Aqui está outro texto que publiquei num antigo site sobre esperanto por mim mantido entre 2005 e ca. 2007. Trata-se do famoso excerto de uma carta privada de L. Zamenhof ao russo Nikolái Afrikánovich Boróvko, escrita talvez em 1895 e impressa com permissão de ambos os correspondentes. Vladímir Gernét a traduziu do original russo (cujo texto, porém, se perdeu) pro esperanto e a publicou na revista Lingvo Internacia (Língua Internacional), n. 6-7, p. 115-119. Gernet é indicado como o tradutor, e certamente o próprio Zamenhof e o marquês de Beaufront revisaram o texto, e eu o traduzi pro português. Leia abaixo uma pequena introdução em esperanto e a íntegra da carta!
Jen alia teksto, kiun mi publikigis en malnova retejo pri Esperanto de mi subtenita inter 2005 kaj ĉ. 2007. Temas pri celebra eltiro el privata litero de L. Zamenhof al la ruso Nikolaj Afrikanoviĉ Borovko, skribita eble en 1895 kaj presita kun permeso de ambaŭ korespondantoj. Vladimir Gernet tradukis ĝin el la rusa originalo (kies teksto, tamen, perdiĝis) al Esperanto kaj publikigis ĝin en la revuo Lingvo Internacia, n. 6-7, p. 115-119. Gernet estas indikata kiel la tradukinto, kaj certe Zamenhof mem kaj la Markizo de Beaufront revizis la tekston, kaj mi tradukis ĝin al la portugala. Ĉi-sube vi povas legi la tutan tradukon:
...O senhor me pergunta: como apareceu em mim a ideia de criar uma língua internacional e como foi a história da língua esperanto do momento de seu nascimento até hoje? Toda a história pública da língua, isto é, começando do dia em que saí abertamente com ela, é ao senhor mais ou menos conhecida; aliás, por muitas causas, é ainda inoportuno tocar neste período da língua; por isso, vou contar ao senhor, em traços comuns, somente a história do nascimento da língua.
Será difícil para mim contar ao senhor tudo isso em detalhes, pois muita coisa eu mesmo já esqueci: a ideia à qual dediquei toda minha vida para sua efetivação apareceu em mim – é engraçado dizê-lo – na mais tenra infância e, a partir desse tempo, nunca me abandonou; eu vivi com ela e nem posso me imaginar sem ela. Essa circunstância esclarecerá ao senhor em parte por que eu trabalhei sobre ela com tanta obstinação e porque eu, apesar de todas as dificuldades e da amargura, não abandonei essa ideia, tal como muitos outros fizeram tendo trabalhado no mesmo campo.
Nasci em Białystok, província de Grodno. Este lugar de meu nascimento e de meus anos infantis deu a direção a todos os meus objetivos futuros. Em Białystok, a população é formada de quatro elementos distintos: russos, poloneses, alemães e judeus; cada um desses elementos fala uma língua própria e se relaciona sem amizade com os outros elementos. Em tal cidade, mais do que em qualquer outro lugar, a natureza impressionante sente a pesada infelicidade da diversidade linguística e se convence a cada passo de que a diversidade de línguas é a única, ou ao menos a principal causa que dispersa a família humana e a divide em partes inimigas. Fui educado como um idealista; ensinaram-me que todos os homens são irmãos e, enquanto isso, na rua e no quintal, a cada passo tudo me fazia sentir que os homens não existem: existem somente russos, poloneses, alemães, judeus etc. Isso sempre atormentava fortemente minha alma infantil, embora muitos possivelmente rirão desta “dor pelo mundo” na infância. Por então me parecer que os “adultos” possuíam uma espécie de força todo-poderosa, eu constantemente repetia a mim mesmo que, quando eu fosse adulto, sem falta afastaria esse mal.
É claro que pouco a pouco eu me convencia de que nem tudo se faz tão fácil como parece a uma criança; fui jogando fora diversas utopias de criança, uma após a outra, e só o sonho por uma língua humana nunca pude jogar fora. De um modo confuso, eu de certa forma me atirei a ele, embora, é claro, sem quaisquer planos definidos. Não me lembro quando, mas em toda a ocasião, suficientemente cedo se formava em mim a consciência de que a língua única só pode ser neutra, não pertencendo a nenhuma das nações hoje vivas. Quando passei da Escola Real de Białystok (ela ainda era ginásio) para o segundo ginásio clássico de Varsóvia, fui durante algum tempo seduzido por línguas antigas e sonhava em um dia viajar pelo mundo inteiro e, com discursos flamejantes, inclinaria os homens a reviver uma dessas línguas para uso comum. Posteriormente, já não lembro quando, cheguei a uma firme convicção de que isso era impossível, e comecei a sonhar ocultamente com uma língua nova e artificial. Então, frequentemente começava alguns testes, elaborava riquíssimas declinações e conjugações artificiais. Mas uma língua humana com sua infinita, como me pareceu, pilha de formas gramaticais, com suas centenas de milhares de palavras, com as quais os grossos dicionários me atemorizavam, pareceu-me uma máquina tão artificial e colossal, que não foi só uma vez que eu dizia a mim mesmo: “Fora, sonhos! Esse trabalho não está conforme às forças humanas!” e, todavia, eu sempre voltava a meu sonho.
Eu aprendi alemão e francês na infância, quando ainda não se pode comparar e fazer conclusões; mas estando na 5.ª série do ginásio, quando comecei a aprender inglês, a simplicidade de sua gramática lançou-se em meus olhos, principalmente graças à íngreme passagem através dela das gramáticas latina e grega. Então, notei que a riqueza de formas gramaticais é apenas um cego acaso histórico, mas não é necessária à língua. Sob tal influência, comecei a vasculhar a língua e retirar as formas desnecessárias, e notei que a gramática sempre mais e mais derretia em minhas mãos, e logo cheguei à menor gramática possível, que ocupava, sem ser inútil à língua, não mais do que algumas páginas. Então, comecei mais seriamente a abandonar meu sonho. Mas ainda os léxicos gigantes nunca me deixavam tranquilo.
Uma vez, quando eu estava na 6.ª ou 7.ª série do ginásio, eu por acaso desviei a atenção à inscrição “shveytsarskaya” (portaria), que eu já tinha visto muitas vezes, e depois à tabuleta “konditorskaya” (doceria). Esse “skaya” despertou-me interesse e mostrou-me que os sufixos dão a possibilidade de se fazerem, de uma palavra, outras palavras que não precisam ser aprendidas separadamente. Esse pensamento me possuiu por inteiro, e subitamente senti o chão sob os pés. Sobre os terríveis léxicos gigantes caiu um raio de luz, e eles rapidamente começaram a encolher diante de meus olhos.
“O problema está resolvido!” – então eu disse. Eu captei a ideia dos sufixos e comecei a trabalhar bastante nessa direção. Eu compreendi que grande significado pode ter para uma língua criada conscientemente o uso pleno dessa força, cuja eficácia nas línguas naturais é pouca, cega, irregular e incompleta. Comecei a comparar palavras, procurar entre elas relações constantes e definidas, e todo dia eu retirava do vocabulário uma nova série enorme de palavras, substituindo esse colosso por um sufixo que significava uma certa relação. Então, notei que uma pilha muito grande de palavras puramente radicais (ex. “mãe”, “estreito”, “faca” etc.) podiam ser facilmente transformadas em palavras compostas, formadas [em esperanto, patrino, mallarĝa, tranĉilo], e desaparecer do léxico. A mecânica da língua estava diante de mim como que sobre as palmas das mãos, e já começava agora a trabalhar regularmente, com amor e esperança. Logo depois eu já tinha escrita toda a gramática e um pequeno dicionário.
A propósito, aqui eu direi algumas palavras sobre o material para o vocabulário. Muito antes, quando eu procurava e descartava tudo de inútil da gramática, eu quis usar os princípios da economia também para as palavras e, convencido de que tanto faz que forma terá essa ou aquela palavra se somente concordarmos que ela expressa a ideia dada, simplesmente inventava palavras, penando que elas fossem as mais curtas possíveis e não tivessem um número desnecessário de letras. Eu disse a mim mesmo que ao invés de usar palavras de 11 letras, como interparoli [conversar], podemos muito bem expressar a mesma ideia, por exemplo, com uma palavra de duas letras, como “pa”. Por isso, simplesmente escrevia a série matemática dos conjuntos de letras mais curtos, mas facilmente pronunciáveis, e a cada um eu dava o significado de uma palavra definida (ex. a, ab, ac, ad, ... ba, ca, da, ... e, eb, ec, ... be, ce, ... aba, aca, ... etc.). Mas eu logo descartei essa ideia, pois os testes feitos comigo mesmo me mostraram que tais palavras inventadas são muito difíceis de ser aprendidas e ainda mais difíceis de ser memorizadas. Então, já me convencia de que o material para o léxico deveria ser latino-germânico, sendo mudado só o quanto pedissem a regularidade e outras condições importantes da língua. “Já estando sobre essa terra”, logo notei que as línguas modernas possuem uma enorme provisão de palavras prontas já internacionais, que são conhecidas por todos os povos e constituem um tesouro para uma futura língua internacional – e obviamente me utilizei desse tesouro.
No ano de 1878, a língua já estava mais ou menos pronta, embora entre a então “lingwe uniwersala” [língua universal] e o atual esperanto ainda havia uma grande diferença. Eu a divulguei entre meus colegas (eu então estava na 8.ª série do ginásio). A maioria deles foi seduzida pela ideia e pela incomum facilidade da língua, o que os percutia, e começaram a aprendê-la. Em 5 de dezembro de 1878, nós todos solenemente festejamos juntos a santificação da língua. Durante essa festa, houve discursos na nova língua, e com entusiasmo cantamos o hino, cujas palavras iniciais eram as seguintes:
“Malamikete de las nacjes
Kadó, kadó, jam temp’ está!
La tot’ homoze in familje
Konunigare so debá.”(“A inimizade entre as nações
Caia, caia, já é tempo!
Toda a humanidade, em uma só família,
Deve se unir.”)
Sobre a mesa, além da gramática e do dicionário, repousavam algumas traduções na nova língua.
Assim se encerrou o primeiro período da língua. Então, eu ainda era muito jovem para sair publicamente com meu trabalho, e eu decidi esperar ainda cinco, seis anos e, durante esse tempo, cuidadosamente testei a língua e plenamente a trabalhei na prática. Meio ano depois da festa de 5 de dezembro, acabamos o curso ginasial e nos dispersamos. Os futuros apóstolos da língua experimentaram falar um pouco da “nova língua” e, deparando-se com as zombarias dos adultos, eles logo se apressaram em desconfessar a língua, e eu fiquei totalmente só. Prevendo só zombarias e perseguições, decidi esconder meu projeto de todos. Durante 5 anos e meio de minha permanência na universidade, nunca falava com ninguém sobre meu trabalho. Esse tempo foi muito difícil para mim. A “clandestinidade” me atormentava; obrigado a cuidadosamente esconder meus pensamentos e planos, quase não permanecia em nenhum lugar, não participava de nada, e a mais bela época da vida – os anos de estudante universitário – foram para mim os mais tristes. Às vezes eu tentava me distrair na sociedade, mas me sentia como um estranho, suspirava e ia embora, e de tempos em tempos acalmava meu coração com algum poema na língua trabalhada por mim. Mais tarde, coloquei um desses poemas (Mia penso, “Meu pensamento”) na primeira brochura editada por mim; mas aos leitores que não sabiam em que circunstâncias esse poema foi escrito, ele obviamente aparenta ser estranho e incompreensível.
Durante seis anos trabalhei aperfeiçoando e testando a língua, – e eu tive bastante trabalho, embora no ano de 1878 me parecesse que a língua já estava totalmente pronta. Fiz muitas traduções para minha língua, escrevi nelas obras originais e vários testes me mostraram que o que me parecia totalmente pronto na teoria, ainda não estava pronto na prática. Tive de esculpir, substituir, corrigir e transformar radicalmente muita coisa. Palavras e formas, princípios e exigências impeliam e atrapalhavam uns aos outros, enquanto na teoria, tudo separadamente e em pequenos testes, eles me parecessem totalmente bons. Tais objetos, como a preposição universal je [usada quando nenhuma das outras consegue expressar o sentido desejado], o verbo elástico meti [pôr, colocar, meter], a terminação neutra, mas definida, -aŭ etc., provavelmente nunca mergulhariam teoricamente em minha cabeça. Algumas formas, que para mim pareciam uma riqueza, agora se mostravam, na prática, um peso morto; assim, por exemplo, tive de jogar fora alguns sufixos desnecessários. No ano de 1878, parecia-me que, para a língua, era suficiente ter gramática e léxico; eu atribuía a sobrecarga e a deselegância da língua somente ao fato de que eu ainda não a dominava bem o suficiente; então, a prática sempre mais e mais me convencia de que a língua ainda precisava de uma espécie de “algo” insondável, o elemento de coligação que dava à língua vida e um “espírito” definido, totalmente formado. (O desconhecimento do espírito da língua é a causa pela qual alguns esperantistas, que leram muito pouco na língua esperanto, escrevem sem erros, mas em um estilo pesado, desagradável – enquanto os esperantistas mais experientes escrevem em um estilo bom e totalmente idêntico, qualquer que seja a nação à qual eles pertençam. Sem dúvida, com o tempo, o espírito da língua, embora aos poucos e imperceptivelmente, mudará muito; mas se os primeiros esperantistas, pessoas de diversas nações, não encontrassem na língua um espírito fundamental todo definido, cada um começaria a puxar para seu lado e a língua permaneceria eternamente, ou ao menos durante um tempo muito longo, uma coleção de palavras desengonçada e sem vida.) Então, comecei a evitar traduções literais desta ou daquela língua e penei em pensar diretamente na língua neutra. Depois, notei que a língua, em minhas mãos, já deixava de ser uma sombra sem fundamentos desta ou daquela língua, com a qual eu estava lidando neste ou naquele minuto, e recebia seu próprio espírito, sua própria vida, a própria fisionomia definida e claramente expressa, já independente de qualquer tipo de influência. A fala já fluía sozinha, flexível, graciosa e totalmente livre, como uma língua materna viva.
Por um longo tempo, uma circunstância ainda me fazia adiar minha saída pública com a língua: durante um longo tempo, um problema não ficou resolvido, e que tem um enorme significado para uma língua neutra. Eu sabia que todos me diriam: “Sua língua só será útil para mim quando o mundo inteiro a aceitar; por isso, não posso aceitá-la até que o mundo inteiro a aceite.” Mas dado que o “mundo” não é formado sem “unidades” antes separadas, a língua neutra não podia ter futuro até que conseguisse tornar-se útil para cada pessoa à parte, independentemente se já é uma língua aceita ou não pelo mundo. Fiquei muito tempo pensando nesse problema. Finalmente, os chamados “alfabetos secretos”, que não exigem que o mundo os aceite de antemão e dão a um destinatário totalmente desinformado a possibilidade de entender tudo o que você escreveu somente se você lhe passar a “chave” com os significados, conduziu-me a pensar em arranjar também a língua aos modos de tal “chave”, que, contendo em si não somente todo o léxico, mas também toda a gramática de elementos separados, totalmente independentes e ordenados em ordem alfabética, daria a possibilidade do destinatário/leitor totalmente desinteressado, de qualquer nação, compreender imediatamente sua carta.
Terminei a universidade e comecei minha prática médica. Agora, já começava a pensar na saída pública com meu trabalho. Aprontei o manuscrito de minha primeira brochura (Dr. Esperanto – Uma língua internacional: Prefácio e manual completo) e comecei a procurar um editor. Mas pela primeira vez, eu aqui encontrei a amarga prática da vida, a demanda financeira com a qual, posteriormente, ainda devia e devo batalhar muito fortemente. Durante dois anos, em vão procurei um editor. Quando eu já tinha encontrado um, ele aprontou minha brochura para edição durante meio ano e, ao fim, recusou. Finalmente, depois de longos esforços, eu mesmo consegui editar minha primeira brochura em julho do ano de 1887. Antes disso, eu estava muito excitado; eu sentia que estava diante do Rubicão (*) e que do dia em que aparecesse minha brochura, eu já não teria a possibilidade de regressar; eu sabia que sorte esperava um médico que depende do público, se esse público via nele um fantasioso, um homem que se preocupa com “causas apensas”; eu sentia que estaca pondo em jogo toda a tranquilidade futura e as existências minha e de minha família; mas eu não podia deixar a ideia que adentrou meu corpo e meu sangue, e... eu atravessei o Rubicão. (*)
Luís Lázaro Zamenhof.
(*) Nota de tradução – “Atravessar o Rubicão” (em esperanto, transiri Rubikonon: frase que se costuma proferir quando se toma uma decisão arrojada e decisiva, em referência a um pequeno rio que separava a Itália da Gália Cisalpina. (Dicionário Completo Esperanto-Português, Federação Espírita Brasileira, 1996.)