segunda-feira, 17 de março de 2025

Bella polenta così, tchatchapum!


Endereço curto: fishuk.cc/polenta-rfi

Me surpreendi quando a Radio France Internationale (RFI), em sua seção “Connaissances” (Conhecimentos), publicou um texto especial sobre “A polenta: uma tradição italiana das Américas”. De autoria de Olivier Favier (de quem já traduzi outros textos aqui), parece que ele adivinhou qual é meu prato favorito, sendo eu mesmo, em parte, descendente de vênetos! O título engana um pouco, pois não fala de nossas comunidades ítalo-brasileiras, que por vezes também chamam a iguaria de “poenta” na língua talian, mas do mero fato do milho ser de origem centro-americana.

Contudo, o material é excelente e não pude deixar de o trazer aqui! Pra célebre canção imigrante Bella polenta, cuja antiga partitura de minha avó aproveito pra trazer no final da publicação, veja também as coletâneas gravadas no Rio Grande do Sul pela Família Reck e pelo Tchê Luiz. Mangia che ti fa bene!!!



A polenta é um prato tradicional da culinária veneziana, que revela sutilmente seus molhos e acompanhamentos. Quase nos esquecemos de que durante muito tempo foi o alimento quase exclusivo dos mais pobres no norte da Itália. Mas essas raízes populares esquecidas também são recentes. De fato, elas coincidem com a chegada à Europa, bem no início do século 16, de uma planta ameríndia bem-sucedida: o milho.

A história do milho remonta a nove ou dez mil anos, à época em que surgiram os três grandes centros agrícolas do mundo. Enquanto o Oriente Médio e a China se puseram a cultivar, respectivamente, os ancestrais do trigo e do arroz, os povos do sudoeste do México começaram a explorar o teosinto, embora não esteja claro como ele era consumido.

Essa planta, que pouco tem a ver com o milho atual, foi então hibridizada, principalmente com uma de suas primas das terras altas mexicanas, para dar origem ao milho, que se tornou um dos alimentos básicos da América Central. Ele então conquistou o norte do continente há 1 500 anos. Cristóvão Colombo a trouxe do Caribe já em 1493. Essa planta, cuja adaptabilidade é excepcional, já apresenta variedades muito diferentes dependendo dos climas e terras onde é cultivada.

Em um século, o milho ameríndio conquistou as costas do mundo inteiro – Em meados do século 16, ele já havia cativado toda a Europa. Turcos e colonos europeus, especialmente portugueses e espanhóis, a estabeleceram nas costas da África, do Cairo à Cidade do Cabo. Também chegou imediatamente à Birmânia, à Indonésia, à China e, um pouco mais tarde, ao Japão. Na Itália, ela se desenvolveu no norte, particularmente no vale do Pó e nas terras pantanosas do Polêsine, no sul do Vêneto, longe das secas do mundo mediterrâneo.

Essa planta milagrosa, que cresce rapidamente e requer apenas cerca de 50 dias de trabalho por ano, é usada principalmente para alimentar animais. No Vêneto, em particular, também se tornou o alimento básico dos pobres, na forma de polenta. Quando esta também está em falta, complementa-se com batatas – polenta e patatà. Os italianos do norte são cobertos de apelidos como mangiapolenta ou polentoni.

Essa rápida disseminação do milho deixou para trás um processo, porém muito antigo entre os ameríndios, chamado nixtamalização, que consistia em deixar os grãos de molho e cozinhá-los numa solução alcalina, acrescentando cinzas ou cal à água. Em sua ausência, o milho fica sem vitamina B3 e vários aminoácidos.

A pelagra, flagelo esquecido dos “comedores de polenta” – Uma dieta baseada exclusivamente em milho, portanto, leva a deficiências. É a principal causa de uma doença até então praticamente desconhecida, a pelagra, que se manifesta por meio de sintomas cutâneos, gastrointestinais e neurológicos que podem levar à morte. Em 1830, afetava até uma em cada vinte pessoas em certas regiões do norte da Itália.

Embora a ligação entre essa doença e o consumo de milho tenha sido rapidamente estabelecida, ela não foi associada a uma deficiência, mas a um germe contido na planta, como o esporão-do-centeio. A natureza massiva da doença em alguns lugares sugeria uma epidemia. Até o início do século 20, temia-se que também pudesse ser transmitida de pessoa para pessoa.

Assim, a presença da doença é particularmente monitorada entre os candidatos à emigração. Em seu livro Em alto-mar (1889; trad. bras. Nova Alexandria, 2017), o repórter Edmondo de Amicis descreve uma família inteira impedida de embarcar num transatlântico em Gênova com destino ao Uruguai e à Argentina, e os gritos desesperados no cais do pai de família, que havia enlouquecido devido à doença.

De comida de pobre a prato destacado da gastronomia italiana – Assim como outros elementos da culinária pobre da Itália tradicional, a polenta passou por muitas variações regionais que hoje a tornam um acompanhamento destacado da grande culinária cisalpina. Ainda em 1891, Pellegrino Artusi concedeu-lhe as primeiras cartas de nobreza.

Diz-se que seu guia, A ciência da cozinha e a arte de comer bem [link em francês], fez mais pela unidade do país do que o romance Os noivos, o clássico inescapável, mas pouco apetitoso, da literatura do século 19, que seu autor, o milanês Alessandro Manzoni, ainda assim se deu ao trabalho de reescrever no mais puro florentino de Dante e Petrarca, matriz do idioma nacional moderno.

Pellegrino Artusi oferece em sua receita n.º 172 bolinhos de polenta recheados com queijo à moda de Lodi. A receita n.º 232 é de polenta amarela com salsichas. Seja qual for sua fama, o pai da culinária nacional dificilmente é conhecido pelas qualidades dietéticas de seus pratos.

O fato é que a polenta vem numa variedade de cores, amarela em particular, mas também branca no Vêneto, em texturas ou mais firme, também no Vêneto, onde geralmente é aquecida numa panela, enquanto na Alta Saboia, por exemplo, pode assumir a forma de mingau.

A polenta e osei: a versão original e a sem aves nem milho... – Ela também pode ser servida com molhos, carnes, peixes ou legumes. Durante o século 20, tornou-se a base de muitas sobremesas, acompanhadas ou aromatizadas com canela, amêndoas, pistaches, frutas secas, laranjas, peras... a lista não é exaustiva. A amor polenta é uma especialidade de Varese, que mistura farinha de milho e farinha de trigo.

Existem duas versões da famosa polenta e osei, polenta com pequenas aves, originalmente um prato rústico que consistia em combinar a polenta com tudo o que se pudesse caçar ao redor: tentilhões, tordos, codornas ou mesmo pardais. Esse prato continua sendo até hoje uma especialidade no leste da Lombardia e no Vêneto.

A versão doce, por sua vez, data de 1910 e é uma criação de Amadeo e Giuseppina Alessio, gerentes da Pasticceria Milanese em Bérgamo. Embora pareça um grande bolo de polenta decorado com passarinhos de marzipã e coberto de chocolate, na verdade é apenas um pão de ló também coberto com marzipã e polvilhado com açúcar amarelo, o que lhe dá uma bela aparência granulada. Nem um único grão de milho é utilizado em sua confecção. É, portanto, uma sobremesa trompe-l’œil [lit. “engana-olho”, uma técnica arquitetônica], no estilo dos afrescos decorativos que podem ser encontrados em muitas villas venezianas.


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