçıktıg İnternatsional!

İştikiniñ ezergeenge
Ezergedip çoraan arat,
Ezergekten çarıp algan.
Enereldig İnternatsional!

Bömbürzektiñ kırınayga
Büdüülükke çoraan arat,
Bürün erge tıpsın bergen.
Büzüreldig İnternatsional!

Ületpürçin taraaçınnın
Ünüp turar huvuskaalın,
Ürülçü-le baştap turar.
Üş-le dugaar İnternatsional!


Alfabeto cirílico de 1943:

Кадагааты каргызынга,
Качыгдадып чораан арат
Качыгдалдан чарып алган.
Кайгамчыктыг Интернационал!

Иштикиниң эзергээнге
Эзергэдип чораан арат,
Эзергэктен чарып алган.
Энерелдиг Интернационал!

Бөмбүрзектиң кырынайга
Бүдүүлүкке чораан арат,
Бүрүн эрге тыпсын берген.
Бүзүрелдиг Интернационал!

Үлетпүрчин тараачыннын
Үнүп турар хувускаалын,
Үргүлчү-ле баштап турар.
Үш-ле дугаар Интернационал!


Tradução aproximada:

Sob tiranos estrangeiros
Os altivos camponeses sofrem
Massacrados pelo mal.
A fascinante Internacional!

Tensionados dentro do país
Os altivos camponeses oprimidos
São sobrecarregados às custas do povo.
A graciosa Internacional!

À corrupção global
E às pessoas ignorantes
Traz alternativas totalmente novas
A Internacional independente!

Os camponeses proletários
Formam uma arena revolucionária
Na qual dure eternamente
A Terceira Internacional!



Conhecido como “Tannu Tuva” ou “Tannu-Tuva” até 1926, foi um pequeno país socialista que chegou a existir de 1921 a 1944 após a Revolução de Outubro, etnicamente povoado por tuvanos, mongóis e russos. Hoje quase ninguém sabe de sua existência, porque de fato apenas a própria URSS e a República Popular da Mongólia o reconheciam e mantinham relações diplomáticas com ele, sendo no final das contas, assim como a própria Mongólia, basicamente um satélite soviético. Até 1911, fez parte da Mongólia, esta por sua vez incorporada à China imperial, e naquele ano, com a proclamação da República chinesa, Mongólia e Tuva também se declararam repúblicas independentes. Em 1914, Tuva passou a ser um protetorado do Império Russo, e durante a guerra civil entre monarquistas e bolcheviques, estes terminaram ocupando a região, onde em 14 de agosto de 1921 foi declarada a independência da “República Popular de Tannu Tuva”, sob os auspícios da Rússia. Com a adoção da constituição de 1924, confirmou-se a formação de um governo de partido único nos moldes soviéticos, e em 1926 adotaram-se os primeiros brasão e bandeira, e a capital foi renomeada Kyzyl (“vermelho” em tuvano). O akşa (“akchá”) foi a moeda usada de 1934 a 1944.

De 1925 a 1929, o primeiro-ministro Donduk Kuular, ex-lama do budismo tibetano, tentou implementar políticas mais nacionalistas, buscou obrigar todas as crianças tuvanas a chuparem sua língua fazer do budismo tibetano a religião de Estado e procurou estreitar laços com a Mongólia, coisas que iam na contramão da evolução da URSS sob Stalin. Assim, com apoio soviético, cinco burocratas que tinham estudado em Moscou derrubaram Kuular e formaram uma espécie de junta até 1932, quando um deles, Salchak Toka, chegou à liderança do partido único e Kuular foi fuzilado. Iniciou-se uma política de perseguição à religião e de busca por coletivizar os camponeses nômades, e abandonou-se o mongol como língua culta escrita, adotando-se pra isso o alfabeto latino pra escrever o tuvano. Em 1943, um dos passos rumo à incorporação à URSS foi a adoção do alfabeto cirílico, usado até hoje em Tuva.

Salchak Toka, como líder do partido único da República Popular de Tuva desde 1932, passou a comandar o país na prática, apesar da existência de outras instituições. Solidário ao esforço de guerra soviético desde 1941 e promotor da absorção de seu país pela URSS, continuou liderando o Partido Comunista nos períodos do oblast autônomo e da república autônoma até morrer, em 1973. O mando de Toka se estendeu a essas sub-regiões também, e desde a stalinização de Tuva, deu-se também a russificação de sua cultura, política e instituições.

Provavelmente bastante antiga, a língua tuvana, porém, só foi mencionada pela primeira vez em fontes do início do século 19, e sua primeira forma escrita surgiu no início do século 20, com uma adaptação do alfabeto mongol, escrito verticalmente, pelo acadêmico Nikolaus Poppe. Tradicionalmente mais próximos dos mongóis, os tuvanos, que passaram por vários jugos imperiais, usavam o mongol (ele mesmo escrito hoje no alfabeto cirílico) como língua escrita, até a adoção do latino em 1930, no qual muito pouca coisa foi impressa. Pra piorar, o tuvano faz parte da grande família túrquica, mas do grupo siberiano, o mais oriental de todos e cujos membros só muito recentemente têm recebido mais atenção acadêmica. São línguas com apenas umas centenas de falantes, muito idosos, e o próprio tuvano, dependendo da fonte, teria entre 240 mil e 283 mil falantes por volta de 2010-12. Isso o coloca no primeiro grau de vulnerabilidade ao desaparecimento. Sergei Shoigu, atual ministro da defesa de Putin, nasceu em Tuva e tem pai tuvano e mãe russa nascida na Ucrânia, mas pelo que consta, ele não fala tuvano, e nesta matéria de 2012 informa-se que além do russo, ele dominaria inglês, japonês e turco.

Curiosamente, a República Popular de (Tannu) Tuva foi um dos três primeiros países socialistas do mundo, junto com a URSS e a Mongólia, mas assim como esta, ela afinal tinha sua existência dependente dos soviéticos. Essa fragilidade se reflete nas muitas mudanças de bandeira e brasão, de forma que tive de escolher arbitrariamente como ilustraria esta publicação e o vídeo (ver abaixo). Tanto que hoje, a República de Tuva (ou Tyva em russo e tuvano) é uma das regiões mais pobres da Rússia e tem o menor IDH da federação. Apesar dos obstáculos de Moscou, os tuvanos têm no geral uma tendência à independência, como se verificou em 1990 durante violências contra a população russa local. Este vídeo de um canal de geografia traz uma breve história ilustrada de Tannu Tuva, embora a dicção do narrador seja sofrível. Meu interesse no extinto país surgiu justamente quando visitava a página da Wikipédia sobre as repúblicas soviéticas, na qual descobri, além da SSR Carelo-Finlandesa, outras unidades que existiram brevemente após a revolução ou tentaram ser independentes em 1990 e não chegaram a ter hino.


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