Nesta primeira semana de março de 2022, ganhou repercussão nacional muito negativa uma sequência de áudios gravados no WhatsApp pra um grupo de amigos por Arthur do Val, deputado estadual de São Paulo e militante do MBL, grupo suprapartidário de jovens militantes liberais de direita. Junto com o amigo Renan Santos, coordenador do MBL, o político, empresário e youtuber tinha ido à Ucrânia alegadamente pra ajudar os ucranianos na resistência contra a invasão militar russa, e inclusive postou uma foto no Instagram posando ao lado de garrafas de vidro destinadas à produção de coquetéis Molotov. O propósito da aventura, dado o fato de Arthur ser servidor público e supostamente ter de trabalhar pelo povo paulista, já tinha sofrido amplo questionamento.
Porém, durante o retorno dos rapazes, acabou surgindo um escândalo talvez maior do que o protagonizado por Bruno “Monark” Ayub a respeito do apoio à legalização de um partido nazista no Brasil e que quase levou ao fim de seu programa, o Flow Podcast. Arthur enviou num grupo privado de amigos áudios elogiando calorosamente a beleza das refugiadas ucranianas, cujas filas pra fugir do país ele achou “superiores” às das “melhores baladas brasileiras”. Também afirmou que poderia namorar fácil qualquer uma delas, já que “são fáceis por serem pobres”. Além disso, usou palavras chulas ao se referir a como seria servil a qualquer uma delas e acabou fazendo alusão a turismos sexuais europeus “especializados” em loiras.
Pela vulgaridade do conteúdo, pelo cargo que ocupa e pela ofensa à dignidade das ucranianas, Arthur atraiu a repulsa geral da opinião pública brasileira e praticamente acabou com sua carreira política. Aliados começaram a se afastar, e seu Instagram está perdendo cada vez mais seguidores. Minha opinião pessoal: o MBL nunca deu qualquer contribuição positiva ao Brasil, e apenas serviu pra intoxicar e tumultuar o debate público com base num conceito elitista e enviesado de “liberdades”. Além disso, não consigo eu mesmo me dirigir a um “garoto de 35 anos” (na verdade um “cavalão”, como diria minha mãe) com o estrambólico apelido de “Mamãe, Falei”.
Tenho meus próprios conceitos, mas não posso julgar ninguém moralmente pelas encrencas que arranja. A quem se interessa, deixo a tradução desta reportagem do canal de notícias France 24, num quadro ocasional chamado Actuelles, literalmente a palavra “Atuais” no gênero feminino, que faz um trocadilho com elles (elas). Por uma feliz coincidência, ela foi ao ar no 4 de março anterior, assim ainda pude dar uma humilde contribuição àquela “treta” quando ela ainda está quentinha. Sob a apresentação de Natacha Vesnitch, minha tradução do francês vem mostrar como as mulheres ucranianas (curiosamente, três delas chamadas “Olena”...) não são nem “fáceis” nem “pobres”. Na medida do possível, indiquei os emissores das falas e padronizei a transliteração dos nomes eslavos.
Abaixo seguem também sem legendas os vídeos com a reportagem original contida no canal da France 24 e um upload próprio tendo em vista qualquer emergência. Título original do vídeo: “Prendre les armes ou fuir pour protéger sa famille, le dilemme des Ukrainiennes” (Pegar em armas ou fugir pra proteger sua família, o dilema das ucranianas):
Natacha Vesnitch: Boa tarde e boas-vindas a mais esta edição de Actuelles, edição especial dedicada à guerra na Ucrânia e a seu impacto sobre as mulheres. Desde o início da ofensiva russa, centenas de milhares de pessoas deixaram suas casas, um exílio que expõe as mulheres a todo tipo de violência. Certas ucranianas decidiram ficar em seu país e às vezes decidiram mesmo pegar em armas. Outras decidiram fugir e desde então assistem com impotência à guerra que está destruindo seu país.
Olena Starodubtseva nos acompanha online: bom dia, muito obrigada por estar com a gente. Você fugiu de Kyiv e agora se encontra com sua filha e sua mãe num vilarejo a uns 60 km da capital. E também, comigo nesta bancada, Anastasia Mikova, boa tarde! Obrigada por estar com a gente, você é franco-ucraniana e notavelmente foi co-realizadora do filme Woman [disponível no Globoplay], sobre a condição das mulheres no mundo.
Olena, gostaria de lhe perguntar primeiramente: desde o começo da guerra, centenas de milhares de ucranianos, em sua maioria mulheres e crianças, fugiram do país, mas você decidiu ficar. Por quê?
Olena Starodubtseva: Porque Kyiv é minha cidade, aqui está toda minha vida, meu trabalho, meus filhos, não sei, meus pais, minha mãe. Mas mesmo assim decidimos mudar um pouco de lugar, porque vivemos num bairro residencial, e quando as explosões começaram, os aviões militares e tudo mais, dava muito medo em minha filha. Mudamos de lugar com quatro famílias, sempre as mulheres, as crianças, os idosos, e estamos num pequeno vilarejo. Felizmente aqui é calmo, escutamos apenas o barulho dos aviões, às vezes das explosões, mas não é onde estamos. Não precisamos correr pra um abrigo a cada duas horas, quando as sirenes tocam em Kyiv. Ou seja, é assim.
Natacha Vesnitch: Você, Anastasia, se encontrava na França quando a guerra começou, e por sorte sua mãe também. Mas obviamente você tem amigos e parentes lá na Ucrânia, o que eles estão lhe dizendo?
Anastasia Mikova: O que Olena está dizendo coincide exatamente com o que estou escutando há muitos e muitos dias. Minha irmã está lá com sua filhinha de nove anos e minha avó, que morava perto do centro da cidade. No primeiro dia elas estavam assim, dizendo: “Não, não vá embora! É nossa cidade, é nossa vida! Você quer que vamos pra onde?” E eu de fato via do exterior: vemos com mais distanciamento o que está acontecendo, e eu via que isso ia piorar ainda mais, e eu lhes dizia: “Não, vocês não podem ficar aí!” E foi realmente muito difícil, pois aqui precisamos imaginar: quando você construiu tudo lá, quando você tem tudo que lhe é próximo, tudo o que é seu, e deixa tudo desabar pra ir aonde, de fato, construir o quê? E finalmente consegui convencer minha irmã a partir com sua filhinha, mas minha avó, por exemplo, se recusou firmemente a partir e decidiu ficar lá, pois ela nos disse que sua vida estava ali, e se tivesse que morrer, preferia morrer ali.
Natacha Vesnitch: Olena e Anastasia, fiquem com a gente pra ver esta reportagem produzida por Alison Sargent e Florence Gaillard sobre as ucranianas que decidiram participar do esforço de guerra. Apenas os homens de 18 a 55 foram mobilizados, mas há mulheres que também querem defender sua pátria fabricando coquetéis Molotov e às vezes inclusive pegando em armas. Vamos ver!
Florence Gaillard (voz): Aos sete anos, Uliana está entre as ucranianas mais jovens a apoiar o esforço de guerra.
Uliana: Aqui, recuperamos os tecidos pra fazer mechas de coquetéis Molotov.
Florence Gaillard: Um pouco mais longe, as pessoas ralam o isopor usado pra rechear os coquetéis Molotov. É aqui que eles são fabricados por estas mulheres que trabalham sem descanso. Esta pensa especialmente em seu marido.
Mulher: Estando aqui, eu o ajudo, mesmo querendo mais estar com ele na linha de frente pra jogar esse inimigo fora de nosso país!
Florence Gaillard: E é assim que os civis ucranianos jogam essas bombas caseiras sobre os blindados russos. [Pausa.] Neste ateliê de costura, as estilistas não fabricam mais roupas ou acessórios de moda, mas apenas uniformes camuflados e coletes à prova de balas.
Costureira: A placa de metal é enviada por um outro grupo de resistência e é testada com balas de verdade por um terceiro grupo.
Florence Gaillard: Proteções tanto mais úteis quanto mais as barricadas são levantadas em Dnipró. Mulheres entre os operários, mas também entre os soldados, como Anna, médica e alistada.
Anna: Estou aqui, não tenho medo, e meu filho de 21 anos também se alistou!
Florence Gaillard: Desde 2018, as mulheres são equiparadas aos homens no exército ucraniano e representam hoje 15% dos efetivos militares.
Natacha Vesnitch: Olena Bilozerska integra esses 15% de mulheres que compõem o exército ucraniano. Ela é tenente e está esperando pra saber onde vai lutar. Conseguimos contatá-la apenas por telefone em razão de sua segurança. Vamos escutá-la.
Olena Bilozerska: Penso que daqui a alguns dias vou combater no front. Assim espero, pois é meu país, minha terra, quero defendê-la. E é meu dever fazer isso. Tenho bastante experiência de combate. Penso que todo cidadão capaz de pegar em armas deve fazê-lo e ir combater.
Natacha Vesnitch: Olena, você fugiu de Kyiv com sua mãe e sua filha de 14 anos. Como vocês estão vivendo esse conflito, como estão se sentindo num perigo especial pelo fato de serem mulheres?
Olena Starodubtseva: Não penso que posso sentir um perigo especial por ser pessoalmente mulher, sinto simplesmente a responsabilidade por minha filha de 14 anos e por minha mãe idosa. Então pra mim esse é o combate. Sim, eu devo protegê-las e nós devemos sobreviver a tudo isso, a todos esses eventos. E mesmo assim, enquanto meu marido todo dia faz alguma coisa pra ajudar nossas forças militares, tento fazer as coisas simples, talvez. Com minhas companheiras, tentamos coordenar as pessoas necessitadas que ficaram em Kyiv, que precisam de comida, de remédios ou simplesmente mudar de lugar, e nós coordenamos tudo isso online. É o que em todo caso posso fazer.
Natacha Vesnitch: Anastasia, você pôde constatar inúmeras vezes, sobretudo produzindo seu documentário, que as mulheres são as mais afetadas nos conflitos.
Anastasia Mikova: Sempre. As mulheres sempre são as mais afetadas nos conflitos. As mulheres e as crianças. E é impressionante dizer, pois, que a gente luta há anos e anos pra tentar avançar, e basta um conflito pra nos devolver a anos-luz antes de tudo o que conseguimos obter. E eu trabalhei em países muito complicados: Síria, República Democrática do Congo... E em todo lugar vimos, por exemplo, estupros de guerra. Em todo lugar, os corpos das mulheres também foram utilizados como um campo de batalha. Em todo lugar os corpos das mulheres eram atacados pra destruir uma nação. E eu estou muito orgulhosa das mulheres ucranianas, pois hoje elas justamente não se deixam abater. Escutando Olena, vemos que ela mesma sofre dificuldades perto de Kyiv, e mesmo assim tenta ser útil. Eu tenho metade das amigas que são arquitetas, jornalistas, professoras etc. que eu jamais teria imaginado que decidiriam pegar em armas e, não sei como, ir defender seu país. E eis que essas também são as mulheres hoje, não são mais pequenos seres que ainda devem ser considerados frágeis. E eu estou muito orgulhosa das mulheres ucranianas.
Natacha Vesnitch: Desde o começo da invasão russa, centenas de milhares de pessoas fugiram de suas casas. Como você, Olena, poderia haver, segundo a ONU, sete milhões de deslocados dentro da Ucrânia, mas também cinco milhões de refugiados fora do país, obviamente em sua maioria mulheres e crianças. Vamos ver!
David Gilberg: Mulheres e crianças: desde a mobilização decretada em 24 de fevereiro, a porcentagem de homens é muito baixa entre os grupos de refugiados que deixam a Ucrânia, como aqui na fronteira moldova. E na hora de pôr o pé num novo país, os pensamentos se voltam àqueles que ficaram pra trás.
Natasha (refugiada): O pai deles é militar. Ele está alistado e vai lutar a serviço do país. Ele não vai deixar a Ucrânia. Ele vai ficar e lutar, porque é isso que ele deve fazer.
David Gilberg: Estas mães de família se viram sozinhas com seus filhos do dia pra noite. Agora elas são centenas de milhares nos países vizinhos à Ucrânia. Olena, que já tinha fugido do Donbass em 2014, chegou à Polônia com seu filho autista.
Olena (refugiada): Meu marido ficou pra fazer a guerra. Está protegendo o país, na cidade de Mykolaiiv.
David Gilberg: No centro de acolhimento provisório instalado na Polônia, a solidariedade se organiza. A maioria desses ucranianos perseguiram o mesmo objetivo: colocar suas crianças em lugar seguro.
Maria Lisicka: Pra mim o importante não é como elas vivem, mas que sejam felizes. A coisa mais importante são as crianças e que elas sejam felizes.
David Gilberg: Famílias separadas e desenraizadas que continuarão sendo cada vez mais numerosas. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados estima que cinco milhões de ucranianos vão fugir da guerra em seu país.
Natacha Vesnitch: Olena, é muito difícil pensar no futuro neste momento, posso imaginar muito bem. Mesmo assim eu gostaria de lhe perguntar como você vê o futuro. Você ainda tem esperança?
Olena Starodubtseva: Mas é claro! Pois eu não tenho outra saída. Acredito em nossas forças militares, a cada dia vejo que é verdade, nossas forças militares são muito fortes, se assim posso dizer. Sim, acreditamos nisso, e eu queria muito que chegasse o dia de podermos reconstruir meu país, porque agora minha cidade natal, Kharkiv, está totalmente destruída. Precisamos de muito tempo e esforços pra reconstruir tudo, mas mesmo assim acredito em tudo isso.
Natacha Vesnitch: Muito obrigado, Anastasia. Uma última pergunta bem rápida, se puder: quem quiser ajudar a Ucrânia, suas mulheres e crianças, o que pode fazer de concreto?
Anastasia Mikova: Há muitas associações que já são muitíssimo ativas na Ucrânia, associações francesas internacionais, como a Cruz Vermelha, o Socorro Popular, os Médicos sem Fronteiras. Eles precisam de doações e estão se organizando pra levar ajuda aos ucranianos. Há também muitas associações locais ucranianas às quais agora é muito fácil doar pela internet. E penso que hoje as mulheres e as crianças precisam muitíssimo de nossa ajuda.
Natacha Vesnitch: Muitíssimo obrigada, Anastasia Mikova! Obrigada, Olena Starodubtseva, por estar com a gente descrevendo essa guerra na Ucrânia. Terminamos esta edição especial de Actuelles dedicada às mulheres ucranianas. Obrigada pela audiência e não deixe de reagir em nossas redes sociais. Até mais!
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