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Estou voltando a publicar trabalhos finais de graduação interessantes, pois foram bem avaliados pelos professores e trazem temáticas ainda prementes pra pensarmos nossa atualidade. Quando cursei História Contemporânea II (o estudo do século 20 no mundo) na Unicamp, com a Prof.ª Dr.ª Eliane Moura da Silva, pela qual ainda guardo grande estima, ela dividiu o segundo semestre de 2008 em quatro eixos temáticos. Em geral, ela passava um filme relativo ao tema estudado e indicava textos pra lermos, e após um tempo pedia pra fazermos um trabalho relacionando os dois tipos de materiais. Acho ainda muito importante que os jovens de hoje aprendam a LER e a VER filmes, pois é um treino tremendo pra tirar informações de áudio, vídeo, referências subentendidas etc., coisa difícil hoje no mundo disperso das redes sociais. Este texto, datado de 19 de outubro, fala do filme O gabinete do Dr. Caligari, produzido por Rudolf Meinert e Erich Pommer e dirigido por Robert Wiene em 1920, fazendo alusões culturais ao combate entre racionalismo e messianismo na Alemanha dita “de Weimar” antes da ascensão de Hitler. Também considero ótimo pra refletirmos sobre combates e mudanças que vivemos atualmente no planeta. Mantive o conteúdo, mas retoquei a redação:
Na história contemporânea, as crises inspiram projetos alternativos de sociedade, geralmente antagônicos entre si, historicamente contingenciados e que ressaltam aspectos diferentes ao pregar a renovação social. Os conflitos políticos e econômicos são mais visíveis e estudados, mas a cultura, em especial na forma de arte, tem sido objeto de estudo privilegiado para a compreensão de certos períodos. Ela é de suma importância no estudo da Alemanha posterior à 1.ª Guerra Mundial, que oscilava entre um projeto humanístico, pacifista e ligado às vanguardas artísticas, e outro militarista, ligado às direitas e ressentido pela derrota na guerra. O gabinete do Dr. Caligari, um dos pioneiros do cinema expressionista alemão, dirigido por Robert Wiene em 1920, metaforiza o conflito pós-1918 entre a razão criativa e a irracionalidade controladora, a emoção delirante e a rígida disciplina corporal. Sua trama esclarece bem sobre a luta cultural e política travada entre progressismo e conservadorismo na Alemanha de então.
No início do enredo, Francis (Friedrich Fehér) narra a um velho a história do sonâmbulo Cesare (Conrad Veidt), trazido a uma feira de variedades pelo Dr. Caligari (Werner Krauss). Aparecem então Alan (Hans Heinrich von Twardowski) e Francis na tenda de Caligari, cujo sonâmbulo supostamente previa o futuro. Alan, após ser informado por Cesare que viveria até a madrugada, é assassinado por ele enquanto dormia. Jane (Lil Dagover) e Francis decidem investigar o caso com a ajuda de policiais um pouco descrentes. Certa noite, Cesare invade a casa de Jane para matá-la, mas ela acorda e foge do zumbi, que a alcança e a carrega. Os dois são seguidos, mas Cesare larga Jane e morre ao cair em um poço, enquanto Caligari, em fuga, é perseguido por Francis, que chega a um manicômio chefiado pelo charlatão. Francis aí descobre que Caligari imitou, com um paciente, a história de um homônimo do século 11 que hipnotizava um sonâmbulo, ordenando-lhe os assassinatos. Ao receber o cadáver de Cesare, Caligari entra em fúria, é posto em uma camisa de força e levado a uma cela. Ao final, volta-se à cena inicial, que na verdade se passa no pátio do asilo. O diretor do hospital aparece e Francis, após chamá-lo de “Caligari” e tentar atacá-lo, é preso ao mesmo modo da cena anterior.
O filme analisa a situação contemporânea por meio do diálogo entre cultura e sociedade, a começar pela maquiagem pálida na maioria das personagens, que representavam as pessoas de aparência desgastada pela fome e pelas doenças dos tempos de crise. A escolha do gênero de terror e as muitas cenas noturnas, por influência do romantismo inglês e seus contos sobrenaturais, também molda um ambiente sombrio, grotesco e próximo à morte, embora também entre, na personalidade de Francis, o romantismo revolucionário francês. Outras influências românticas são as emoções, o individualismo, o pesadelo e a liberdade de criação, que abrem espaço para a perspectiva freudiana de estudar o coletivo a partir do indivíduo (1) e se refletem em um Francis criativo, emotivo e com forte iniciativa própria para investigar e perseguir Caligari.
As expressões faciais dos atores e a música passam dinamismo e susto ao espectador, e são exemplos de diálogo com o impressionismo francês, que privilegia, entre outras coisas, as fortes impressões dadas por uma obra de arte. Os ângulos distorcidos e o fato de a tenda de Caligari parecer maior por dentro do que por fora, frutos da “loucura” de Francis, são recursos expressionistas que alteram a realidade para que se passe uma visão subjetiva sobre ela, ou se gere uma nova, flutuante e não nítida. (2) A busca expressionista pela essência do que é retratado mostra-se na falta de verossimilhança da película, pois não se quis fazer um retrato fiel da jovem república, mas apenas captar as sensações pessimistas e tensas que ela causava.
As personagens mais centrais do filme alegorizam os principais protagonistas políticos e artísticos da jovem República de Weimar, como Francis, encarnação dos artistas de vanguarda que lutavam por uma arte popular e engajada e contra as tradições, o mundo burguês e as mazelas da modernidade. (3) O jovem apaixonado pela poesia distorce a realidade, sonhava e inventava em prol de uma visão de mundo subjetiva e escapista, assim como os expressionistas, que eram saudosos de uma Alemanha cosmopolita e humanista, e muitos dos quais eram comunistas. O pensamento de Weimar caracterizava-se pelo laicismo, pela ausência de Deus e pela busca de uma espiritualidade livre de dogmas religiosos, (4) o que se reflete na falta de qualquer menção a religiões no filme.
O velhaco arrogante e de postura curvada ilustra bem os monarquistas e a extrema-direita antidemocrática, contrários à arte moderna “degenerada”, “bolchevique” e “judaica” e ao seu cosmopolitismo. (5) A arte desses grupos, contrária à “imaginação estudiosa de Warburg”, é apolínea e arraigada nas instituições, (6) daí a oposição entre um Caligari anti-intelectual, cujo romantismo é alemão por ser conservador e antirrevolucionário, e um Francis amante dos estudos. Baseada nas liberdades constitucionais, a direita radical perseguia pacifistas, judeus, comunistas, modernistas e outros, e Caligari, por trás da democrática feira de variedades, age com Cesare para fins maléficos. A ultradireita admirava um passado medieval de guerras e impetuosidade e rejeitava a igualdade humana e os “imaturos políticos”, (7) e também Caligari imita o nome e o ímpeto destrutivo do místico do século 11 e tenta submeter ou eliminar os “inconvenientes”.
O Estado que regia Weimar mediava a disputa, e embora de início o republicanismo e o rompimento com parte do passado imperial atraíssem as vanguardas, desiludiu a muitos pela repressão à esquerda e pela desmobilização social-democrata, tornando-se, como a feira, um espetáculo de aberrações. (8) A difusão de associações e de grandes lugares públicos na república deu base para as organizações de extrema-direita e seus “espetáculos”, (9) e igualmente a feira é uma grande instituição gregária que acolhe Caligari e permite o “espetáculo” de Cesare. E o povo alemão, identificado com a propaganda da ultradireita, foi ocupado pelo militarismo, pela disciplina e pela ordem, em especial os desempregados, (10) e da mesma forma Cesare, desocupado por sua loucura, pôde ser transformado em um “soldado-boneco” obediente e de movimentos lentos.
Em 1914, a opção pela guerra e pela perseguição aos “traidores” pacifistas era um consenso na Alemanha, e no filme Caligari ilustra os belicistas que pretendiam resolver os problemas por meio da força, inclusive eliminando seus oponentes. Após a 1.ª Guerra Mundial, havia um vazio político reforçado pela crise de 1918 e pelos conflitos com os republicanos, mas a violência continuou em Weimar com tentativas de golpe e atentados contra opositores políticos ou membros do governo. (11) O entretenimento da feira também esvazia as discussões e dá lugar à violência, que já podia ser notada com o assassinato do escrivão, funcionário público que representa as instituições atingidas.
A crítica à hipnose mostra o sucesso da psicanálise, que trata os pacientes pela conversa e pela liberdade de expressão, e não pela submissão que Caligari impõe a Francis no final. Mas antes, o velho ao qual Francis conta a história parece ser um psicanalista oculto ao representar uma possibilidade, embora sufocada, de cura ao jovem por meio da liberação de seus desejos inconscientes. Francis e Caligari, representantes de atividades emblemáticas da civilização da qual não podem sair (a arte e a ciência), sofrem com a repressão coletiva à efetivação de suas vontades, que lhes dá as neuróticas obsessões pelo sonho ou pelo assassinato. (12) A feira (arte) e a profissão de diretor manicomial (ciência) poderiam sublimar o instinto de agressividade de Caligari, contudo, incapaz de anulá-lo, o médico dirige sua violência a seus “competidores” jovens e, por ser uma ameaça à sociedade, chega a ser preso no manicômio. (13) Esta prisão, vitória da reunião coletiva sobre a força bruta, também alude à substituição do poder do indivíduo pelo de uma comunidade, passo decisivo da construção e da manutenção da civilização. (14)
A mobilização de massas pela extrema-direita contra a esquerda e os artistas “degenerados” foi, como diria Francis, “algo terrível em nosso meio”, mas os guardas do filme omitem-se, tal como a república que não impediu a violência da direita radical. A tradição autoritária de submissão e passividade diante de ordens vindas “de cima” (15) quase nunca permitiu a punição a criminosos de direita, e da mesma forma as investigações a Caligari ficam na promessa, pois não impedem o ataque a Jane. A branda repressão à direita radical, comparada às agressões contra a extrema-esquerda e pessoas de “aspecto suspeito”, explica ainda a prisão violenta do primeiro suspeito dos assassinatos, por um lado, e a entrada consentida da polícia na casa de Caligari, por outro. Os clubes de tiro da ultradireita (16) eram “bonecos” de disfarce para ações criminosas, e suas lideranças, assim como Caligari com seu sonâmbulo e o governo de Weimar com o recrutamento de “corpos voluntários” contra a revolução espartaquista, (17) nunca sujavam as mãos de sangue.
Certa força de Jane aparece na “disputa” que Francis e Alan travam por sua companhia e no receio de Cesare em matá-la no meio da noite, reflexo da importância que a mulher obteve durante a guerra pelos movimentos feministas e pela ocupação dos postos antes pertencentes aos combatentes. O pouco espaço dos que acreditavam que “compreender tudo era criticar tudo” (18) é lembrado com a demora em se ouvir o crítico Francis, que terminou por ser considerado louco quando parecia ter triunfado. Mas nem tudo está perdido: a revolução espartaquista fora um momento de glória para a esquerda, que desejava a “morte” do povo para os planos da direita radical e a condenação dos líderes inimigos, como se vê na morte de Cesare e no momento em que Caligari foi “acorrentado em sua cela”. Contudo, não se ouvem os alertas comunistas sobre a violência da extrema-direita nem o alerta de Francis sobre os perigos do “diretor Caligari”, sendo ao fim os inconformados tidos por “obsessivos”. A pouca popularidade do comunismo e das vanguardas artísticas traçou seu insucesso, (19) da mesma forma que Francis, não representando as expectativas daqueles a quem pedia ajuda, sucumbiu no esquecimento.
O gabinete do Dr. Caligari mostra que é quase inviável extinguir as “utopias” do pensamento humano e que sempre haverá espaços na história para teorias que ultrapassem o horizonte do possível. E a relação entre arte, política e sociedade é importante para a elaboração de alternativas que englobem as muitas esferas da sociedade e as várias capacidades humanas. O artista, treinado em sua sensibilidade, capta a essência das coisas por meio das diversas possibilidades de expressão que possui em seu cabedal, o que pode incluir uma saudável abstração. O político, informado sobre as maiores mazelas de seus compatriotas, deve lutar sem descanso pela transformação do mundo e pelo intercâmbio enriquecedor entre os povos. E o povo, protagonista da história e termômetro da situação de seu país, sabe o que é melhor para si mesmo e deve nortear aqueles que pretendem tornar-se líderes, porquanto, assim como Cesare, ele “conhece todos os segredos”. A Alemanha de Weimar tentou viver uma alternativa às antigas tradições nacionais bélicas e autoritárias, e embora tenha sucumbido ao conservadorismo e à intolerância, semeou para seus herdeiros uma inovadora concepção ética e estética do mundo.
Bibliografia
FREUD, Sigmund. “O mal-estar na civilização”. In: ______. Cinco lições de psicanálise; A história do movimento psicanalítico; O futuro de uma ilusão; O mal-estar na civilização; Esboço de psicanálise. Seleção de textos de Jayme Salomão. Traduções de Durval Marcondes et al. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção “Os Pensadores”.)
GABINETE DO DR. CALIGARI, O (Das Cabinet des Dr. Caligari). Produção de Rudolf Meinert e Erich Pommer. Direção de Robert Wiene. Alemanha: Decla-Bioscop AG, 1920. 1 DVD (51 min.).
GAY, Peter. A Cultura de Weimar. Tradução de Laura Lúcia da Costa Braga. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
RICHARD, Lionel. A República de Weimar (1919-1933). Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
Notas (clique no número pra voltar ao texto)
(1) Sigmund FREUD, O mal-estar na civilização. In: ______. Cinco lições de psicanálise; A história do movimento psicanalítico; O futuro de uma ilusão; O mal-estar na civilização; Esboço de psicanálise, São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 190.
(2) Peter GAY, A Cultura de Weimar, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978, p. 124-125.
(3) Ibidem, p. 121-126; Lionel Richard, A República de Weimar (1919-1933), São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 141.
(4) Peter GAY, op. cit., p. 21. Sobre a religião em Weimar, cf. Lionel RICHARD, op. cit., p. 145-149.
(5) Peter GAY, op. cit., p. 17 e 104-113.
(7) Ibidem, p. 37, 55-57, 97 e 105-106.
(8) Ibidem, p. 19-23, 41-43 e 50-55; Lionel RICHARD, op. cit., p. 131-134.
(9) Lionel RICHARD, op. cit., p. 119-120 e 125-126.
(11) Ibidem, p. 57-60; Peter GAY, op. cit., p. 23-26.
(12) Sigmund FREUD, op. cit., p. 154.
(13) Ibidem, p. 157, 167 e 169.
(15) Peter GAY, op. cit., p. 87.
(16) Lionel RICHARD, op. cit., p. 122-126.
(18) Peter GAY, op. cit., p. 43.
(19) Lionel RICHARD, op. cit., p. 134-138.
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