Este conteúdo já era pra ter ido ao ar há mais de um ano, mas como você pode pressupor, várias razões alheias a minha vontade impediram que eu o trabalhasse mais atentamente. Nas eleições presidenciais francesas de 2022, um candidato novo de um partido ainda mais novo causou sensação ao tentar se posicionar ainda mais à extrema-direita do que o RN de Marine Le Pen e ter atraído inclusive a sobrinha desta e ex-membro daquele partido, Marion Maréchal. Éric Zemmour (n. 1958), filho de judeus amazigues (ou árabes, segundo alguns historiadores) emigrados da Argélia, é um escritor e jornalista que fundou seu partido “Reconquête” (Reconquista) tendo como bandeira principal o combate à imigração legal e a restrição da imigração em geral, com base na infundada teoria do grand remplacement (grande substituição). Segundo ela, se nada for feito, o número de imigrados, sobretudo árabes e subsaarianos, em algum momento suplantará o de franceses cristãos “de souche” (“da cepa”), destruindo a identidade nacional e “islamizando” a França.
É estranho que um filho de imigrantes de uma ex-colônia francesa, ainda por cima praticante da religião judaica, possa se alinhar com pessoas e ideias que praticamente renegam sua própria pessoa, mas seu histórico de ofensas pessoais, machistas e raciais pode fazer jus às próprias opiniões políticas. Nas citadas eleições de 2022, em que Emmanuel Macron venceu o segundo turno contra Le Pen, Zemmour amargou um quarto lugar atrás do esquerdista radical Jean-Luc Mélenchon, mas ainda assim ficou bem à frente das candidatas dos tradicionais Partido Socialista e Os Republicanos (os quais, em todo caso, têm muito mais enraizamento local e regional). Isso causou o receio de que seu discurso, ainda mais que a França está dilacerada por vários conflitos sociais, fosse normalizado pelo mainstream, como ocorreu com Bolsonaro, mas desde então o partido e seu fundador praticamente hibernaram. Só agora estão acordando sonolentos, com a proximidade das eleições parlamentares europeias, com direito a Marion Maréchal tremulando seus cabelos loiros na ilha de Lampedusa pra fazer populismo eleitoral em cima de refugiados precarizados.
Mas no início de 2022, o que me interessou exatamente foram algumas de suas declarações na sequência do Brexit, argumentando que o inglês tinha sido imposto à União Europeia como língua franca e que o francês deveria ocupar seu lugar, já que teria verbalizado a fundação das instituições da Europa. Mais do que advogar em causa própria, podemos ver que Zemmour exibe aquele batido chauvinismo linguístico, típico de todo reaça, que vê o idioma como sendo ou tendo sido, em algum ponto do tempo, puro e imutável. Não é a primeira vez que isso ocorria na França, a exemplo da fracassada “Lei Toubon” (batizada jocosamente de “Lei All-Good”), e já houve muitos Aldos Rebelos que quiseram banir os estrangeirismos de um Brasil que foi feito por estrangeiros, povos nativos e africanos escravizados.
Embora afirme conhecer o hebraico (provavelmente o bíblico), Zemmour não parece primar pelo poliglotismo, e antes de finalizar esta publicação, acabei achando o trecho de uma entrevista em que ele afirma falar o inglês “trop mal” (ruim demais). Porém, quando achei os primeiros materiais sobre sua relação com a língua inglesa, quis também saber se ele falava mesmo outros idiomas, e mesmo não sendo exatamente um esclarecimento, e sim uma opinião política, esta resposta de um certo Chris Price à pergunta “Éric Zemmour fala bem inglês?” na rede social Quora, dada em 15 de setembro de 2021, dá uma medida dos valores em jogo (que o leitor julgue sua veracidade):
Je n’ai jamais entendu Éric Zemmour parler anglais et je ne pense pas qu’il le parle couramment. Il peut probablement le déchiffrer à l’écrit comme la plupart des journalistes français, mais son nationalisme exacerbé, sa xénophobie et son manque d’ouverture aux cultures extérieures ne lui permettrait pas de le parler couramment. Pour bien parler une langue étrangère, il faut être ouvert, ne pas avoir peur de se mettre en échec, accepter d’avoir tort et être capable de penser différemment, toutes choses qu’Éric Zemmour montre qu’il est incapable de faire.
Nunca ouvi Éric Zemmour falar inglês e não acho que ele fale fluentemente. Provavelmente ele consegue o decifrar por escrito, como a maioria dos jornalistas franceses, mas seu nacionalismo exacerbado, sua xenofobia e sua falta de abertura às culturas externas não lhe permitiriam falá-lo fluentemente. Pra falar bem uma língua estrangeira, é preciso ser aberto, não ter medo de falhar, aceitar errar e ser capaz de pensar de formas diferentes, todas coisas que Éric Zemmour mostra ser incapaz de fazer.
Seguem os vídeos e seus respectivos títulos, originais ou atribuídos, de uma crônica matinal e do trecho de uma entrevista, que eu mesmo transcrevi (ótima ferramenta pra estudantes) e traduzi pro português:
L’insupportable domination de l’anglais (A insuportável dominação do inglês), rádio RTL, rubrica “Zed comme Zemmour” (Zê de Zemmour) do programa matinal, 8 de fevereiro de 2012.
– Bom dia, Éric Zemmour!
– Bom dia!
– Bem, você vai ficar feliz, como todos nós aqui na RTL, em saber que nosso amigo Stéphane Bern recebeu ontem o Prêmio Roland-Dorgelès, que prestigia os profissionais do audiovisual especialmente vinculados à língua francesa. Porque esta manhã parece que você está chateado após Luc Châtel ter apresentado o relatório da Comissão Estratégica de Línguas, relatório que recomenda o aprendizado de uma segunda língua desde o sexto ano, Éric.
– Sim, we are ridiculous, “nous sommes nuls” [somos uns idiotas], em francês. Há anos não param de nos dizer, os relatórios se acumulam pra repeti-lo: tanto os ministros de direita quanto os de esquerda se sucedem pra nos causar vergonha. E nós também somos sempre idiotas: nos prometem línguas estrangeiras no primário, depois no maternal, e em breve na barriga de nossa mãe. Mas de nada adianta: idiotas. Não se consegue ensinar o inglês corretamente pra nos ajudar, nos prometem duas línguas vivas a partir do sexto ano – e por que não três? De fato, a questão das línguas estrangeiras é posta de maneira muito hipócrita: na verdade, o que se coloca é a questão do inglês. O inglês, o latim dos tempos modernos, a língua do Império, não o Romano, mas o Americano. O objetivo de nossos dirigentes políticos, econômicos e universitários é de transformar os pequenos franceses em perfeitos franco-americanos, como houve os galo-romanos. Mas eles não conseguem. Então dão um jeito, eliminando os jovens avessos ao inglês das escolas superiores, mesmo se isso também as priva de sujeitos brilhantes; mesmo se o aprendizado de uma língua estrangeira é um revelador formidável das desigualdades sociais. Nos grandes grupos franceses do CAC 40 [principal índice da Bolsa de Paris], os conselhos de administração são realizados em inglês, mesmo em Paris, mesmo entre franceses. Ao mesmo tempo, o ensino da língua francesa é desdenhado, desprezado. As gerações jovens balbuciam uma sintaxe truncada, um vocabulário empobrecido. Ao contrário do inglês, língua sem academia, à sintaxe do simplismo, que era popular, o francês foi uma língua forjada pelas elites, cujas complexidades ortográficas, por exemplo, foram multiplicadas pra que fosse digna do latim admirado e substituído. Hoje o francês está se despedaçando, morrendo, como se ele não resistisse ao menosprezo das elites contemporâneas.
– Concordo quanto ao francês, Éric, mas espere: basta irmos pro exterior pra constatarmos que falamos muito menos inglês do que outros.
– Sim, sim, mas uma língua não é apenas um meio de comunicação. Também é uma ferramenta pra formar os cérebros, os espíritos, definir uma cultura, uma civilização. Língua é visão de mundo. Língua é política. O inglês, ou mais exatamente o “globish English” papagaiado em toda parte, é a língua da mundialização do sistema econômico liberal e global que nos governa. Foi pra afirmar a soberania da França que o rei Francisco 1.º, em seu famoso Édito (ou Ordenação) de Villers-Cotterêts em 1539, impunha a língua francesa no lugar do latim. O retorno a um bilinguismo semioficial inglês-francês é um símbolo formidável da submissão à ordem do mundo. Segundo um estudo recente realizado na União Europeia, os franceses são, junto com os espanhóis, os que menos sentem vontade de utilizar outra língua senão a própria. Deveríamos acrescentar aí os ingleses, mas ninguém exige que os ingleses falem uma língua estrangeira. Os dois povos europeus mais avessos são, pois, justamente os que tiveram vastos impérios e cuja língua, em certo momento da história, foi considerada como uma linguagem universal. Como se falar inglês consagrasse seu rebaixamento histórico, sua provincialização. A última moda nas famílias burguesas francesas é empurrar seus rebentos pro aprendizado do chinês, como se eles já quisessem se precipitar aos pés dos próximos senhores do mundo.
– Bonjour, Éric Zemmour !
– Bonjour !
– Alors, ça va vous faire plaisir, comme à nous tous ici à RTL, de savoir que notre ami Stéphane Bern a reçu hier le Prix Roland-Dorgelès, qui recompense les professionnels de l’audiovisuel particulièrement attachés à la langue française. Parce que je vous sens chagriné ce matin après la présentation par Luc Châtel du rapport de la Commission stratégique des langues, rapport qui prône l’apprentissage de la deuxième langue dès la sixième, Éric.
– Oui, we are ridiculous, “nous sommes nuls”, en français. Depuis des années on ne cesse de nous le dire, les rapports s’accumulent pour le répéter : les ministres de gauche comme de droite se succèdent pour nous faire honte. Et nous sommes toujours aussi nuls : on nous promet les langues étrangères en primaire et puis en maternelle, bientôt dans le ventre de notre mère. Mais rien n’y fait : nuls. On n’arrive pas à apprendre l’anglais correctement pour nous aider, on nous promet deux langues vivantes dès la sixième – et pourquoi pas trois ? La question des langues étrangères est en fait posée de manière très hypocrite : c’est la question de l’anglais qui se pose en réalité. L’anglais, le latin du temps moderne, la langue de l’Empire, non pas Romain, mais Américain. L’objectif de nos dirigeants politiques, économiques, universitaires est de transformer les petits Français en parfaits Franco-Américains, comme il y eut des Gallo-Romains. Mais il n’y arrivent pas. Alors ils manient la trique, éliminent les jeunes gens rétifs à l’anglais des grandes écoles, même s’ils se privent ainsi de sujets brillants ; même si l’apprentissage d’une langue étrangère est un formidable révélateur des inégalités sociales. Dans les grands groupes français du CAC 40, les conseils d’administrations se déroulent en anglais, même à Paris, même entre Français. Au même moment, l’enseignement de la langue française est dédaigné, méprisé. Les jeunes générations ânonnent une syntaxe trunquée, un vocabulaire appauvri. Contrairement à l’anglais, langue sans académie, à la syntaxe du simplisme, parce que populaire, le français fut une langue façonnée par les élites, dont les complexités orthographiques, par exemple, firent multipliées à loisir pour être digne du latin admiré et remplacé. Aujourd’hui le français s’étiole, se meurt, comme s’il ne résistait pas au mépris des élites contemporaines.
– D’accord pour le français, Éric, mais attends : il suffit d’aller à l’étranger pour constater qu’on parle beaucoup moins l’anglais que d’autres.
– Oui, oui, mais une langue n’est pas seulement un moyen de communication. C’est aussi un outil pour former les cerveaux, les esprits, définir une culture, une civilisation. Une langue, c’est une vision du monde. Une langue, c’est de la politique. L’anglais, ou plus précisément le “globish English”, recraché partout, est la langue de la mondialisation du système économique libéral et global qui nous régit. C’est pour affirmer la souveraineté de la France que François Ier, dans son fameux Édit de Villers-Cotterêts en 1539, imposait la langue française à la place du latin. Le retour à un bilinguisme quasi-officiel anglais-français est un formidable symbole de soumission à l’ordre du monde. Selon une étude récente réalisée dans l’Union européenne, les Français sont, avec les Espagnols, ceux qui ressentent le moins l’envie d’utiliser une autre langue que la leur. On devrait y ajouter les Anglais, mais personne ne demande aux Anglais de parler une langue étrangère. Les deux peuples européens les plus rétifs sont donc justement ceux qui ont eu de vastes empires et dont la langue, à un moment de l’histoire, fut considérée comme un langage universel. Comme si parler anglais consacrait leur rabaissement historique, leur provincialisation. La dernière mode dans les familles bourgeoises françaises est de pousser leurs rejetons vers l’étude du chinois, comme s’ils voulaient déjà se précipiter aux pieds des prochains maitres du monde.
“L’anglais a complètement écrabouillé les autres langues” (O inglês esmagou completamente as outras línguas), programa de debates do canal CNEWS, 16 de fevereiro de 2021.
L’anglais a complètement écrabouillé les autres langues, et en particulier le français, et effectivement si les Anglais n’étaient pas sortis, s’il n’y avait pas eu le Brexit, on n’aurait même pas cette discussion. C’était acté pour tout le monde, et les Français, une fois de plus, pour la plupart, avaient accepté leur défaite. C’est uniquement parce que les Anglais sont sortis qu’il ne reste, en vérité, que deux pays, Malte et Irlande, à parler anglais. Donc ça fait 5 [cinq] millions d’habitants sur 540 [cinq-cent-quarante] millions, 544 [cinq-cent-quarante-quatre] millions, donc ça fait pas lourd ! Qu’on commence à se dire : “Mais tiens, on pourrait opter de parler autre chose que l’anglais”, voyez ! Et que les esprits s’échauffent. Donc je pense effectivement que c’est le moment de lancer une controffensive en faveur du français, de rappeller que le français était la langue originelle des institutions européennes, que l’anglais ne devait pas le remplacer et qu’il n’y a aucune raison de parler anglais alors que les Anglais en sont sortis. Bien, c’est l’occasion rêvée, encore faut-il la souhaiter et engager le combat.
O inglês esmagou completamente as outras línguas, e em especial o francês. Definitivamente, se os ingleses não tivessem saído, se não tivesse havido o Brexit, sequer estaríamos tendo essa discussão. Todo mundo já tinha percebido, e os franceses, mais uma vez, em sua maioria, tinham aceitado sua derrota. É unicamente porque os ingleses saíram que só restam, na verdade, dois países, Malta e Irlanda, que falam inglês. E isso dá 5 milhões de habitantes entre os 540, 544 milhões, portanto não é muita coisa! Comecemos a dizer: “Mas veja, podíamos escolher falar outra coisa que não fosse inglês”, entendam! E que os espíritos se inflamem. Então penso definitivamente que é hora de lançarmos uma contraofensiva a favor do francês, de lembrar que o francês era a língua original das instituições europeias, que o inglês não deveria o substituir e que não há nenhuma razão pra falar inglês agora que os ingleses as deixaram. Bem, é a chance dos sonhos, falta ainda velar por ela e travar o combate.
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