A Prof.ª Dr.ª Anita Leocádia Prestes nasceu em 1936, num campo de concentração da Alemanha nazista, de mãe comunista deportada do Brasil pela ditadura de Getúlio Vargas, Olga Benario, muito celebrada recentemente por seu enfrentamento ao nazismo nos dois lados do Atlântico e por sua persistência em não trair os companheiros de causa. O pai de Anita é Luiz Carlos Prestes, ex-militar que iniciou sua revolta ainda em meados da década de 1920 contra o regime oligárquico então vigente no Brasil, aderiu às ideias comunistas no exílio em 1930 e se formou um alto quadro stalinista diretamente na antiga URSS, no início da década de 1930, tendo sua adesão imposta pela Comintern ao PCB, que finalmente só o aceitaria em 1934. Quem lê muito esta página e quem acompanha minhas pesquisas desde a graduação, sabe que o referido casal faz parte de meu tema de doutorado, por isso tenho muitas leituras tanto sobre ele, quanto de obras da historiadora Anita.
Luiz Carlos e Olga se conheceram em Moscou, quando a alemã tinha sido encarregada de cuidar da segurança do brasileiro durante sua volta secreta ao Brasil, no início de 1935. Mesmo devendo apenas fingirem ser um casal binacional, os dois acabaram se apaixonando no navio, onde Anita acabaria sendo “fabricada”, rs. Após as insurreições militares de novembro de 1935, que na verdade (exceto no Rio de Janeiro) pegaram a liderança do PCB de surpresa, Vargas ganhou de bandeja um álibi pra esmagar toda e qualquer oposição, em especial a comunista, e todo o Comitê Central do PCB e os enviados técnicos estrangeiros foram alvo de uma longa caçada policial. Em janeiro de 1936, Luiz Carlos, cuja fama de líder popular remontava a bem antes de sua adesão ao comunismo, e Olga foram finalmente presos, e enquanto ele ficaria detido até a anistia política geral de abril de 1945, ela seria deportada à Alemanha, onde daria à luz Anita e morreria num campo de concentração nazista em 1942. A criança só seria entregue à avó paterna pra futura criação após ampla campanha de solidariedade internacional, mas Prestes, seguindo a linha determinada pelo PCB (e com sua anuência) enquanto estava preso, debelou qualquer ódio pessoal que pudesse nutrir contra o ditador e apoiou sua permanência no poder até a adoção final de uma nova Constituição. Contudo, Vargas seria derrubado pela própria cúpula militar em outubro de 1945, antes mesmo que fosse eleito seu sucessor. E este, por ironia do destino, mas nada anormal na Banânia, seria um dos generais golpistas: Eurico Dutra.
A. L. Prestes só conheceria o pai como menina crescida, após o fim da 2.ª Guerra Mundial e a saída de Luiz Carlos da prisão, tendo-o ajudado nessa nova fase da militância. Graduada e mestra em engenharia química no Brasil, exilou-se com a família em Moscou após o golpe de 1964 e lá se doutorou em economia política, e tendo voltado ao Brasil com a anistia, obteve outro doutorado, mas em história, e justamente sobre a “Coluna Prestes” protagonizada por seu pai na década de 1920. Sua atuação acadêmica (professora e orientadora) e seus muitos livros e artigos são dedicados em sua maioria à “história comparada” entre os vários períodos da existência do PCB e à biografia política de Luiz Carlos Prestes, e sua mais recente obra relevante, recentemente traduzida em alemão, dedica-se à biografia da mãe, Olga Benario, com muitos arquivos da Gestapo e da antiga Alemanha Oriental pouco ou não explorados. A. L. Prestes, mesmo não reivindicando abertamente Stalin e até rejeitando o pensamento político de Mao Zedong, mantém-se fiel ao comunismo leninista e ao modelo de sociedade socialista construído na antiga URSS e transplantado aos países vizinhos. Pela sua biografia, percebemos que foi vítima direta ou indireta de vários regimes autoritários, como o varguista, o nazista e o militar no Brasil de 1964-85, e sempre defendeu políticas progressistas e se manteve ao lado dos pobres e oprimidos.
Mesmo com tal currículo, e mesmo citando a frase “Estudar, estudar e estudar”, atribuída a Lenin, Anita deu uma asquerosa entrevista a um canal chamado “Tutameia” (procure, não vou pôr link nenhum aqui) no fim de junho, logo após a rebelião de Ievgeni Prigozhin contra os líderes militares russos. O casal esquerdista responsável pelo canal já deu voz a muitas outras figuras de probidade bastante duvidosa, que passam um pano descarado pra ditadura assassina de Putin e repetem as mesmas falácias sobre a “Ucrânia nazista”, o “golpe de Estado” em Kyiv em 2014 e as “terras historicamente russas” da Crimeia e do Donbás. Dada sua adesão ideológica, não seria muita surpresa que Anita passasse pano, ainda que não explicitamente, ao tirano do Kremlin e comprasse sua narrativa do mal que acomete a Ucrânia desde o Euromaidan. Porém, de alguém que dá aulas, escreve livros e artigos e domina grande parte da história contemporânea, não se esperaria uma fala tão balbuciante, hesitosa e cheia de contradições, simplificando de modo impressionante tudo o que está em jogo e não sabendo sequer definir o “fascista” e o “nazista” que ela alterna sem critério nenhum pra descrever o “regime de Kyiv” em vigor desde 2014. Entende-se também que então, a rebelião do Grupo Wagner ainda estava mal explicada, mas Anita se evade como se o recurso a mercenários não fosse estrutural ao militarismo russo, e como se Prigozhin não tivesse cometido os piores crimes ao arrancar pessoas da cadeia e usá-las como carne de canhão em algo tão irrelevante quanto a captura da minúscula Bakhmut!
“Zelinsky” é nazista, a Ucrânia vive uma “ditadura feroz, brutal e assassina” manipulada pelos EUA e pela OTAN (tal “manipulação” é em parte verdadeira, mas ou é isso, ou é serem exterminados pela Rússia), Putin tem condições de vencer a guerra, e pasmem, a Crimeia e o Donbás “sempre foram territórios russos”! Não houve qualquer tentativa de se informar mais, não houve aporte de provas e dados, não houve uma compreensão do processo político ucraniano desde o Euromaidan (a “ditadura” em que um presidente não conseguiu ser reeleito e em que seu sucessor teve ampla maioria nos territórios russófonos!), e o pior, não houve uma palavra pra descrever o descalabro humanitário que o mafioso de Leningrado impôs à Rússia e à Ucrânia, onde simplesmente está bombardeando infraestruturas civis e matando a população comum sem o mínimo critério! É a mera repetição de chavões da propaganda eurasiana, adotada por grande parte dos brasileiros apenas por mera birra contra o “imperialismo estadunidense”. Não há menção à chantagem atômica, à desestabilização na Geórgia e na Moldova, à eliminação pura e simples de opositores políticos e à prisão com altíssimas penas de cidadãos comuns que simplesmente criticam nas redes sociais o genocídio em curso; ah, mas a ditadura brutal e assassina é a Ucrânia!
Resumindo, os “Tutameia” só chamam aqueles a quem querem ouvir, que se dispõem a falar o que o público fidelizado quer ouvir, e não dão qualquer espaço ao contraditório, mesmo dentro do próprio campo progressista ou coerentemente antiautoritário.
Enfim, você que é inteligente, informado e me acompanha há anos, não consegue chegar ao nível de cegueira voluntária da Anita, por isso não vou citar todos os pontos que poderiam ser refutados com uma simples pesquisa a fontes probas amplamente disponíveis. Você, também espero, certamente acessa muitos sites e canais em várias línguas, com informações atualizadas, e não se limita à mesma demonização binária da “mídia tradicional” que só conhece os velhos jornalões impressos. Ela ainda usa como contraponto um único artigo do New York Times que pode rapidamente envelhecer, enquanto a tendência é diversos portais, sobretudo em inglês, transmitirem os eventos em tempo real e publicarem diversas atualizações a cada minuto! Aliás, pra quem não entender a referência, o Resistir.info é uma pagineta abandonada com design da década de 1990, limitada a meras análises partidárias e que por vezes defende as piores ditaduras (“anti-imperialistas”, claro) e o stalinismo mais grotesco.
Descontando, claro, o resto da entrevista, que tem conclusões muito boas, segue a seleção das asneiras sobre a Ucrânia, caso você tenha estômago e psicológico: