Há alguns anos, um professor de filosofia brasileiro, de cujo nome sequer me lembro mais, encomendou-me a tradução da resenha “Фальсификация истории философии” [Falsifikatsia istorii filosofii], literalmente “A falsificação da história da filosofia”, assinada apenas por P. Trofimov e Ie. Pomogaieva e dedicada ao livro History of Western Philosophy and its Connection with Political and Social Circumstances from the Earliest Times to the Present Day (Londres, 1946, 916 p.), do célebre Bertrand Russell. O texto foi publicado em russo na “Большевик” (Bolshevik), revista teórica e política do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética (Moscou, ano XXV, n.º 11, 15 de junho de 1948, pp. 71-78), e eu não sei exatamente a razão pela qual aquele senhor quis a tradução. Ele me deu também o texto original de outra resenha soviética do mesmo livro ou de algum outro livro de Russell, porém publicada após 1956 (“denúncias dos crimes” de Stalin) e num tom bem mais ameno e elogioso, a qual não cheguei a traduzir. Como também pretendo publicá-la em outra ocasião, dei o número 1 à presente URL curta. Por pura coincidência, hoje é o aniversário de 105 anos da Revolução de Outubro...
Como não publiquei minha tradução em nenhum outro lugar, e como acredito que o professor só a utilizaria pra fins pessoais, estou a lançando aqui de maneira inédita, e revela como no ápice da Era Stalin as ciências humanas eram praticamente tratadas como uma extensão da propaganda política, e como mesmo num texto filosófico como esse, os comunistas adoravam usar adjetivos inúteis, fazer conjeturas infundadas e inclusive ofender pessoalmente seu oponente. Foi a escola feita pelo panfleto A revolução proletária e o renegado Kautsky, de Vladimir Lenin, o qual eu mesmo não li, mas segundo especialistas não passa de um catálogo de impropérios contra o social-democrata alemão que ousou criticar a transformação do regime bolchevique numa ditadura terrorista. Como não são oferecidos os prenomes nem sequer as iniciais dos patronímicos dos autores, concluí por meio de pesquisa que se tratava do casal de cientistas filosóficos Pável Sergéievich Trofímov (1910-1971) e Iekaterína Filíppovna Pomogáieva (1915-1994).
Segundo alguns catálogos e pequenas enciclopédias online, Trofimov formou-se em filosofia na MIFLI em 1938, defendeu sua tese de “aspirantura” na MGU em 1941, entrou pro PCUS em 1947 e obteve o título de doutor em ciências filosóficas em 1963. Seu campo de pesquisas abarcava o materialismo histórico-dialético (não diga!), a estética marxista-leninista e a crítica da teoria estética “burguesa” daqueles tempos. Sua esposa Pomogaieva era “kandidat” em ciências filosóficas e especialista em história da filosofia estrangeira, tendo se especializado em analisar e explicar as maiores correntes filosóficas inglesas, sobretudo a evolução das visões filosóficas e sociológicas de Bertrand Russell. De 1938 a 1941, trabalhou como informante do Secretariado do Comitê Executivo da Internacional Comunista, ou seja, a cúpula da cúpula, já que o CEIC era o órgão executivo da Comintern no intervalo entre os congressos, e que dentro dele eram pequenos grupos que prevaleciam. A partir da década de 1970, Pomogaieva também se especializou no estudo do pensamento marxista contemporâneo na Inglaterra.
Nas notas finais, apenas as marcadas como [N.T.] são minhas, e no corpo do texto, minhas observações pontuais estão entre colchetes, enquanto as dos autores, além de colchetes, têm também a indicação das iniciais de seus nomes “P.T. e Ie.P”.
O lorde de 75 anos Bertrand Russell, filósofo idealista que foi um cantador da tão vergonhosa Guerra dos Bôeres na juventude, foi um defensor rematado dos Acordos de Munique [miunkhenets] antes da Segunda Guerra Mundial e foi um pacifista de fachada na época deste conflito, para não falarmos em secretamente fascista, hoje em dia apologiza furiosamente a ideia imperialista de Churchill sobre um governo mundial, os “Estados Unidos do Mundo”, e conclama os militaristas americanos a saraivar a Rússia Soviética com bombas atômicas. “Eu vejo”, uiva freneticamente este ancião puro-sangue, “apenas uma esperança para conservar a civilização [isto é, o capitalismo ‒ P.T. e Ie.P]: uma política corajosa e mais ou menos imperialista da parte dos Estados Unidos ao longo dos próximos anos, até que as outras potências venham a ter bombas atômicas [...]”. (1) O bandido filosofante convoca as forças reacionárias do mundo a guerrear contra o povo soviético e, bajulando servilmente o saco de dinheiro estadunidense, declara descaradamente que “se o governo norte-americano nos ordenar [aos ingleses ‒ P.T. e Ie.P] ir à guerra [...] iremos sem pestanejar”. (2)
Na filosofia de Russell predomina uma das tendências mais reacionárias do idealismo subjetivo moderno: o neorrealismo, ou positivismo lógico, que não significa nada mais do que uma variedade moderna do machismo. (3) Do ponto de vista do positivismo lógico, a verdadeira realidade não está nas coisas, mas nos processos do mundo material, e os produtos do raciocínio lógico também são, antes de tudo, conceitos de matemática pura. “É natural afirmar”, declara Russell, “que [...] os objetos do pensamento são mais reais do que os objetos da percepção sensorial”. Por coisas reais Russell entende o resultado da atividade do pensamento humano. (4)
Contrariando a ciência e a prática humana, que confirmam plenamente a veracidade [istina] do que o materialismo afirma sobre a primazia da matéria, Russell assegura que a base primordial de tudo o que existe não é a matéria, mas algum “material neutro”, alguma “experiência pura” da qual se alega surgir tanto a matéria quanto o espírito. Os termos “material neutro” e “experiência pura” são empregados por esse consumado falsificador idealista na condição de biombos para encobrir seu idealismo subjetivo machista, que reconhece a consciência do sujeito individual como princípio do mundo. Russell efetua essas maquinações para transmitir a aparência de cientificidade à sua filosofia, a qual, com suas afirmações mentirosas, afirma superar “tanto o unilateralismo do materialismo quanto o do idealismo”. Russell declara que o único sistema filosófico confiável é a filosofia do “monismo neutro”, um termo pseudocientífico cunhado pelo idealista norte-americano James. Falsificando e enganando, os representantes deste “monismo” declaram reconhecer, na qualidade de princípio do mundo, não a base material ou espiritual, mas uma espécie de base “neutra”, que afirmam não ser nem material, nem espiritual. “Enquanto a física tornou a matéria menos material”, diz Russell, “a psicologia tornou o pensamento menos intelectual [...] Desta forma, tanto a física quanto a psicologia completaram uma à outra e tornaram mais viável a teoria do ‘monismo neutro’ proposta por W. James [...] Penso que tanto o pensamento quanto a matéria constituem simplesmente meios adequados para agrupar os acontecimentos [...] Essa teoria aporta uma significativa simplificação em nosso quadro de estruturação do mundo” (p. 861).
Na verdade, a “simplificação” da qual se vangloria o idealista Russell significa uma negação do mundo material objetivo e uma limitação do conhecimento do homem por ação da esfera das impressões subjetivas. Tanto o espírito quanto a matéria são declarados como produto da consciência humana, e a diferença entre eles constitui tão-somente uma diferença de “pontos de vista” ou de “instrumentos analíticos” dos fenômenos por parte do sujeito do conhecimento. Para Russell, a matéria nada mais é do que “o agrupamento estável dos acontecimentos”, sendo que ele define os próprios “acontecimentos”, num espírito subjetivo-idealista, como o conjunto das percepções humanas. Russell anuncia esse disparate idealista como sua “descoberta” filosófica decorrente do que diz serem as últimas conquistas da ciência. Na prática, o que Russell faz é repetir uma velha tolice reacionária, cuja essência idealista Lenin desvelou e demonstrou com irrefutável persuasão em Materialismo e empiriocriticismo. Após o machista inglês Pearson ter definido que a matéria eram “grupos constantes de percepções sensoriais”, chamando isso de “positivismo contemporâneo” (exatamente como faz o machista moderno Russell), Lenin submeteu a uma crítica demolidora essas acepções fraudulentas do filósofo burguês, mostrando que Pearson substitui a linha filosófica básica do materialismo (do ser ao pensamento, da matéria à sensação) pela linha inversa, a do idealismo ‒ do sujeito ao objeto, do pensamento ao ser.
Desta forma, nas teorias idealistas de Russell não há um pingo de ciência, nem uma sombra de novidade. Mas isso não impede Russell de anunciar que sua ladainha é o coroamento de todo o desenvolvimento histórico da filosofia. Seu último trabalho de fôlego, História da filosofia ocidental, tem como objetivo apontar a “irrefutabilidade” do delírio subjetivo-idealista de seu criador e mostrar que a filosofia de Russell é o ápice de toda a história da filosofia.
É claro que a subliteratura de Russell sobre a história da filosofia não tem nada em comum com a ciência. O objetivo dela reside em defender e reforçar, com material da história da filosofia deturpada por ele, as posições do idealismo reacionário moderno, inclusive caluniando o materialismo, e antes de tudo o materialismo dialético, impor ao leitor a ideia absurda de que o ápice de todo o pensamento filosófico seria a filosofia anglo-saxã e com isso, auxiliado pela história da filosofia, sustentar a odiosa teoria do racismo anglo-saxão.
Na introdução, Russell expõe sua compreensão sobre o objeto da filosofia e da história da filosofia como ciências. Os raciocínios de Russell sobre essas questões o denunciam como um arqui-inimigo tanto da ciência quanto da filosofia científica. Ele examina a filosofia como um sistema de visões destinado a unificar e conciliar em si duas visões sobre o mundo, de seu ponto de vista, de iguais direitos: a teologia e a ciência. “A filosofia”, diz ele, “é algo intermediário entre a teologia e a ciência” (p. 10). Tanto a filosofia quanto a teologia e a ciência raciocinam sobre deus, a alma, o mundo etc. O que distingue a teologia da ciência, afirma Russell, consiste em que a teologia apela à autoridade, enquanto a ciência apela à razão. A filosofia não pode decidir: ou é a teologia, ou é a ciência que está certa. Ela não pode delimitar as fronteiras da teologia, mas... pode estabelecer e estabelece as fronteiras da razão, pois ela alega saber que a razão “não dá à ciência a possibilidade de conhecer os motivos finais de todo ser. Quem está apta a fazer isso é a teologia, cujas teses são consagradas pela autoridade plurissecular” (p. 10). Assim o idealista Russell impõe ao leitor a balela reacionária sobre a impotência da razão para resolver os problemas filosóficos básicos, a balela de que a teologia está acima da ciência. Russell pugna para conciliar a teologia e a ciência, para submeter a ciência à teologia. A tarefa principal da filosofia, segundo Russell, também consiste em velar firmemente por essa submissão. A filosofia é a guardiã da autoridade da teologia, relegando a ciência à condição de serva da teologia: é isso que Russell, um opositor da ciência e servo da teologia, entende serem o objeto e as tarefas da filosofia.
O desembaraço da ciência das garras da religião foi uma das condições decisivas para sua marcha triunfante ao longo dos últimos quatro séculos, por meio do conhecimento da natureza e do domínio de suas forças. E quando os Russells e os obscurantistas semelhantes a Russell tentam com todas as forças aprisionar novamente a ciência nos grilhões das superstições religiosas, isso serve como uma sentença rigorosa para aqueles lastimáveis pigmeus e para a burguesia que os engendrou.
Em total correspondência com a compreensão russelliana do objeto da filosofia está sua compreensão da história da filosofia. Russell reduz toda a história da filosofia à história da luta entre os chamados “disciplinadores” (disciplinarians), isto é, os protetores das concepções e princípios religiosos tradicionais, e os “libertários” (libertarians), isto é, os que colaboram para o progresso científico. Russell exclui dessa luta “os elementos da extrema-esquerda”, ou seja, os que combatem resolutamente o idealismo, o obscurantismo e o clericalismo [popovschina] e que ele chama de “destruidores da ordem social”. Ele inclui nesse grupo notadamente os materialistas e comunistas. Os “libertários”, entre os quais se inclui o próprio Russell, aspiram à conciliação “harmônica” entre os polos opostos ‒ a teologia e a ciência. Toda a história da luta entre “disciplinadores” e “libertários”, demonstra Russell, conduz à redução das contradições entre elas, à formação e fortalecimento da união entre ciência e teologia sob a égide da filosofia ‒ a filosofia russelliana do positivismo lógico. Tal é a concepção absolutamente anticientífica do falsificador inglês da história da filosofia.
Chamando pretensiosamente seu livro de História da filosofia ocidental e sua ligação com as circunstâncias políticas e sociais da Antiguidade até os nossos dias, (5) Russell na realidade não dá nada sequer remotamente parecido com uma representação concreta das circunstâncias sociais e políticas em que a filosofia historicamente se desenvolveu. Em seu volumoso “trabalho” não encontramos um retrato sequer da luta das correntes políticas e dos grupos socialistas ocorrida na sociedade, nem uma caracterização sequer das mutantes circunstâncias econômicas da vida das pessoas, nem uma descrição sequer da evolução das ciências concretas, que respondia às necessidades da sociedade. Tal separação entre a história da filosofia e a história concreta dos povos e países é necessária para que Russell falsifique mais facilmente a história da filosofia ao gosto de seu próprio sistema subjetivo-idealista e místico-teológico.
Os fatos históricos de que Russell se vale para dar uma aparência de “cientificidade” a seus escritos sobre a história da filosofia são elucidados pelo autor num espírito puramente idealista. Os períodos históricos, como assegura Russell, distinguem-se uns dos outros antes de tudo pelos sistemas filosóficos, teológicos ou científicos que neles predominam. Assim, ao caracterizar a Antiguidade, este pseudocientista não acha necessário falar do principal: a escravidão existente na sociedade antiga, a luta de classes entre os escravos e seus senhores. O inglês antipovo procede da mesma forma quando começa a falar da sociedade feudal-escravista. No livro do pseudo-historiador inglês não encontramos uma só palavra sobre a luta dos servos camponeses contra os senhores feudais. Por outro lado, Russell dedica centenas e centenas de páginas de seu livro roliço à luta entre os senhores feudais do clero e os senhores feudais leigos, entre os papas e os imperadores, absolutamente sem desvelar, além disso, as verdadeiras raízes dessa luta. Ao esclarecer a história da Idade Moderna, ainda nos deparamos com o mesmo idealismo pobre. Russell explica a transição do feudalismo para o capitalismo pelo incremento da educação, pelo surgimento de formas de teologia mais liberais e por outros fenômenos claramente ideológicos. Num enaltecimento chauvinista dos anglo-saxões, o aristocrata inglês chega ao ponto de argumentar, a despeito de fatos amplamente conhecidos, como se apenas os ingleses tivessem salvado a cultura antiga e conservado suas conquistas, em prol do desenvolvimento cultural dos demais povos.
Russell procura demonstrar que a história da filosofia tem sua origem na religião antiga, de onde também teria saído, além disso, a ciência antiga. A religião dos gregos, assegura Russell, foi liberada dos exageros teológicos, por força do que surgiram de seu âmago tanto a ciência quanto a filosofia: para ele, a ausência de formas extremas de teologia na Grécia Antiga proporcionou aos antigos “libertários” ‒ homens de Estado, cientistas ‒ as condições para desenvolver a ciência e conciliá-la, por meio da filosofia, com a teologia. É assim que o pseudo-historiador inglês retrata o início da história da filosofia.
Todos os raciocínios trazidos por Russell são mentirosos e enganosos. A ciência e a filosofia surgiram na Grécia Antiga não da religião, mas do combate à religião. É de conhecimento geral que a ciência antiga nasceu da exigência de satisfazer as necessidades práticas das pessoas. Os conhecimentos no campo da astronomia foram obtidos por conta do que exigiam a agricultura e a navegação; os rudimentos da mecânica são inseparáveis das exigências da agricultura e da prática de edificar prédios; e a matemática evoluiu junto com a astronomia e a mecânica. Em ligação indissolúvel com a obtenção desses conhecimentos também aparecem as primeiras tentativas de generalizá-los filosoficamente. Assim nasce a ciência antiga, ainda não desmembrada, na qual as visões filosóficas estão estreitamente entrelaçadas com as visões dos antigos sobre as ciências naturais. Essa visão secular de mundo, de bases filosóficas materialistas, já atua bem em seu início numa relação hostil com a visão religiosa de mundo, tradicional.
Mas Russell não diz uma só palavra sobre essas coisas indiscutíveis. Ele silencia sobre essa luta que existia entre as visões científica e religiosa de mundo na Grécia Antiga. Contrariando os fatos históricos e a lógica, ele solta o incrível disparate sobre o surgimento da ciência e da filosofia a partir da religião, tentando fundamentar sobre “material histórico” a aspiração neorrealista a conciliar ciência e religião.
Ao narrar a história da filosofia, Russell calunia impetuosamente o materialismo e os materialistas. Ele falsifica os sistemas filosóficos materialistas com o véu idealista, ignora o papel histórico do materialismo na história da ciência e silencia sobre os representantes destacados do pensamento filosófico materialista. Falando sobre as visões filosóficas dos pensadores jônicos, Russell não menciona uma palavra sequer sobre o materialismo deles. Para Russell, Heráclito não é nenhum grande materialista e dialético antigo, mas um místico, fundador de uma nova religião, autor de um sistema ético que representa, na opinião de Russell, “um tipo de ascetismo arrogante semelhante ao ascetismo de Nietzsche”. Russell faz de tudo para injuriar e criticar Heráclito por sua dialética. Do ponto de vista de Russell, Heráclito estava absolutamente errado ao enxergar o mundo como um eterno processo de movimento, mudança e desenvolvimento de algum princípio material ‒ o “fogo”. O mundo, para Russell, se distingue por princípios eternos e absolutamente imutáveis, premissas lógicas universais, das quais se forma toda a variedade da realidade. Russell “reforça” essa sua tese idealista, por um lado, com a “autoridade” do padre D. Inge, (6) desconhecido teólogo e místico moderno, e por outro lado, com as ideias místicas de Platão.
Sobre o grande atomista antigo, o materialista Demócrito, Russell diz algumas palavras insignificantes, calando-se sobre o principal e essencial de toda a história da filosofia antiga: a luta da linha materialista de Demócrito contra a linha idealista de Platão. Silenciando, Russell persegue um fim totalmente definido: mostrar, primeiramente, que a posição do materialismo dialético quanto à luta de partidos na filosofia supostamente seria uma posição incorreta e, segundamente, inculcar no leitor a ideia de que a ciência e a teologia poderiam não ser antagônicas e, por isso, viriam a conciliar-se num todo único, a filosofia. Com relação a Epicuro, outro grande materialista antigo, Russell emprega o método da calúnia direta e dos insultos grosseiros. Contradizendo a verdade histórica, ele nega a importância de Epicuro como um grande educador [prosvetitel] antigo e repete a antiquada mentira de que Epicuro teria sido um pregador da moral tosca dos prazeres instintivos.
Pintando de maneira meticulosa e com visível deleite todas as doutrinas místicas, teológicas e religiosas dos papas, pais da Igreja, teólogos e demais obscurantistas que escreveram na Idade Média, Russell esquiva-se zelosamente da luta entre o nominalismo e o realismo, versão medieval do combate do materialismo contra o idealismo. Não há no livro uma palavra sequer sobre essa luta nem sobre os elementos de conhecimento positivo que se desenvolveram na era feudal.
Russell submete a essa mesma deturpação também a história do materialismo da Idade Moderna. F. Bacon, pai fundador do materialismo e dos experimentos científicos da Modernidade, transforma-se na pena de Russell num positivista comum e num mero empirista que teria negado o significado da matemática e do raciocínio abstrato em geral no processo de conhecimento. Russell retrata a filosofia dualista de Descartes como toda uma doutrina que não contém em si nenhuma contradição séria. Ele não fala quase nada sobre a física materialista de Descartes, que encerra um valioso material científico, mas em contrapartida pinta detalhadamente sua metafísica idealista, admirado pela teoria cartesiana das ideias inatas, há muito já rejeitada pela ciência. Russell declara exatamente Descartes, criador da metafísica idealista, como o fundador de toda a filosofia moderna, como se esta tivesse desenvolvido as teses fundamentais do idealismo cartesiano. Russell enumera categoricamente o materialista Spinoza entre os idealistas e místicos, anunciando que sua profunda doutrina sobre a substância é “anticientífica”, negando a existência do ateísmo do filósofo e intitulando todo o sistema materialista spinoziano como “monismo lógico”, ou seja, listando-o como uma das variedades do idealismo subjetivo moderno. O materialista (não consequente, é verdade) inglês Locke é caracterizado no livro de Russell como um representante do sensualismo subjetivo-idealista. São apartados da filosofia de Locke todos os elementos de materialismo e, sobretudo, a crítica lockiana, absolutamente inadmissível para um idealista, da teoria de Descartes sobre as ideias inatas. Arqui-inimigo do materialismo, o lorde Russell ataca com particular incisão o materialismo francês do século 18. Holbach, Diderot, Helvétius e outros brilhantes representantes do Iluminismo e materialismo franceses que combatiam a religião, o idealismo e o obscurantismo estão fora da história da filosofia de Russell sob o alegado pretexto de que eles representavam o campo da esquerda “destruidora da ordem”, atrapalhando a realização da união entre teologia e ciência. Russell age da mesma maneira com os representantes do pensamento materialista inglês: Toland, que deu uma importante contribuição para o desenvolvimento das ideias científicas e filosóficas com sua tese sobre o movimento como atributo da matéria, Hartley e Priestley, célebres cientistas e filósofos. Russell exclui da história da filosofia até mesmo um combatente pela ciência e contra o obscurantismo e o clericalismo [popovschina] da envergadura de Giordano Bruno, um dos pensadores que deram à luz a filosofia contemporânea.
Assim, por meio de uma variada falsificação das doutrinas materialistas, Russell chega ao ponto de remover completamente da história da filosofia a irreconciliável luta de princípios entre o materialismo e o idealismo. Ele reduz alguns materialistas ao grau de “libertários” comuns que aspiram à conciliação com o idealismo, e outros ele simplesmente risca da história da filosofia. Essa falsificação monstruosa da história da filosofia foi necessária para que o filósofo dos cabeças-duras provasse a inevitabilidade e necessidade da união entre ciência e teologia, a necessidade de uma combinação “harmônica” entre o conhecimento positivo e o misticismo, entre o progresso e o reacionarismo, enquanto a situação vigente é encoberta pela teologia, pelo misticismo e pelo reacionarismo.
Destratando os materialistas e deturpando sua doutrina, Russell ao mesmo tempo faz de tudo para cobrir de elogios todos os representantes do idealismo. A postura crítica de Russell para com determinados representantes do idealismo se revela somente nos casos em que ele percebe neles alguns sinais de desvio do idealismo ou quando ele julga inábil seu combate ao materialismo. Perseguindo o objetivo de advogar pelo idealismo, Russell desdobra com uma minúcia excepcional as ideias místicas de Platão, sua teoria inteiramente idealista do conhecimento (a teoria da “reminiscência”), as visões místico-teleológicas sobre a natureza, o delírio sobre a imortalidade da alma etc. Russell coloca Platão acima de Aristóteles sob o pretexto de que a filosofia de Platão está mais próxima da religião cristã do que a filosofia de Aristóteles.
Ao caracterizar a filosofia de Aristóteles, Russell faz de tudo para obscurecer suas tendências materialistas e dialéticas, avançando para o primeiro plano suas faces puramente idealistas. Assim, ele ignora completamente a crítica da teoria das ideias de Platão por Aristóteles, a qual constitui em sua essência uma crítica do idealismo objetivo em geral. Russell reduz a disputa entre Aristóteles e Platão sobre o problema dos universais [universalii] a uma disputa de palavras, tentando dissimular de todo jeito seu caráter de princípio. Em compensação, Russell reproduz detalhadamente os raciocínios idealistas aristotélicos sobre o primeiro motor imóvel, a primeira forma, a imortalidade da alma etc., como havia antes exposto a doutrina de Platão sobre as ideias, a natureza suprassensível do conhecimento etc. Russell considera que a diferença entre Platão e Aristóteles, falando no geral, não é de princípios, mas simplesmente de exposição. Platão teria supostamente ensinado sobre um “deus matemático” imutável, e Aristóteles, sobre um “deus biológico” em evolução. “A metafísica aristotélica, grosso modo, pode ser definida como a platônica, dissolvida no senso comum”, escreve Russell (p. 184). O místico inglês moderno fica especialmente maravilhado com as visões filosófico-teológicas do místico antigo Platão: Russell chama sua doutrina de um dos pontos culminantes da história de toda a filosofia antiga. O lorde inglês também se admira com os argumentos de Plotino contra o materialismo e com toda a sua concepção sobre as relações entre alma e corpo: ela seria “mais clara do que a de Platão e Aristóteles” (p. 310). O obscurantista da era do capitalismo em decomposição se declara em sentimentos de amor e respeito para com o obscurantista da era da imoral escravidão antiga!
Ao expor a história do idealismo na Idade Moderna, Russell dá o quadro mais grosseiro possível dos sistemas e doutrinas mais reacionários e anticientíficos. Assim, ele exalta a teoria idealista do conhecimento de Leibniz. Referindo-se ao bispo Berkeley, Russell manifesta notas “críticas”: o idealista inglês moderno reprova o idealista inglês do século 18 por seu trabalho “grosseiro” demais ‒ porque a pregação clericalista de Berkeley era demasiado tosca e ele não soube desenvolver argumentos “suficientes” contra o materialismo. Russell glorifica os deploráveis sistemas idealistas dos séculos 19 e 20: a filosofia do místico alemão Schopenhauer, que declarou ser a “vontade” a essência oculta do mundo; o idealista francês Bergson, que insultava a razão humana e afirmava que o homem conseguia alcançar a verdade [istina] num ato de “intuição” misteriosa; e os pragmatistas norte-americanos James e Dewey, inimigos ardentes do progresso e da ciência. Russell examina as visões filosóficas destes últimos como visões que prepararam indiretamente seus próprios escritos filosófico-teológicos.
Em sua pseudo-história, Russell também fala sobre o socialismo. O lorde inglês sabe que nas atuais circunstâncias não se pode defender os pilares do capitalismo pelos meios antigos, louvando abertamente o regime capitalista, que para uma defesa de sucesso é preciso disfarçar-se sob um falso palavreado socialista. Tal socialismo de fachada, totalmente aceitável para os imperialistas, é o socialismo “democrático” trabalhista. É por isso que em sua História da filosofia ocidental, o aristocrata inglês defende essa variedade burguesa de socialismo contra os comunistas, partidários do socialismo científico.
É compreensível, portanto, que Russell considere como predecessores do socialismo moderno não os grandes socialistas utópicos, que criticavam aguda e decididamente o capitalismo e apontavam para suas chagas, mas os representantes da vulgar economia política burguesa ‒ John Stuart Mill, Say e um apologista do capitalismo tão vil quanto Jeremy Bentham, que gloriava as “virtudes” da sociedade capitalista como se ela fosse o regime capaz de promover a maior felicidade para o maior número de pessoas. Como se estivesse fazendo uma “revelação”, Russell expõe detalhadamente a torpíssima teoria utilitarista de Bentham, chamando-o de “grande cientista”, “pensador profundo” etc. Nos escritos de Russell, a exaltação dos ideólogos vulgares da burguesia inglesa do século 19 coabita com cumprimentos dirigidos aos líderes do pseudossocialismo moderno ‒ Laski, Cole, Bevin, Phillips e outros representantes da direita trabalhista.
O aristocrata inglês Russell odeia com uma repulsa feroz o marxismo-leninismo, a doutrina mais revolucionária da atualidade. Ele sabe que sob a bandeira do marxismo-leninismo, massas de muitos milhões de trabalhadores de todos os países travam uma luta irreconciliável contra o capitalismo. É exatamente por isso que ele calunia obscenamente o marxismo, submetendo-o a monstruosas deturpações.
O ódio de Russell ao marxismo-leninismo está indissoluvelmente ligado ao ódio à União Soviética. Sua calúnia contra o marxismo-leninismo está combinada com sua calúnia contra a URSS. Russell chama a Grande Revolução Socialista de Outubro de anarquia, atacando furiosamente a democracia soviética.
Bertrand Russell, aristocrata inglês da gema, não hesita em fazer o papel de lacaio dos ricaços estadunidenses, e para expressar lealdade servil aos seus senhores dos EUA emprega aplicadamente sua História da filosofia ocidental. Russell faz de tudo para elogiar o domínio dos monopólios norte-americanos, retratando mentirosamente a ditadura nacional dos trusts como se fosse um “paraíso democrático”. Sua apologia descarada do imperialismo inglês e, em especial, do estadunidense atinge “alturas” que estão ao alcance apenas dos bajuladores alucinados pelo imperialismo. De encontro a fatos de conhecimento geral, Russell afirma que os monopolistas ingleses e norte-americanos são pacifistas e odeiam a guerra. Assim ele escreve literalmente: “Atualmente, tanto na Inglaterra quanto nos EUA, os grandes monopolistas como um todo odeiam a guerra” (p. 671).
Russell odeia e despreza o povo, e ao mesmo tempo tem medo dele. O aumento da consciência das amplas massas e a crescente luta revolucionária dos povos contra seus opressores estão deixando o lorde filosofante apavorado e trêmulo. Em todos os seus escritos mais recentes, Russell prega a submissão, conclama o povo a ser obediente e “pacífico” perante os mandatários imperialistas e exalta por todos os meios a moral, emprestada dos estoicos pelo cristianismo. É exatamente para construir uma moral de escravos obedientes, útil aos Russells para manter submissos os escravos do capital, que o lorde inglês glorifica a filosofia da Roma escravista imperial.
Mas a realidade prova definitivamente que em nossos tempos os povos estão na menor propensão a submeter-se ao domínio tanto de “seus” imperialistas quanto dos imperialistas de outros Estados. E Russell aconselha aos imperialistas agirem tal como em seu tempo agiam os escravistas romanos: estabelecer pela força das armas o próprio domínio sobre os povos. Para salvar a “civilização moderna”, quer dizer, o imperialismo, este velhinho esperto propõe combinar a dureza da ditadura de Roma com a teologia de Santo Agostinho. “O problema de uma ordem social firme e satisfatória”, prega Russell, “só pode ser resolvido pela união entre a firmeza do Império Romano e o idealismo da Cidade de Deus de Santo Agostinho” (p. 515). Para a realização de tal união, Russell concede um importante papel à filosofia idealista moderna, e obviamente, em primeiro lugar, à sua própria filosofia. Na opinião de Russell, a filosofia do positivismo lógico, com a ajuda da lógica simbólica, pode provar a existência de deus da maneira mais moderna. Deus não é necessário para santificar o domínio dos imperialistas sobre os povos do mundo.
Provar pela “maneira mais moderna” a existência de deus, santificar em seu nome a ditadura da força bruta do imperialismo norte-americano sobre o mundo todo é o objetivo final da falsificação oferecida por Bertrand Russell em seu livro História da filosofia ocidental.
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O evidente falseamento maligno da história da filosofia efetuado por Bertrand Russell de forma alguma representa um fenômeno isolado na filosofia reacionária anglo-americana. Combatendo o materialismo dialético e a ciência, os filósofos burgueses aspiram a utilizar a história da filosofia para defender e fundamentar o idealismo, “retrabalhando-a” para esse fim. A “obra” mentirosa e descarada de Russell é um exemplo da deturpação sofrida pela história da filosofia nos escritos dos ideólogos reacionários imperialistas.
A filosofia idealista moderna, como apontou o cam. Zhdanov em sua intervenção no debate filosófico, reflete toda a profundidade, baixeza e vilania da queda da burguesia. Isso também está relacionado em plena medida com a história da filosofia criada pelos idealistas modernos. A exposição que eles fazem da história da filosofia tem por objetivo ofender o materialismo e a ciência, enaltecer a superstição e o reacionarismo e perpetuar o jugo social, político e espiritual. Um nítido exemplo disso é a História da filosofia ocidental, de Bertrand Russell.
Notas (clique pra voltar ao texto)
(1) Trecho de seu discurso público em Bruxelas, pronunciado a 3 de outubro de 1947.
(3) [N.T.] De Ernst Mach (1838-1916), pronuncia-se “maquismo”. Também conhecido como “empiriocriticismo”, esse sentido é usado em todo o texto.
(4) History of Western Philosophy..., p. 55. Doravante as referências a esse livro serão dadas no corpo do texto.
(5) [N.T.] Título traduzido livremente do inglês e do russo. Existem várias traduções em português da própria obra com diferentes títulos.
(6) [N.T.] Grafado como “Dzh. Indzh”, trata-se provavelmente de William Ralph Inge, escritor inglês, religioso anglicano e professor de teologia em Cambridge. Deão (Dean) da Catedral de Saint Paul, era mais conhecido como “Dean Inge”, daí talvez a ortografia dos soviéticos, que devem ter encontrado poucos dados biográficos. Indicado três vezes para o Nobel de Literatura, o conjunto de seu pensamento mistura exatamente a teologia cristã tradicional com elementos da filosofia platônica.