Estou tomando hoje a liberdade de republicar aqui, sem alterações, o artigo de opinião “O antialgoritmo” (disponível apenas pra assinantes), escrito pelo advogado Nicolau da Rocha Cavalcanti e publicado no site do jornal O Estado de S. Paulo (o “Estadão”) em 23 de fevereiro de 2022. Mesmo não sabendo ainda o que eram ou como funcionavam os algoritmos, eu já pensava exatamente da mesma maneira quando comecei a rever minha relação com as redes sociais, em 2015. O texto é que veio ao encontro de minhas ideias...
Gostaria de destacar este trecho, perto do fim do texto: “[...] as distorções das redes sociais suscitam a necessidade de uma formação pessoal mais ampla e profunda. É preciso fortalecer nossa individualidade, o que significa também expandir a perspectiva pessoal. Neste processo, a leitura, o contato com a arte e a convivência plural são fundamentais.” E o parágrafo seguinte sobre a leitura é de vital importância: embora a pandemia tenha incrementado a venda (o que não é necessariamente a leitura) de livros, o Brasil estava sendo conhecido como um povo que lia cada vez menos e onde as livrarias faliam uma após a outra. Não tenho dúvidas de que o consumo informativo de baixa qualidade nas novas mídias, as quais também mudaram nossa forma de lidar com outras pessoas, tenha sido fatal na destruição do hábito leitor.
Nos últimos anos, ficou evidente que as redes sociais não são um espaço neutro de exposição e debate das ideias presentes numa sociedade. Boa parte dessas distorções é causada pelos algoritmos. Criados com o objetivo de aumentar o tempo de uso das redes sociais, eles intensificam a visibilidade de alguns temas e acentuam a dimensão conflitiva das interações humanas. Dessa forma, aquilo que foi visto, no início, como um instrumento de empoderamento pessoal e coletivo – o que, sob muitos aspectos, continua sendo verdade – recebe hoje uma avaliação menos ingênua. A internet é, também, ocasião de novas vulnerabilidades, de novas e velhas manipulações.
A nova camada de compreensão das redes sociais suscitou, no mundo inteiro, o debate sobre a regulação dessas atividades: sua conveniência, seus riscos e os eventuais critérios a serem adotados. É uma seara nova, ainda sem respostas consolidadas. De todo modo, é cada vez mais consensual que não cabe ao Estado ficar indiferente perante esta nova realidade social, também por seu papel na defesa da livre concorrência.
Tudo isso pode conduzir à sensação de fragilidade e impotência pessoais. Ao contrário da promessa original relativa à internet, o indivíduo vê, agora, seu protagonismo minguar. Enredado em algoritmos sobre os quais não dispõe de nenhum poder, estaria à espera de uma transformação que também depende muito pouco dele: que a regulação estatal possa proporcionar, no futuro, um ambiente virtual mais civilizado.
Neste cenário, convém lembrar que todos dispomos de um recurso capaz de romper a asfixia do ambiente atual: o “antialgoritmo”. Adverte-se, desde logo, que sua existência não substitui a discussão sobre a regulação, tampouco elimina todas as consequências nocivas das redes sociais sobre o debate público. Mesmo que possa ter efeitos mais amplos, o antialgoritmo funciona essencialmente no âmbito pessoal. Vejamos.
O algoritmo das redes sociais baseia-se numa ideia, que não é de todo equivocada: nós, seres humanos, temos um sistema de ação e reação muito parecido. Por mais que haja diferenças culturais ou ideológicas, nosso funcionamento segue padrões psicológicos comuns. Isso faz com que os algoritmos das redes sociais sejam de fato eficientes. Geralmente, eles conseguem nos manter nas redes sociais por mais tempo do que planejávamos.
O antialgoritmo está vinculado a outra ideia, que também não é de todo equivocada: nós, seres humanos, temos sempre a capacidade de oferecer uma resposta pessoal, livre e criativa, que escape dos padrões automáticos de ação e reação. O antialgoritmo não é mera abstração, mas parte do fenômeno humano. Por maiores que sejam as distorções causadas pelos algoritmos – e também por nossos condicionamentos –, sempre é possível buscar um exercício mais qualificado da autonomia individual.
Se as redes sociais estimulam uma abordagem superficial – por exemplo, ler apenas os títulos ou reagir logo após a primeira impressão –, o antialgoritmo desperta outras atitudes, como impor-nos um tempo entre a ação e a nossa reação, assegurar condições mínimas para a reflexão pessoal e buscar conhecer seriamente o raciocínio contrário, seu contexto e suas motivações. Leva-nos, também, a fugir do moralismo que enxerga má-fé em todo argumento dissonante.
Esta empreitada de liberdade e compreensão não é mero exercício de uma hercúlea (e talvez inatingível para a maioria de nós) boa vontade com os outros. É fruto da compreensão de que a nossa melhor resposta, a nossa reação mais humana, nunca é resultado de simples automatismo. Quando reagimos no piloto automático, a ação do outro – muitas vezes aquilo que equivocadamente pensamos ser a ação do outro – acaba por definir nossa reação e, em último termo, nossa identidade. Perdemos, assim, esta fundamental dimensão da liberdade, que é a de agirmos como somos, e não como os outros ou as circunstâncias ditam.
Além do debate sobre possíveis caminhos de uma adequada regulação – capaz de preservar e promover a liberdade de expressão e o pluralismo de ideias –, as distorções das redes sociais suscitam a necessidade de uma formação pessoal mais ampla e profunda. É preciso fortalecer nossa individualidade, o que significa também expandir a perspectiva pessoal. Neste processo, a leitura, o contato com a arte e a convivência plural são fundamentais.
Entre outros recursos, a leitura habitual de jornais e de livros – incluindo literatura, história e filosofia – contribui para o bom funcionamento do antialgoritmo. Além do conteúdo em si, a leitura proporciona contato com outras perspectivas e experiências de vida. Os livros nos conectam com ideias, pessoas e culturas de variadas épocas – e isso num contexto não de conflito, mas de diálogo, o que favorece o exercício da individualidade.
O antialgoritmo é a antítese da fórmula pronta. Mais do que algo externo ou artificial, ele é esta chama interior que todos levamos dentro de nós e que nos impulsiona à vida e à liberdade. Não está obsoleto, nunca foi tão necessário. É tempo de usá-lo.
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