terça-feira, 11 de março de 2025

Impacto do “relatório Khruschov” no PCB


Endereço curto: fishuk.cc/stalin1956

Já publiquei várias vezes aqui sobre o tema de minha monografia de fim de graduação, o famoso “TCC”, ou seja, o impacto do chamado “relatório Khruschov”, lido pelo antigo líder soviético no 20.º Congresso do PCUS em 1956, sobre o PCB, quando ainda era controlado por Luiz Carlos Prestes e antes da cisão do PCdoB em 1962. Este texto era pra ser parte de um projeto de pós-doutorado sobre, desta vez, o impacto do “eurocomunismo” das décadas de 1960 a 1980 sobre o pensamento do PCB, e que comecei a escrever ainda no início de 2020, pouco antes ou logo após a declaração da pandemia de covid-19. Sem esse “imprevisto”, meu objetivo era defender a tese de doutorado em março de 2022 e fazer uma solicitação de entrada no pós-doc naquele ano ou em 2023.

Porém, somados a isso, a queda de meu moral com a invasão da Ucrânia por Putler e sua corja, o domínio de um discurso esquerdista universitário que culpabilizava Zelensky, mas passava pano pro Hamas (o que aumentou minha melancolia), e, finalmente, a defesa de minha tese só em janeiro de 2024, frustraram meus planos a ponto de eu tentar o concurso da diplomacia em setembro do mesmo ano. Sem tempo hábil pra estudar, caí fácil na primeira fase, e hoje ainda estou revendo meus rumos. Percebi que esse projeto de pós-doc, pelo menos no formato em que ficou escrito, não ia dar certo, e decidi primeiro consultar os arquivos do Arquivo Edgard Leuenroth pra ver por onde podia (re)começar, ou fazer algo totalmente diferente, vinculado novamente às relações entre o PCB e a Comintern.

Dado que o texto ficou bastante volumoso e informativo, embora feito em grande parte com informações de memória, estou publicando aqui a maior parte do que já tinha feito do projeto “abortado”, ao menos o transformando num patrimônio de conhecimento público. E, claro, novas pesquisas na área (desde que não pra justificar Stalin, como fez o picareta Grover Furr) sempre vão ser bem-vindas!

P.S. Como o leitor indulgente pode notar, o pudor “caca-dêmico” impôs que eu não desse o correto título de “ditadores” à grande lista de fanáticos carniceiros arrolada abaixo nem usasse a gramática mais oral que tem se tornado comum em meus textos públicos nos últimos anos...



Até o ano de 1956, o modelo soviético de sociedade comunista e o arcabouço teórico e ideológico que o legitimava eram considerados incontestáveis no mundo inteiro. Apenas o regime iugoslavo pós-1945, fundado e liderado pelo marechal Josip Broz Tito, parecia fugir à regra, mas não tinha um grupo razoável de seguidores pelo mundo. O próprio regime chinês instaurado por Mao Zedong, apesar das muitas diferenças, também não apresentava contradições abertas com a União Soviética (URSS) e formava com ela um bloco sólido de oposição comunista à hegemonia dos Estados Unidos sobre o bloco capitalista durante a Guerra Fria.

Contudo, no 20.º Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), o primeiro após a morte de Iosif Stalin, reunido em fevereiro de 1956, o líder soviético Nikita Khruschov leu em uma sessão fechada, apenas aos líderes dos Partidos Comunistas presentes e sem o registro da imprensa, um relatório chamado “Sobre o culto à personalidade e suas consequências”. Passado à história com o nome de “relatório secreto” ou “relatório Khruschov”, basicamente denunciava os abusos cometidos por Stalin durante seu governo, apontava falhas graves em sua gestão e criticava o chamado “culto à personalidade”, ou seja, a idolatria à pessoa daquele que era até então chamado de “guia genial dos povos”. Entre os dirigentes presentes, as reações foram muito diversas, passando pela descrença e pelo mal-estar físico, mas certamente o impacto psicológico foi enorme, em muitos casos condicionando o abandono das fileiras comunistas. O texto do relatório fora preparado pela chamada “comissão Pospelov”, reunida algumas semanas antes e na qual já haviam se revelado fortes divergências sobre que conteúdo seria exposto na versão final e se valia a pena dar um passo tão arriscado.

Essencialmente, o “relatório secreto” de Khruschov menciona o terror estatal de massa desencadeado na década de 1930 e os erros e violações cometidos por Stalin durante a campanha de coletivização da agricultura (1929-1933), a condução pessoal da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), na qual a URSS só entraria em 1941, e a “paranoia persecutória” que teria se apossado do líder em seus últimos anos de vida. Contudo, o texto passa por alto ou omite vários episódios críticos, como a participação do próprio Khruschov nas perseguições massivas na Ucrânia, então uma república da URSS, e a colaboração estrita do mesmo com Stalin na administração soviética em vários momentos. Críticos do texto também ressaltam a estratégia de colocar a maior parte dos problemas nacionais na conta de Stalin, como se ele tivesse controle total sobre o que acontecia nem fosse assessorado por um grupo mais amplo, ou de atribuir ao psicológico imputado problemático do líder a origem desses males, recaindo em claro juízo de valor. Mais grave ainda, Khruschov só incluiu nas denúncias de crimes os membros do partido único, tanto na cúpula quanto nas bases, sem mencionar as muitas centenas de milhares de mortes entre os cidadãos comuns perpetradas em poucos anos pela violência estatal nem os fuzilamentos arbitrários ocorridos sem julgamento, pela simples acusação de “sabotador” ou “inimigo do povo”.

Inicialmente, o “relatório secreto” deveria ser apenas lido em voz alta por Khruschov na referida reunião, sem a entrega de cópias escritas aos presentes, à exceção dos chefes de Estado dos países comunistas europeus. Até mesmo os renomados secretários-gerais Maurice Thorez, do Partido Comunista Francês (com um tradutor), e Palmiro Togliatti, do Partido Comunista Italiano (ele próprio lendo), só puderam tomar nota do conteúdo nos corredores do congresso, por alguns minutos. Porém, como se soube anos depois, uma das cópias vazou a partir da Polônia e chegou à redação do New York Times, que comprou o texto por uma quantia irrisória e publicou-o na primeira página do jornal. Além disso, por iniciativa do próprio Khruschov, a audiência do relatório até então “secreto” foi gradualmente alargada após o 20.º Congresso do PCUS e alcançou grupos partidários de base e comitês de fábrica. A repercussão foi em grande parte negativa, pois Stalin, cujo falecimento em 1953 causara forte comoção popular, ainda era visto como o líder de ferro que comandou a industrialização acelerada e, em 1945, a derrota dos invasores alemães. Chegando por vias oficiais ou iniciativas pessoais até os outros países comunistas da Europa, o “relatório secreto” acelerou protestos populares que já começavam por causa das más condições de vida, em especial na Polônia e na Hungria, em ambos os casos levando a amplas mobilizações de massa, mas no caso húngaro culminando numa quase guerra civil que motivou a repressão de tropas soviéticas em novembro de 1956.

O impacto mais simbólico e duradouro, contudo, foi entre os comunistas dos países capitalistas, forçados a situações de maior ou menor repressão por seus respectivos governos, mas igualmente abalados pelo desmonte de seu maior mito pelo próprio sucessor na “pátria do socialismo”. Aparecendo inicialmente na chamada “mídia burguesa”, o relatório de Khruschov foi considerado uma calúnia ocidental e uma invenção dos anticomunistas europeus ou norte-americanos, mas logo a autenticidade de sua produção foi confirmada. Ainda assim, nem todos os militantes apoiaram acriticamente a atitude do primeiro-secretário do PCUS e atacaram ou o modo como o texto acabou chegando nos países capitalistas, ou o posicionamento destrutivo adotado perante a história da própria URSS. No mundo ocidental, o anticomunismo ganhava nova munição fornecida pelos próprios soviéticos, as esquerdas não comunistas tomavam ainda mais distância dos comunistas e mesmo dentro dos Partidos Comunistas foram muitos os intelectuais e ideólogos que se desencantaram imediatamente com Moscou e deixaram as fileiras. Entre os militantes ocidentais, nem mesmo as grandes repressões stalinianas de 1936 a 1938 ou o pacto com a Alemanha nazista em 1939 causaram tamanha sangria, pois envolvendo atores terceiros e dentro da formatação promovida pela Comintern, era fácil racionalizar os fuzilamentos ou a mão dada ao inimigo. Por isso, as consequências dos eventos em 1956, que incluíram também a própria repressão sangrenta na Hungria, foram consideradas como o ponto de virada na influência internacional até então crescente do comunismo soviético.

As cisões deram-se fora do mundo comunista, mas o mais grave é que ocorreram também dentro do grande bloco formado pela URSS, pelo chamado “Leste europeu” e pela China maoísta. Embora o iugoslavo Tito, arqui-inimigo de Stalin, logo terminasse reconciliando-se com Moscou, Mao Zedong e Enver Hoxha, líder da Albânia comunista, criticaram fortemente Khruschov, sobretudo pelo flanco que estava abrindo ao bloco capitalista, e levaram à exposição de outras diferenças nas relações entre os países que concerniam à atitude soviética para com essas jovens revoluções. Devido ao pequeno tamanho e à insignificância econômica da Albânia, sua ruptura diplomática com a URSS teve pouco impacto geral, mas o gradual afastamento da China, com sua população gigantesca e seu forte potencial econômico, e a consolidação do chamado “cisma sino-soviético” na década de 1960 solaparam a unidade comunista mundial e mudaram os dados de toda a geopolítica global. Essa divisão, em graus variados, também se refletiu nos partidos de países não comunistas, alguns deles seguindo a chamada “linha chinesa” (ou a “linha albanesa”, após a própria ruptura de Hoxha com Pequim ao começarem as reformas capitaneadas por Deng Xiaoping), mais ou menos temperada pelos posteriores sucessos revolucionários em Cuba e no Vietnã, ou descrendo cada vez mais no potencial de liderança apresentado por Moscou. Sem chegar à cisão declarada, o PCI, um dos maiores Partidos Comunistas da Europa e o único no continente a ter uma base de massas, afastou-se discretamente e suas tímidas formulações heterodoxas mereceram críticas diretas da própria URSS.

No Brasil, os delegados do PCB ao 20.º Congresso do PCUS não informaram nada a respeito do “relatório secreto”, e as decisões do encontro foram recebidas com as formalidades de praxe. Contudo, o texto do relatório também foi publicado nas capas dos principais jornais diários, a partir da tradução norte-americana, como uma revelação chocante dos “crimes” de Stalin. Discretamente, a imprensa do PCB negou a autenticidade do documento, mas gradualmente publicou as discussões modernizantes e heterodoxas que ocorriam nos países comunistas europeus e entre os Partidos Comunistas da Europa capitalista, com destaque para o italiano e o francês. Começavam a ecoar no Brasil as discussões sobre o “policentrismo” do movimento comunista internacional, as reformas políticas e econômicas promovidas por Khruschov e os movimentos populares na Polônia e na Hungria. Porém, ninguém ousava mencionar a denúncia do “stalinismo” e do “culto à personalidade” emanadas do próprio Kremlin, até que Aydano do Couto Ferraz, sem a autorização do Comitê Central (CC) do PCB, fez publicar o artigo “Não se poderia adiar uma discussão que já se iniciou em todas as cabeças”. Evocando o terremoto de denúncias promovido no congresso do PCUS, o jornalista critica os dirigentes pela falta de transparência e abre por conta própria uma “Tribuna de debates” destinada à livre discussão, pela militância, das viradas recentes. A quantidade de artigos foi torrencial e expressou uma clara divisão entre os partidários da conversa, geralmente críticos ao legado de Stalin, os defensores da ordem, que preferiam não extravasar as fraquezas para fora do partido, e o chamado “pântano”, uma espécie de centro que expunha seus julgamentos ao sabor do lado que estava em vantagem.

Em meados de 1957, a confusão e o rancor eram tamanhos que o próprio secretário-geral do PCB, Luiz Carlos Prestes, decidiu pôr fim aos debates com um texto chamado “carta-rolha”, após ter exposto parcimoniosamente suas opiniões e observado por alto, ele também, a oscilação das tendências. Essa interrupção brusca dos debates não impediu que a direção, discretamente e aos poucos, digerisse os novos ventos vindos da URSS (assim como as posições da China a respeito das mudanças) e esboçasse uma nova linha política, afinada tanto com a relativa liberalização no comunismo europeu quanto com o período de estabilidade e crescimento vivido no Brasil durante o governo Kubitschek (1956-1961). O processo culminou em 1958 no chamado “Manifesto de Agosto”, uma iniciativa de cúpula que reconheceu tardiamente os efeitos perniciosos que teve a política de radicalização do PCB no início da década e a importância contida na discussão interna interrompida um ano antes. Apesar das mudanças, sua elaboração e aplicação quase sempre eram feitas por iniciativa dos dirigentes, com limitado processo de discussão e ocultando divergências que explodiriam anos mais tarde. A própria tribuna na imprensa partidária, em preparação ao 5.º congresso partidário de 1960, refletiu as contradições e resistências à “desestalinização” do movimento comunista internacional, mas as resoluções finais, como quase sempre ocorria, surgiram da conciliação entre correntes, não resistindo até os eventos de 1961. O PCB, então, mudou seu nome sem mudar sua sigla, e a reação contra a “Carta dos 100”, documento crítico a Prestes e seus aliados, acelerou a futura cisão do PC do B, ela mesma relacionada com o já consolidado cisma sino-soviético.

Gradualmente, o agora Partido Comunista Brasileiro começou a absorver os grandes debates dentro do comunismo europeu e as consequências ideológicas que a URSS deduzia do quadro geopolítico mundial, enquanto o PC do B, inicialmente buscando o reconhecimento exclusivo de Moscou, ficou conhecido pela adoção da chamada “linha chinesa”. O surgimento da corrente eurocomunista, a redescoberta de Antonio Gramsci pelo Partido Comunista Italiano, a luta dos comunistas de países latinos contra as ditaduras militares, o franquismo e o salazarismo, os novos focos revolucionários que escapavam ao controle do PCUS e a ascensão do “terceiro mundo” e dos “países não alinhados” como agentes globais desafiaram o PCB, tanto mais que a maioria de seus líderes passou ao exílio após o golpe militar no Brasil em 1964. Esse decalque entre a cúpula e as bases, mais vulneráveis à repressão armada, além do debate sobre a natureza da resistência à ditadura, geraram novos focos de conflito que emergiriam após a promulgação da Lei de Anistia, em 1979. Após Luiz Carlos Prestes, a essa altura tornado uma lenda viva, ter saído do partido em 1984 e a política da direção ter incorporado o apoio irrestrito ao governo José Sarney, o PCB manteve seu alinhamento à URSS e seguiu no desenvolvimento do que Raimundo Santos chamou de “pensamento moderno”.

Com certeza, Santos foi o autor e pesquisador que mais se debruçou sobre a evolução do PCB rumo à valorização da democracia e à aceitação do “pluricentrismo” em modelos do socialismo. Seus livros passam pelos temas do impacto que o 20.º Congresso do PCUS e o “relatório secreto” de Khruschov tiveram sobre os comunistas brasileiros e da mudança ideológica sofrida pelo “Partidão” nas décadas de 1970 e 1980, enriquecidos pela experiência do próprio escritor como militante partidário. Porém, entre os principais ideólogos desse novo período “pós-stalinista” estão Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques, que traduziram para o português autores “heterodoxos” como Antonio Gramsci e György Lukács e trouxeram as contribuições dos “eurocomunistas” italianos e espanhóis ao debate político brasileiro. Também como escritores, jornalistas e editores, trouxeram o marxismo e o progressismo ao debate público geral, reuniram artigos e reflexões isoladas em coletâneas sobre dialética e história das ideias (Konder) e traduziram a monumental coletânea italiana História do marxismo (Coutinho, Henriques e outros) como forma de promover a pluralidade de teóricos marxistas e experiências socialistas. Coutinho, em especial, no famoso artigo “A democracia como valor universal”, trouxe a tematização homônima do dirigente italiano Enrico Berlinguer e avançou uma interpretação dos escritos políticos de Vladimir Lenin inusitada para a época.



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