Este artigo do jornalista ucraniano Andrii Movchan, que assina “Andreu Movtxan” na tradução em inglês, foi publicado em 21 de fevereiro de 2023 no portal de esquerda September, que procura congregar numa tribuna comum militantes do Antigo Espaço Soviético contra o atual estado de coisas na região, sobretudo o domínio da política e ideologia de Vladimir Putin. Traduzido pro inglês por Rachael Horwitz e, acredito, do inglês pro português pela gentil contribuição de Tiago Rocha Gonçalves, ativista pró-Ucrânia, lemos em “A liquidação do legado da Revolução como ideologia da invasão russa” (Liquidating the Legacy of Revolution: Ideology of the Russian Invasion) como a conquista de um Estado próprio pelos ucranianos, longe de ser uma ideia “fascista” ou “nazista”, está intimamente ligada às consequências da ruína da monarquia absolutista, esta sim o passado mítico que o atual inquilino do Kremlin cultiva. Quem vê no expansionismo e no militarismo eurasianistas uma busca pela “ressurreição da URSS”, precisa entender que o Poder Soviético, na cabeça dessa extrema-direita, na verdade foi apenas uma forma de conservar o velho império, e que sua restauração é uma obsessão de Putin já acalentada há muitos anos.
Agradeço meu amigo Tiago, que já contribuiu com a tradução das canções ucranianas Brilhe, luazinha, Handzia e A miséria me obrigou. Sem comparar com os originais, apenas alinhei o texto a meu estilo e minha transliteração do cirílico, e sem mais delongas, vamos a ele!
1991, Leningrado. O escritório do vice-prefeito da cidade. Um repórter entrevista um jovem funcionário da equipe de Anatoli Sobchak para o canal de TV local. Na tela, um homem ainda com cara de criança, vestindo uma camisa branca. Atrás dele se vê uma janela com persianas, uma televisão, uma lâmpada de mesa, um telefone fixo, pastas abertas com papéis. Um típico ambiente de escritório soviético. Mas algo parece estar fora do lugar. Atrás das câmeras, a voz do jornalista diz que, ontem, ele podia ainda ver um busto de Lenin no escritório, mas que hoje, ele tinha desaparecido. O que teria acontecido?
“É difícil pra mim responder o que aconteceu. Porque isso, provavelmente, foi feito por um de meus assistentes”, responde o funcionário. “Se você quiser saber o que eu acho dessa pessoa (Lenin), da doutrina que ele supostamente representava, então eu diria [...] que tudo isso é nada mais do que um lindo e nocivo conto de fadas. Nocivo porque a implementação, ou tentativa de implementação dela, na vida de nosso país causou um enorme dano. E a respeito disso, eu gostaria de falar sobre a tragédia pela qual estamos passando hoje. Nomeadamente, a tragédia do colapso de nosso Estado. Não se pode chamar de nada além de tragédia. Eu acho que foram os líderes do Dezessete de Outubro que colocaram uma bomba-relógio debaixo da fundação do Estado unitário chamado Rússia. O que eles fizeram? Eles partiram a nossa pátria em principados separados, que não apareciam anteriormente no mapa, de forma alguma, e dotaram esses principados com governos próprios e parlamentos, e agora, nós temos o que temos [...] [e] é em grande medida culpa dessa gente, quer eles queiram ou não.”
O funcionário da prefeitura de São Petersburgo que, com críticas tão devastadoras, tinha atacado o legado da Revolução e Lenin pessoalmente, era Vladimir Putin, na época com 39 anos. Mais tarde, já ocupando o posto de presidente da Federação Russa, ele repetiria várias vezes, em suas entrevistas e discursos, a ideia de que o colapso da União Soviética instaura “a maior catástrofe geopolítica do século 20” e que os perpetradores dessa catástrofe eram revolucionários aventureiros que sonhavam com a realização de seus projetos utópicos a qualquer custo, e em particular, o custo do desmembramento da soberania russa.
Putin reproduziu o mesmo conceito em seu discurso-chave de 21 de fevereiro de 2022, no qual proclamou as fundações ideológicas da invasão à Ucrânia, que começaria três dias depois.
“Então vou começar pelo fato de que a Ucrânia moderna foi inteira e completamente criada pela Rússia, mais precisamente pela Rússia comunista bolchevique. Esse processo começou praticamente logo depois da revolução em 1917, e Lenin e seus colegas fizeram isso de uma forma muito crassa para a própria Rússia – às custas de sua separação e exclusão de seus territórios históricos.”
“Bolcheviques sacrificam a Rússia para a Internacional” – Caricatura da Guarda Branca, 1918-19. Escrito em destaque: “Sacrifício pela Internacional”.
Por que exatamente 1917 foi escolhido como o ponto de partida pra essa excursão histórica? Por que não a longínqua antiguidade ou, por outro lado, algum evento mais próximo da modernidade? A Revolução se tornou um momento decisivo que predestinou, de acordo com Putin, os desafios que a Rússia está enfrentando agora. Os quais, como que por obra do destino, ele ficou responsável por resolver.
O que a Revolução fez? Putin se aprofunda em detalhes nesse tópico. A Revolução lesou uma certa ordem milenar e inabalável das coisas – o Império Russo “unido e indivisível”. Aboliu centenas de anos em conquistas territoriais do Império da noite pro dia, dando aos povos oprimidos o direito à autodeterminação. Este é seu principal “pecado”.
“[...] As ideias de Lenin, de fato, de uma estrutura de Estado confederada, e o lema do direito à autodeterminação levado até a cisão, estabeleceram as bases do Estado soviético”, diz Vladimir Putin. “Aqui, aparecem imediatamente muitas questões. A primeira delas é de fato a principal: por que, por meio de uma ostentação cerimoniosa, tiveram de satisfazer cada um dos incessantes anseios nacionalistas das periferias do antigo Império [...] dando o direito a essas repúblicas de se separar do Estado unitário sem quaisquer condições?”
Parece que Putin não entende, ou finge não entender, que o exasperado problema das “periferias nacionais” oprimidas do Império Russo foi um dos principais fatores de todas as três revoluções do começo do século 20. A ordem da Rússia tsarista tinha se tornado obsoleta, e mudanças há muito necessárias não podiam contornar a questão nacional, que também precisava ser resolvida. As contradições que se acumularam até 1917 de maneira nenhuma colocavam a questão de como e por que preservar o “único e indivisível”, mas sim de quebrar ou não o Império em vários Estados-nações ou achar condições bem mais iguais e fundamentalmente novas de coexistência.
“Fora, águia!” – Quadro de Ivan Vladimirov, 1917.
Os revolucionários daqueles tempos acreditavam sinceramente na possibilidade de um mundo novo sem opressão, inclusive opressão imperialista de um povo sobre outro – e com sua luta, tentavam aproximar a chegada desse mundo. Pra Putin, o reconhecimento da autodeterminação dos povos do antigo Império Russo é jogar fora os territórios conquistados em centenas de anos de guerras de agressão. Contudo, pros próprios revolucionários, era o completo oposto; era a resolução das contradições urgentes surgidas exatamente por causa dessas conquistas. A libertação dos povos da opressão do Império era, pros revolucionários, a manifestação de suas ideias e crenças sobre uma sociedade nova, livre dos resquícios do passado.
“Os princípios de Lenin de construção estatal não foram apenas um erro, mas, como dizem, muito pior do que um erro. Depois da queda da URSS em 1991, ficou absolutamente óbvio, – fala Putin, – ... como consequência da política bolchevique, surgiu a Ucrânia soviética, que, em nossos dias pode-se chamar em total medida de ‘Ucrânia de Vladimir Ilich Lenin’. Ele é seu autor e arquiteto”.
Certamente, Lenin não criou Ucrânia alguma. Seus movimentos políticos e massas populares naquele tempo se tornaram um fator real não só da política russa, mas também internacional. Reconhecendo sua subjetividade e seu direito à autodeterminação, Lenin apenas admitiu o real estado de coisas, o qual já era impossível ignorar. E Putin não vai perdoar o líder bolchevique por isso.
Sem o reconhecimento da subjetividade ucraniana e do direito à autodeterminação, dificilmente seria possível reagrupar os territórios do antigo Império numa única união estatal. Lenin entendia isso muito bem. Vale lembrar que em seu projeto do novo Estado (Constituição), não havia a palavra “Rússia” – ao invés disso, era chamada de União das Repúblicas, onde a república russa tinha o mesmo status de qualquer outro membro.
A Rússia tsarista é uma prisão de nações. A ambição anexacionista do imperialismo tsarista. Mapa baseado em material do Instituto Isostat: “Um álbum de diagramas, mapas e cartogramas para a doutrina de Lenin sobre o imperialismo.” Izogiz, 1936.
É interessante que em seu discurso de 21 de fevereiro, Putin ataca com maior agressividade precisamente os anos iniciais do Poder Soviético, quando as ideias revolucionárias ainda eram novas, as pessoas, cheias de entusiasmo, e na política, como nunca antes ou depois, eram guiadas por ideias e princípios, não por um cinismo calculista. Ao mesmo tempo, Putin acolhe, de todas as maneiras possíveis, o distanciamento, no tempo stalinista, dos princípios proclamados pela Revolução, como um retorno à uma “ordem natural das coisas”:
“[...] a vida mostrou imediatamente que não seria possível nem preservar um território tão vasto e complexo, nem administrá-lo conforme os princípios confederativos propostos, de fato amorfos. [...] [Eventos posteriores transformaram] os princípios declarados, mas não operantes, da estrutura estatal em uma mera declaração, uma formalidade. Na realidade, as Repúblicas da União não possuíam direitos soberanos, elas simplesmente não existiam. E na prática, foi criado um Estado totalmente unitário e fortemente centralizado.”
Num afastamento da ideia revolucionária de igualdade entre as nações, a atenção de Putin se volta novamente pra boa e velha “Rússia única e indivisível”, claramente sendo de seu gosto. Mas um retorno total já era impossível. O “lixo revolucionário” já tinha sido posto por Lenin nas fundações desse novo Estado.
“Ainda assim, é uma pena, realmente uma pena, que das fundações básicas e formalmente legais nas quais nossa soberania foi construída, as odiosas e utópicas fantasias inspiradas pela Revolução, mas absolutamente destrutivas para qualquer país normal, não foram imediatamente erradicadas.”
Coleção de artigos de Vladimir Lenin sobre a Questão Nacional, Moscou, Politizdat, 1969.
É difícil entender o que Putin chamaria de “país normal”. Se esses são impérios colonialistas, fundados em conquistas cruentas e na submissão de outros povos, então é improvável que tais Estados possam ser chamados de normais, ou mesmo viáveis, nas condições históricas correntes.
A 1.ª Guerra Mundial colocou um fim em quatro grandes impérios – o otomano, o austro-húngaro, o alemão e o russo. Depois da Segunda Guerra, os restantes desapareceram no esquecimento – o britânico, o francês, o português, o holandês, o italiano e o japonês. Não, o imperialismo no entendimento leninista não foi a lugar algum; formas mais sofisticadas e extraterritoriais de influência e controle chegaram pra substituir sua forma imperial-colonial.
O único superestado que herdou quase todos os territórios conquistados do outrora Império foi a União Soviética, com o famoso quarto da massa territorial do planeta Terra. Mas conseguiu reintegrar e preservar a unidade do Estado por mais 70 anos, nada graças à concepção imperialista, porém, ao contrário, pela sua rejeição.
A ideia da União das Repúblicas Socialistas era precisamente que trabalhadores de diferentes nações se unissem voluntariamente pra, em conjunto, atingirem metas em comum – a construção de uma nova sociedade sem exploração e opressão. Ademais, o modelo inventado por Lenin pressupunha a possibilidade dessa união aumentar. Em sua concepção, cada vez mais repúblicas deveriam se juntar à união, de tal forma que a revolução venceria; no entanto, a Rússia histórica não necessariamente continuaria sendo o ponto focal dessa união. Seu centro poderia muito bem ser a Alemanha, se a revolução do proletariado tivesse vencido lá. Assim, Lenin via a União das Repúblicas numa escala mundial.
Rússia – URSS – URSS mundial: coleção / Autores: Red Banner e trabalhadores estrangeiros. Profizdat, 1932.
Além disso, inicialmente, a criação da URSS no formato de 1922 não estava incluída nos planos dos bolcheviques. Sua aparência foi o resultado da falha de suas expectativas iniciais: a revolução mundial. O fato de a revolução proletária ter falhado na Europa e se trancado bem no território do antigo Império Russo foi a principal tragédia do projeto socialista do século 20. Isso porque, junto com seu território, a URSS herdou as muitas contradições e vícios difíceis de resolver, inerentes ao projeto que existia anteriormente nessas terras.
O fechamento do projeto socialista às fronteiras do Império naturalmente, porém não inevitavelmente, fez com que, tanto dentro quanto fora da URSS, ela começasse a ser percebida como sucessora e herdeira do Estado russo. A consequência disso foi a recaída nas contradições nacionais; foi quando o Estado começou a perceber no fortalecimento das culturas nacionais e na independência das repúblicas uma ameaça à unidade desenhada, e na cultura russa, uma continuidade estatal, uma espécie de fundação agregadora.
Seria possível reviver essas tendências se as fronteiras do Estado socialista fossem formadas em configurações distintas, e não se parecessem com a Rússia imperial? Teria sido uma história completamente diferente. Mas acabou que, no caso da URSS, várias gerações de pessoas, dentro e fora dela, cresceram com a convicção de que as palavras “União de Repúblicas Socialistas Soviéticas” e “Rússia” eram sinônimos, ou, ao menos, quase. Putin é uma dessas pessoas.
“Afinal, o que é o colapso da União Soviética? É o colapso da Rússia histórica, sob o nome de União Soviética”, declarou Vladimir Putin no filme-documentário “Rússia. História recente”, em dezembro de 2021.
Talvez o único ponto positivo que Putin vê no projeto soviético seja que ele se limitou ao território do Império Russo e que ao longo do tempo, distanciando-se dos princípios utópicos originais, retomou algumas das características dele, tornando-se seu herdeiro. Em outras palavras, ele exalta precisamente os atributos mais reacionários da URSS, adquiridos durante as condições extremas de sua formação. E critica os ideais nos quais a União foi fundada: igualdade e fraternidade entre os povos, internacionalismo genuíno, ódio à autocracia e ao grande poder, ódio à predação e às guerras de conquista, um verdadeiro espírito democrático, trazendo as massas à política, na ordem dos milhões.
Peculiarmente, a vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazista, nas interpretações em que se baseia o atual mito nacional russo, pra Putin, não é uma vitória do humanismo e da igualdade sobre os ideais do anti-igualitarismo e anti-humanismo radicais, não uma vitória da vítima sobre o agressor. Na atual mitologia estatal, é a vitória da “Rússia histórica” sobre a Alemanha, sobre a Europa, sobre o Ocidente. O triunfo do Estado russo e a expansão de suas fronteiras. Assim como a revolução e a saída da 1.ª Guerra Mundial não foram a recusa de participar de um massacre imperialista, mas sim uma derrota vergonhosa da “Rússia histórica”; uma facada nas costas do Estado pelas fantasias utópicas. Um atentado ao Estado russo que quase se desintegrava.
“Os bolcheviques queriam derrotar sua pátria durante a Primeira Guerra Mundial, e quando os heroicos soldados e oficiais russos derramavam o sangue nas linhas de frente, alguém tentou balançar a Rússia por dentro, ao ponto de a Rússia como Estado entrar em colapso e se declarar perdedora – ao país que perdeu a guerra [Alemanha]. Delírio, loucura, mas aconteceu. A completa traição aos interesses nacionais! Tais pessoas ainda hoje estão entre nós [...]”, disse Putin, em agosto de 2016, no acampamento Seliger de jovens.
“A Pátria está em perigo. O sangue que derramamos exige que ganhemos a guerra. Camaradas soldados, para as trincheiras imediatamente. Devolvam Lenin a Guilherme” – lema da manifestação antibolchevique em Petrogrado, abril de 1917.
Pelas citações acima, não é difícil adivinhar o quão sinceramente Putin atribui os problemas da Rússia à “maldição da revolução”. Se na Ucrânia moderna acusa-se o projeto soviético de ser “russo demais”, então é exatamente isso (se não exclusivamente) o que Putin aprecia no projeto. Se na Ucrânia, dizem que Lenin não deu aos ucranianos genuína autodeterminação, Putin o culpa pelo oposto – que ele lhes deu liberdade demais.
Voltemos à questão proposta no começo. Por que o discurso-chave do presidente russo antes da invasão se tornou um verdadeiro libelo contrário à Revolução? Porque é na Revolução que ele vê a real raiz dos problemas russos. Mas ele não está simplesmente acusando Lenin de traição e crimes contra a integridade territorial russa. Putin decide que é chegada a hora de corrigir os “piores que erros” de Lenin, e retroceder no direito dos ucranianos à autodeterminação, o legado da revolução “três vezes amaldiçoado”.
“Vocês querem a descomunização? Pois isso nos serve muito bem. Mas não há necessidade de, como dizem, parar no meio do caminho. Estamos prontos para mostrar o que realmente significa a descomunização para a Ucrânia”.
No dia 24 de fevereiro de 2022, tanques russos invadiriam a Ucrânia pra tirar de seu povo o direito ao Estado – que foi uma das maiores conquistas da Revolução no começo do século passado.
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