quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Aprenda de vez a usar os “por que”


Link curto pra esta publicação: fishuk.cc/porque


Finalmente estou fazendo uma publicação só pra tirar esta eterna dúvida ortográfica. Uma vez, fiz um pequeno texto na aba Comunidade de meu antigo canal no YouTube, mas agora quero aperfeiçoá-la e reescrevê-la aqui. Não existe uma só pessoa que escreva na internet, seja em redes sociais ou mesmo sites de grandes veículos de mídia, que não tropece no uso das diversas formas da conjunção “por que”, e mesmo em textos acadêmicos é possível notar a confusão. Sobre o uso da “crase” (à ou a) não preciso nem falar, porque reina a anarquia, pelo menos nas redes sociais, e mesmo entre pessoas reputadamente cultas: quando não é pra ter o acento, ele está lá, mas quanto ele é obrigatório, nota-se sua ausência. Mas isso é assunto pra outra publicação.

Na verdade, o uso dos “por que” é um assunto pra ser estudado, e em tese aprendido, ainda por volta do quarto ou sexto ano do Fundamental. E como gosto de ortografia e gramática, resolvi compartilhar aqui minha ajuda a quem precisa. De fato, o caso do português é particular, porque lida com uma homofonia (isto é, pronúncias iguais) ausente ou menor em outros idiomas, e cuja semântica se esconde sob ortografias muito escorregadias. Mas se aprendermos cada caso, não é algo difícil demais, e os textos vão passar mais facilmente em processos seletivos pra empregos, faculdades ou pós-graduações.

Vamos usar o exemplo clássico da pessoa que não vai a uma festa. Ele é muito corrente nas escolas, pelo menos na minha cabeça, porque festas são compromissos que acabam gerando muita cobrança social, portanto muitos questionamentos sobre motivos e... “porquês”. Claro que vou variar com exemplos diferentes, e de quebra trazer o máximo possível de exemplos de outras línguas. Sem mais delongas, ao que interessa.


“Por que” separado e sem acento: serve pra iniciar perguntas sobre a razão, o motivo de alguma coisa, e sempre ocorre no começo de uma oração. Exemplos: Por que você não foi à festa? / Ontem choveu muito, mas por que você não foi à festa?

Mesmo não sendo uma expressão interrogativa, “por que” pode aparecer separado e no meio da oração quando o sentido assim o exige, ou seja, quando queremos dizer “pelo qual”, “através de que/qual” “por meio de (que/qual)” etc. Exemplos: Por que razão você não foi à festa? / Não sei por que razão ele não foi à festa. / É muito burro, eis por que [= por isso que] não passou na prova. / O túnel por que passamos era muito escuro. / Os problemas por que passamos nos ensinam muito. / Por que caminho você foi? / Não vale relembrar aquilo por que se chora. / Deve-se conhecer aquilo por que se luta.

“Por quê” separado e com acento: tem o mesmo sentido do anterior, embora quase sempre se esteja questionando a causa de algo, mas a característica principal é que sempre está no fim da oração, logo antes do ponto de interrogação ou final, e às vezes da vírgula. Por regra, não é seguido de outro substantivo. Exemplos: Você não foi à festa, por quê? / Não sei por quê, mas ele não foi à festa. / Ele não foi à festa, não sei por quê. / Por quê [= Por que a pergunta?], você não o encontrou? / No confinamento, você passou por quê? [= pelo quê?] / Para atravessar o rio, devo passar por quê? [uma ponte, um tronco?] / Você luta por quê? [= pelo quê?] / Ele passou não sei por quê, mas está bem triste.

Deve-se notar que “pelo que/quê”, onde pode ser empregado, é mais corrente e coloquial e menos livresco, pois evita ambiguidade e geralmente exclui o sentido de “por que razão”, subentendendo-se outros elementos (geralmente na figura do pronome indefinido “o” = “aquilo”) em cuja intenção se realiza a ação expressa pelo verbo.

Nota inútil: muitos anos atrás, quando via alguns vídeos da Kéfera no seu canal “5incominutos” pra saber de quem se tratava, já vi até descrição de vídeo que começava com pergunta, mas escrita assim: “Por quê... ?”. Não me lembro do que se tratava.

“Porque” junto e sem acento: como conjunção, nunca aparece sozinha e tem apenas a função de introduzir a razão daquilo sobre o que indaga o interlocutor. Geralmente a parte anterior da frase não leva vírgula. Exemplos: Não fui à festa porque estava trabalhando. / – Por que você não foi à festa? – Porque fiquei trabalhando. / Porque não tinha dinheiro, fiquei sem almoço. / Só porque é medroso, não sai à noite. / Fui a São Paulo e a poluição era insuportável. É porque tinha muito carro na rua. / O quarto vive bagunçado. Tudo porque as crianças são relaxadas!

Se colocamos primeiro a causa e depois a consequência, geralmente substituímos o “por que” da pergunta por “por isso” (que alguns desmiolados erroneamente escrevem junto: “porisso”...), porque não se trata de uma pergunta de resposta variável, mas de uma pergunta com resposta “sim” ou “não”. Exemplos: Estava trabalhando, por isso não fui à festa. / [Supondo-se que não se tinha perguntado nada] – Trabalhei muito ontem. – Por isso você não foi à festa? / É um medroso, e só por isso não sai à noite?

“Porquê” junto e com acento: não se aplica a nenhum dos casos acima, é meramente um substantivo com o mesmo sentido de “razão”, “causa”, “motivo” ou, com mais ironia ou depreciação, “pretexto”, “desculpa”, “explicação”, “justificativa”. Exemplos: Qual o porquê dele não ter ido à festa? / Não sei o porquê dele não ter ido à festa. / Você sabe o porquê de tanto calor? = Você sabe por que [o tempo] está tão quente? / Esse calor tem que ter um porquê. / Ele não foi à festa e não disse o porquê. / Lá vem você de novo com seus porquês! / Deu muitos porquês, mas não soube se explicar.


Comparação com outras línguas: em boa parte das línguas, simplesmente temos palavras diferentes pra expressar os diversos tipos de “por que”, ou elas podem ser iguais, mas se escrevem da mesma maneira quando as pronúncias são idênticas. O exemplo clássico é o do inglês, em que temos why tanto pra “por que” quanto pra “por quê”, because pra “porque” e, entre outras, reason ou cause pra “porquê”.

Quem está aprendendo francês pode cair em algumas pegadinhas no começo. Via de regra, pourquoi significa “por que” ou “por quê”, parce que significa “por que” e pourquoi também pode ser usado como substantivo, ao lado de raison, cause, motif e outros sinônimos. Nesse caso, pourquoi é sempre junto, pois pour quoi significa “pelo quê” – implicando algum verbo de intenção que exija a preposição pour –, em fim de frase ou porque, tratando-se de coisas, sempre usamos o quoi no lugar de que após preposições.

Algumas frases e suas traduções:

– Pourquoi tu m’aimes ? (Por que você me ama?)
– Parce que tu est très jolie. (Porque você é muito linda.)

Louis aime Anne parce qu’elle est très jolie. (Louis ama Anne porque ela é muito linda.)
Anne est très jolie, c’est pourquoi Louis l’aime. (Anne é muito linda, por isso/é por isso que Louis a ama.)
Anne est très jolie, et pour cela/ça Louis l’aime. (Anne é muito linda, e por isso Louis a ama.) Veja a fina diferença de tradução, mas não de sentido, em relação à anterior.
Comme Anne est très jolie [mais correto do que Parce qu’Anne...], Louis l’aime. (Como/Porque Anne é muito linda, Louis a ama.)

– Je ne sais pas pourquoi Louis aime Anne. (Não sei por que Louis ama Anne.)
– C’est parce qu’elle est très jolie. (É porque ela é muito linda.)

– Oh là là, Anne est très jolie ! (Puxa, Anne é muito linda!)
– C’est pourquoi Louis l’aime. (Por isso que Louis a ama.)

Em italiano, perché (se lê “perquê”) é usado em todos os sentidos expressos por nossas quatro ortografias, inclusive o substantivo “porquê”, e também é usado no sentido de “para que” (Dei presentes para que se lembrassem de mim), “de forma/maneira a”, “visando”. Eu poderia colocar mais exemplos com o alemão, o russo e o búlgaro, mas vai ficar muito pesado, inclusive pra mim.

Porisso Por isso, aproveitando a deixa, queria instigar ao combate a mais duas pragas ortográficas que parecem inextirpáveis das redes sociais: escrever afim de junto, quando deveria ser separado (a fim de), e nada haver, quando, expressando a inexistência de vínculos ou relações, deveria ser nada a ver. (Curiosamente, em francês é igual ao português: rien à voir, e soa da mesma forma se nossa ortografia errada fosse traduzida ao pé da letra: rien avoir!)

A fim de, SEPARADO, significa “com a intenção de” ou “com vontade de”, e também se usa pra expressar interesse amoroso por outra pessoa: Ela está a fim de mim. O adjetivo afim só é usado JUNTO no sentido de “com afinidade”, “afinado a”, “de gostos ou tendências iguais”: Somos duas pessoas muito afins. / Prefiro namorar alguém mais afim [= com mais afinidade ou coisas em comum; “a fim” poderia indicar alguém com mais interesse, mesmo que com menos semelhança].

E nem preciso dizer que escrevemos nada a ver porque a expressão originária é “ter a ver com”, ou seja, “ter relação ou vínculo com”. Podíamos dizer também “muito a ver”, “algo a ver”, “um pouco a ver”. Na linguagem coloquial já ouvi “não tem nada que ver”. É simplesmente uma expressão idiomática que não tem “nada a ver” com o verbo “haver”, que significa “existir” ou “estar/encontrar-se (em)”. Certa vez, acho que no Twitter, quase caí de costas quando alguém dobrou o erro, escrevendo “nada a haver”!



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