sexta-feira, 14 de junho de 2019

O filme “Xala”, de Ousmane Sembène


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Estou muito feliz por ter publicado aqui este trabalho de graduação, porque foi um dos melhores textos que escrevi na época, sobre um assunto do qual eu não fazia a menor ideia antes. Seu título é A arte de Sembène como vitrine da vida senegalesa, apresentado como trabalho final de semestre pra matéria de História da África, no IFCH/Unicamp, 1.º semestre de 2008, quando o professor ainda era o Fernando Rosa. O fato da Raquel Gomes, hoje docente do instituto, ter sido PED da disciplina foi algo que tornou as aulas deliciosas, pois ela é muito gentil e legal, me ajudou muito nas dificuldades que eu estava encontrando e até hoje é uma boa amiga! Redigi um catatau de 20 páginas relacionando as versões em filme e em livro de Xala, romance do senegalês Ousmane Sembène (1923-2007) sobre um comerciante da era pós-colonial que sofre o tempo todo com um feitiço brochante (o “xala”, que se pronuncia “rrála”) lançado nele logo após seu terceiro casamento. Modifiquei muito pouco o texto, apenas uns detalhes de redação erros reais de digitação que achei por acaso. Recomendo muito que, se conseguirem, assistam ao filme e leiam o livro, que li numa edição traduzida em Portugal!

O historiador contemporâneo deve estar ciente de que a arte, em suas mais variadas manifestações, pode servir, em vários casos, como preciosa fonte para o estudo de uma época ou de um espaço físico, seja uma pequena localidade, uma região, um país ou mesmo um continente inteiro. Produções literárias ou plásticas consideradas como obras-primas de seu tempo, ou mesmo, em certas situações, obras pouco conhecidas, mas levadas à luz pelo historiador, costumam servir como um instrumento muito útil para se conhecer o contexto no qual foram produzidas. Em tempos mais recentes, aparecem também, como recursos importantes para um contato maior com o passado, manifestações concentradas na comunicação sonora ou na junção de som e imagem, como o cinema e a televisão. Aí desempenham importante papel formas mais avançadas tecnologicamente de registro da informação, como, num primeiro momento, o disco de vinil e a fita magnética e, mais atualmente, o CD, os programas de computador e a internet. Por descreverem vários aspectos da vida cotidiana ou mesmo das ocasiões políticas que costumam passar despercebidos ou mesmo não foram considerados como passíveis de entrar para o rol dos “acontecimentos históricos”, todas essas produções mencionadas preenchem lacunas frequentemente encontradas na “historiografia oficial”. No século 20, presenciou-se grande esforço em completar tais vazios que deveriam tratar de temas marginalizados pelos historiadores, o que foi feito em especial pela maior amplitude dada à noção de “documento”: ele não seria mais o produto das instituições ou pessoas às quais supostamente estaria reservado o papel de protagonistas da história, mas qualquer produção legada pelos antepassados que pudesse ajudar a reconstituir sua vivência e o meio físico e temporal no qual se encontravam, ou parte deles.

Diante das presentes idéias, torna-se mais fácil atribuir às obras do senegalês Ousmane Sembène, sejam literárias ou cinematográficas, o caráter de documentos muito valiosos para a compreensão de seu país no período em que foram produzidos, sobretudo a partir da década de 1960. Nesse decênio, fazia-se deveras presente o impacto da descolonização, ou seja, a independência da maior parte dos países africanos perante o domínio colonial europeu, fato determinante para implicar o dever dos novos países de seguir seus próprios rumos e tomar suas decisões por si sós. O novo status da população africana colocava na pauta do dia o problema do choque, que há muito se fazia presente, entre a cultura africana e o modo de vida europeu, entre as tradições seculares que acompanhavam aquelas pessoas e a modernidade das instituições e dos meios de comunicação e transporte. Para tentar mostrar tamanha problemática relativa ao seu povo e seu tempo e propor soluções respeitantes do “jeito africano de ser”, Sembène lançou-se como um artista visionário portador de uma “função social utilitária” e produtor de criações que, segundo seu desejo, devem permanecer intemporais. (1) Sua obra, pois, tem a intenção de servir ao povo, já que, na concepção do artista, ela porta uma mensagem social dirigida tanto a privilegiados quanto a espoliados, na intenção de passar chamados que despertem para a mudança na sociedade e no modo como as pessoas relacionam-se umas com as outras. Acrescenta-se também a função de “parábola” de sua produção, que lança ao passado questões que afligem o presente daquele que a cria e daquele que a frui, e pode servir mesmo como fonte de indagações para os leitores ou espectadores de tempos posteriores ao surgimento dos livros e dos filmes.

Com essa intenção social e questionadora, Ousmane Sembène escreveu o romance Xala, publicado em 1973, e produziu depois, baseado no livro, o filme de mesmo nome. O enredo centra-se na figura de El Hadji Abdou Kader Bèye, comerciante senegalês muçulmano que sofre o xala (feitiço que tem por objetivo quebrar a potência sexual de alguém) após seu terceiro casamento, e na tentativa desse homem de livrar-se do mal que lhe foi infligido. A ocasião serve de pretexto para a mostra de problemas culturais, sociais e até mesmo linguísticos que perpassam o Senegal nos primeiros tempos após a conquista de sua independência perante a França, em 1960. A exibição das dúvidas e choques originados da oscilação entre a Europa e a África por parte das classes dominantes critica duramente o futuro que tais grupos decidiram traçar para seu país e procura sugerir uma solução que leve em conta, acima de tudo, as especificidades dos que aí sempre viveram. Além dessa oscilação cultural realizada de acordo com as conveniências de quem a vive, o presente ensaio procurará mostrar também como o enredo trabalha a exclusão linguística promovida pela política francófila do primeiro governo senegalês pós-colonial e sugere o papel fundamental que a mulher africana possui nos novos tempos. O destaque das diferenças entre o filme e o romance deverá permear a análise, a fim de mostrar uma distinção de objetivos e de mensagens que os dois formatos de Xala possuem e levantar outras questões sociais e culturais que essas diferenças possuem por pano de fundo.


A alegoria de Senghor, os problemas do Senegal e a crítica à ideia da “civilização universal” – Como obra política e social, e devido às contrariedades que Ousmane Sembène possuía com o governo do Senegal da época da escrita do romance e da produção do filme, Xala não poderia prescindir de criticar o regime político vivido pelo país e o homem que o comandava, Léopold Sédar Senghor, a quem é importante entender para detectar o jogo realizado pelo cineasta e escritor. O primeiro líder do Senegal independente, antes de assumir o poder, viveu por um longo tempo na França, onde fez uma boa porção de seus estudos superiores e começou sua carreira política como deputado da Assembléia Nacional francesa. Além de político, foi também escritor e poeta, produzindo sempre em francês, o que lhe colocou no panteão dos principais autores da francofonia africana. El Hadji, assim como Senghor, é uma pessoa que oscila entre os mundos africano e europeu, vivendo entre duas culturas, muito distintas material e linguisticamente. É interessante o uso que se faz da biculturalidade, pois os dois homens nunca fundem as duas tradições, mas saltam de uma para outra quando isso melhor lhes convém, já que uma cultura será melhor que a outra para encarar esta ou aquela situação. (2) Pode-se ver muito bem que El Hadji e Senghor, mesmo assumindo ser biculturais, preferem a Europa em sua vivência cotidiana, o segundo devido à sua naturalização francesa, e o primeiro devido a uma série de situações retratadas em Xala, como o consumo de água, comida, roupas e outros bens de origem européia. O personagem do romance também revela pouca adaptação para a cultura africana, devido às suas constantes atitudes europeizadas e apesar de seu passado infantil ser povoado por mitos e crenças locais, colocando-se como em becos sem saída todas as vezes que precisa deparar-se com ela. (3) Não se pode deixar de lembrar, porém, que o esforço dos franceses negros de parecer pessoas totalmente assimiladas e o das mulheres em casar-se com um branco metropolitano foram traços marcantes da população nativa do Senegal na era colonial, esforço que ainda pode ser encontrado em El Hadji. Esse esforço, todavia, chega a beirar o ridículo, pois em muitas situações em que o negro tenta passar-se por europeu, seu lado africano faz grande pressão sobre ele, lançando-o em situações constrangedoras. (4) Afinal, como afirma Yay Bineta, tia de N’Goné, “Tu não és um tubab!” (europeu), referindo-se ao novo marido da sobrinha. (5) A queda pela Europa é transparente na cena em que o protagonista, curado de seu xala, dirige-se à casa de N’Goné, a terceira esposa com a qual se casara recentemente, para finalmente consumar seu casamento, mas é informado de que a moça está no período da menstruação. No caso do romance, El Hadji, abatido e necessitado de aplacar suas necessidades sexuais, não se dirige à casa de Adja Awa Astou, a primeira esposa, mas à de Oumi N’Doye, a segunda, com a qual de fato pratica o sexo. (6)

Não se pode entender o que representa a cena sem a ciência dos significados carregados pelas duas primeiras esposas de El Hadji. Adja pode ser vista como uma encarnação do Senegal tradicional, muçulmano, falante preferencialmente do uolofe, resignado com a dominação masculina e seguidor dos costumes. É uma resignação e uma submissão que nascem das circunstâncias difíceis, pois Adja, por exemplo, em nenhum momento após o terceiro casamento de El Hadji pensa em divorciar-se do marido, pois teme não achar outro companheiro da mesma idade que ela e solteiro. São sentimentos acompanhados de uma grande piedade para com o próximo, com o qual sofre em conjunto, consequentes do seguimento à risca da religião, muçulmana no caso de Adja, que a usava, como Sembène parece mostrar, como uma espécie de droga, um subterfúgio para escapar à difícil realidade. (7) É uma África que está sendo abandonada, cujos rituais se tornam cada vez mais raros e desacreditados e são substituídos por hábitos considerados modernos, na maioria das vezes de origem européia, como também fica evidente na recusa de El Hadji a realizar o ritual com o pilão, proposto por Yay Bineta. (8) Quanto a Oumi, personagem-chave para entender parte da mentalidade do comerciante, trata-se de uma alegoria de um Senegal europeizado e francófono, modelo que Senghor, como presidente, distante do que falou como teórico e poeta humanista, tentou impor aos seus governados. Oumi é a mulher que se veste à européia, ouve rádio em francês, lê revistas femininas (em francês, é claro, vista a ainda incipiente produção escrita em uolofe, cuja maior expressão na trama é o jornal Kaddu), ama o luxo, a moda e a beleza corporal e não se cansa de arrancar dinheiro do marido. Tem propensão para a monogamia, ao considerar-se e tentar mostrar-se como a única esposa de El Hadji, e acredita em romances e “amores palpitantes” embalados por saídas noturnas, característica que se mostrará mais forte após abandonar o marido. (9) Tanto no filme quanto no romance, é visível sua mentalidade centrada na concorrência, que a levou a casar-se com El Hadji não por amor, mas por interesse em uma vida melhor, o que a leva a pensar que Adja foi quem arranjou o terceiro casamento simplesmente para atazaná-la. (10) Em outras palavras, é o abrigo europeu de seu marido, é a cultura do coração de El Hadji, na qual ele precisa imergir-se, esconder-se e recuperar suas forças nos momentos mais difíceis.

Transparecem também suas fugas para o lado africano em ocasiões como a preferência pelo islã como religião e a recorrência a curandeiros para livrar-se de seu xala, porém, é nítido o oportunismo de El Hadji quando ele opta por abrigar-se em seu próprio continente. Por ser muçulmano, o primeiro direito que o comerciante reivindica é o de casar-se mais de uma vez, até chegar na terceira esposa, que lhe proporcionaria maior notabilidade e boa reputação entre as pessoas que seguissem a mesma tradição. Ele também não prescinde da prerrogativa de exercer seu mando sobre as esposas e de demonstrar constantemente que o faz, tal como um “autêntico Africano” sempre procede, e não teria por que recusar um novo casamento que lhe aparecesse à vista, porquanto era um verdadeiro muçulmano. (11) É interessante como no filme, cujos espectadores privilegiados seriam os senegaleses, é passada a idéia de que El Hadji estaria casando-se por dever, como ocorre na cena em que o presidente da Câmara de Comércio, no início do filme, anuncia o terceiro casamento daquele membro do grupo. Também se encontra nessa versão, e não no livro, a fala em que, após a cerimônia, já no quarto dos noivos, Yay Bineta ordena a N’Goné que ela seja submissa ao marido, não eleve sua voz contra ele e faça-lhe todas as vontades. Em ambas as versões, há a cena anterior ao casório passada na casa de Adja, na qual Rama critica o acontecimento diante de seu pai, que lhe dá uma bofetada e ordena-lhe que faça suas “revoluções” em outro lugar. Porém, na película, aparecem mais duas falas de El Hadji, que mostra a importância guardada pela expulsão dos colonizadores que seu círculo promoveu e prega que a poligamia é um patrimônio religioso. De fato, a crítica às uniões múltiplas é menos presente no filme do que na obra literária, já que, como se verá mais adiante, o Sembène cineasta preocupa-se mais em instigar seus patrícios com uma forte crítica social do que com o apontamento de problemas nos costumes locais.

Voltando ao romance, o costume permite até mesmo uma situação irônica, na qual o dono de um restaurante francês frequentado por El Hadji afirma que a África, por permitir o casamento poligâmico, é um continente que sempre há de encontrar-se à frente da Europa. (12) É notável ainda o uso que El Hadji faz da poligamia como uma ótima ferramenta para satisfazer sua luxúria, sua sede por mulheres mais novas, com todo o frescor e o calor da juventude, e sua necessidade de se afirmar como homem viril, desejos que são, sobretudo, fruto de uma influência da cultura europeia. O próprio personagem pergunta a si mesmo se não fora esse o motivo que o levou à nova união, pois pairava sobre sua mente a dúvida sobre se ele realmente amava N’Goné: (13) afinal, como Oumi, no filme, adverte seu marido, ele não estaria mais na idade de domar uma potranca, visto que sua fama acabara. Com efeito, El Hadji não opta por divorciar-se das outras esposas basicamente pelo status que os múltiplos casamentos proporcionam, como já foi dito, e porque um divórcio seria um caminho muito oneroso e que lhe traria muitos problemas, como de fato ocorreu durante os acontecimentos finais da trama. Mesmo diante do xala que sofria com N’Goné, a separação seria algo que tiraria o rótulo de homem viril do comerciante e faria com que as despesas excessivamente vultosas do casamento tivessem sido em vão. (14) Mas por que a suposição da luxúria como algo de origem européia? Ora, o “sexo rei”, como o chamou Michel Foucault, emergirá no século 19 europeu, com a sexualidade tornando-se a tônica das relações sociais no continente e impregnando todos os discursos (15). Outros povos relacionar-se-ão muito diferentemente com o sexo, não se mostrando totalmente necessitados ou insaciavelmente sedentos dele, ele não impregnará quase totalmente suas relações sociais e discursivas. Por isso, pode-se dizer que o sexo como mediador social e, como se expressará claramente em El Hadji, a necessidade masculina de provar sua virilidade diante dos camaradas, além da justificativa ligada, sobretudo, à libido para casar-se pela terceira vez, são elementos essencialmente europeus.

O curandeirismo, por sua vez, mesmo constituindo uma prática amplamente difundida na sociedade senegalesa e que convive em harmonia com o islã, será uma ferramenta invocada por El Hadji apenas neste caso de extrema necessidade, quando o surgimento de outros caminhos para livrar-se de seu xala parece improvável. Na opinião de Sembène, e para seu desespero, a sociedade africana ainda crê em fetiches, e há aí dois fetichismos predominantes: o “fetichismo técnico”, que é o recurso à tecnologia européia, e o “fetichismo marabútico”, que exige o socorro aos marabutos, os praticantes das curas tradicionais. Para o cineasta, em uma sociedade que por séculos conviveu e dependeu de fetiches, eles não poderiam desaparecer tão rapidamente, mesmo com a importação de práticas mais “científicas”, como a medicina moderna. (16) Assim, quando El Hadji, que sempre zombou do xala dos outros, mas agora era também atingido, percebeu que não tinha como recorrer aos seus métodos preferidos, cedeu ao curandeirismo, mesmo não crendo nele, pois, como lhe dizia Yay Bineta, ele não era europeu, e por isso devia ter seguido seu conselho. (17)

A diferença entre o número de curandeiros que El Hadji consultou no filme e no romance e a linguagem usada em cada um para referir-se a eles mostram o tom da crítica de Sembène à má-fé dos mesmos e o impacto que o autor queria causar no grupo dos leitores ou dos espectadores. O romance, por ser voltado especialmente para ledores europeus, em especial àqueles que sabiam francês, a língua original da obra, possui uma crítica mais desenvolvida em relação às práticas tradicionais, das quais muitos curandeiros se aproveitariam para rechear os próprios bolsos. Percebe-se a ausência de eficácia desses profissionais quando o autor escreve que El Hadji procurou vários deles sem obter sucesso e quando os chama de “charlatães”. (18) O mesmo acontece em um trecho no qual Pathé, o futuro genro do comerciante, conversa com o médico-chefe do hospital em que trabalha sobre o xala do futuro sogro, ouvindo do superior a seguinte afirmação sobre o caso:

– [...] a ciência não é impotente. O que tem é zonas inexploradas. Além disso, estamos em África, nem tudo se pode explicar ou resolver com uma terapêutica bioquímica. O nosso país é o reino do irracional. Queres fazer o favor de te aproximares dele [El Hadji] mais frequentemente para saberes o que tem conseguido junto dos curandeiros? (19)

No excerto, é bem explícito o racionalismo professado por Sembène, que acredita na ciência como meio de explicação do mundo e torce para que os médicos estudem mais a fundo como certos problemas humanos são resolvidos pelos métodos tradicionais para que se possam elaborar remédios cientificamente elaborados. Entretanto, o cineasta sabe também que, mesmo que a ciência tenha conseguido suas próprias soluções para muitos males cotidianos, a população que possui pouco acesso, ou mesmo duvida dela, continuará a resolvê-los com aquilo que possui à mão. O autor também indica que a própria Rama ainda guardava essa dúvida, mesmo não sabendo o que a motivava dentro de si. (20)

Mais tarde, o último curandeiro ao qual El Hadji recorreu por indicação de Modu, o motorista, só obterá sucesso para mostrar ao leitor que tudo aquilo que é conquistado com facilidade, no fundo, é efêmero, e que a tentativa de ludibriar as pessoas sempre terá um final infeliz. Afinal, ao receber o cheque de El Hadji, o curandeiro lembra que aquilo que ele tirava, também podia voltar a pôr com a mesma rapidez, o que acabou concretizando ao descobrir que o comerciante lhe dera um cheque sem fundos. (21) Contudo, dizer aos senegaleses que o curandeirismo não funciona e que os seus praticantes são charlatães seria uma provocação a algo que lhes era caro, e por isso foram feitas algumas mudanças. Para não passar a idéia de ineficácia da prática, o número de curandeiros foi reduzido a dois, sendo o primeiro alguém que guardava certa distância de práticas que pudessem parecer muçulmanas e, por isso, sintetizava todos os curandeiros ineficazes aludidos no romance. Aquele que mais parecia aproximar-se da ritualística islâmica, com trajes e procedimentos que lembravam a religião praticada pela maioria dos senegaleses, foi o que conseguiu livrar El Hadji de seu xala.

Um dos pontos do pensamento político de Senghor, a quem Sembène criticou duramente por meio de Xala, é a pretensão de criar uma “civilização universal” para cuja formação todas as culturas deveriam contribuir com algo de bom. Para o cineasta, neste processo de encontro das culturas, não haveria apenas uma soma das coisas boas de cada povo, mas também das coisas ruins. O caso da poligamia é o melhor exemplo: mal adaptada ao meio urbano, ela torna-se fonte de divisão familiar e má formação dos filhos, ou seja, uma base frágil para uma sociedade que se pretende estável, e, na prática, apenas permite ao homem esbanjar dinheiro para tentar demonstrar riqueza. (22) Retornando ao caso de El Hadji, as duas esposas, em certo momento, sentir-se-ão como que rejeitadas pelo marido, que agora favorecia a nova companheira, e mesmo com esta as conversas serão escassas e a delicadeza na conversação, mínima. Sembène, ainda no romance, informa que os homens pertencentes à mesma categoria social do comerciante (notar a referência à mesma pela palavra “gentry” para facilitar a compreensão do leitor europeu) tendem a ver na esposa um simples instrumento de prazer e reprodução. Prescindir do carinho para com a companheira e usá-la para a simples afirmação da virilidade são atos compartilhados pelas culturas européia e africana, e poderiam ser elementos que, com o contato maior entre os povos pregado por Senghor, universalizar-se-iam. (23)

Um dos argumentos centrais de Xala, que é o choque existente entre as irreconciliáveis culturas africana e européia (como já dito, El Hadji não as funde), vai também de encontro à origem do universalismo de Senghor. O político vivia dentro de si a convivência pacífica entre o pensamento dos dois continentes, o que o levou a pensar que se poderia construir uma nova civilização resultante do diálogo entre “raças superiores” e “raças inferiores”, em cuja formação contribuiriam todas as classes sociais. Neste diálogo, também seria importante que não predominasse o cientificismo típico do colonialismo e promotor de tantas barbáries, mas a emotividade, que, sendo uma das principais características do povo negro, ajudaria a humanizar a ciência. Colaboraria também para essa humanização a arte, que, no fundo, possuía inspiração divina, já que “todos os seres humanos teriam brotado do seio de Deus via a Palavra ritmada”. (24) Para Sembène, contudo, a tentativa de realizar o encontro entre as duas visões de mundo só causa problemas, como demonstra El Hadji, que salta de um para o outro de acordo com a ocasião, constituindo um meio termo entre os negros que guardam as tradições e os negros mais europeizados, grupos que não travarão contatos entre si nem no filme nem no romance. O que mais se aproxima de um encontro entre os dois é a presença conjunta de Adja e Oumi no terceiro casamento do esposo, realizada ao fim de um tempo em que as duas se encontraram meras sete vezes e que durará apenas alguns minutos, encerrando-se com a volta de Adja para sua casa. Essa própria dificuldade de se misturar as duas culturas também mostra que o diálogo nunca foi a prioridade para os colonizadores e, por isso, seria ingenuidade pensar que todos aqueles que gozam de um status superior em sua sociedade ou no mundo, sejam negros ou brancos, cederiam gratuitamente suas posições em favor dos mais oprimidos. A arte de Sembène, ao contrário, também é mais racionalista, possui preocupações mais práticas e voltadas, sobretudo, para o social, opondo-se à emotividade da de Senghor, cujas inquietações sociais apareceriam apenas na teoria, e não na prática. É preciso lembrar ainda que se o racionalismo cientificista é uma característica européia, o que Sembène faz em suas criações é propor um outro racionalismo, baseado não em coisas da Europa, mas da África. Este argumento será melhor desenvolvido adiante, na interpretação sobre Rama.

Outras críticas que Sembène faz ao Senghor político podem ser decodificadas na diferença que existe entre a N’Goné do romance e aquela do filme. Neste, a moça mal fala, mal mostra seu rosto e atua em poucas cenas, sempre de forma passiva, em suma, sua atuação é apagada, o que representa a figuração de um futuro incerto, sem rosto e misterioso reservado ao Senegal, face ao país tradicional, materializado em Adja, e à nação europeizada, representada por Oumi. A mensagem aos compatriotas é clara: “não sabemos o que acontecerá ao nosso país, possuímos líderes impotentes que não sabem lidar com nosso porvir e o povo está assistindo passivo ao desenrolar dos problemas, sendo que é preciso que ele atue mais presentemente”. Todavia, o livro mostra uma jovem mais livre e ativa, que inclusive preocupa sua mãe com a possibilidade de engravidar de algum dos amigos com os quais frequentemente sai. (25) Já casado pela terceira vez, incomodado com os constantes pedidos feitos pela jovem, como aprender a dirigir, e pelo ápice das preocupações ocasionadas pelo seu xala, El Hadji não mais a considera como alguém que, como outrora, fazia-lhe fugir da monotonia rotineira e dava luz e cor à sua existência, mas como um peso, um fardo, uma “perseguição moral e física”. (26) Desta vez, o recado é outro, e dirigido aos europeus: a herança deste continente para a África deve ser vista como pesada, pois a luxúria de El Hadji, traduzida no terceiro casamento, já se tornava insustentável, era sem sentido e não cabia e nunca coube na realidade africana. Será que não era hora de as classes dominantes “caírem na real” e perceberem que não se estava na Europa para que elas se comportassem como europeus? A poligamia e a luxúria, destarte, eram dois erros de culturas diferentes e que, se houvesse uma “civilização universal”, com certeza caminhariam lado a lado contrabalançando com as benesses da junção das boas contribuições de cada cultura. Algumas páginas atrás, Sembène também expressa alegoricamente sua desilusão com o Senghor político, que possui um coração mais voltado para a França do que para seu país, mais voltado para a cultura francesa do que para a senegalesa, fato a partir do qual questiona: “Como pode alguém que tem três esposas e três vivendas ir dormir num hotel?”. (27) Sempre foi típico de Senghor favorecer a francofonia e abrigar-se nela para produzir sua literatura, porém a frase fará mais sentido após o fim de seu governo, quando ele saiu de seu país para viver na França, onde se tornou membro da Academia Francesa. Por isso, é um questionamento que ainda poderia perguntar, mesmo alguns anos após de sua colocação: como pôde Senghor, que assistiu a tantas fases do desenvolvimento de sua nação, prescindir de viver em sua terra natal, seu verdadeiro lar?

Há também uma divergência entre Senghor e Sembène no que tange ao uso da cultura e ao destino do Senegal pós-colonial. Senghor acreditava que a cultura seria o meio mais eficaz de operar mudanças em seu país, pois ela ultrapassaria as fronteiras étnicas e religiosas, não apoiando a via política por si só, pois, em sua concepção, os problemas políticos seriam automaticamente resolvidos pelo intercâmbio entre culturas. Seria a união cultural que proporcionaria a consolidação da chamada União Francesa, que reuniria a França e suas ex-colônias em pé de igualdade, para que o preço pago pela colonização não fosse distribuído apenas aos ex-colonizados, mas repartido também com a velha metrópole, e para que a África também pudesse desfrutar do que lhe foi espoliado pela Europa. (28) Sobre a cultura, Sembène não a defende como um instrumento de fusão entre culturas, mas como uma ferramenta auxiliadora na luta contra a opressão dos povos estrangeiros, frente aos quais os senegaleses deveriam formar uma identidade nova. Também saltam aos olhos o apoio a um Senegal independente, separado da França, pelo qual Sembène sempre lutara e cuja idéia continuava a defender, e uma crítica pesada à atuação dos líderes nacionais, em especial Senghor, que, representado na figura de El Hadji, exerceu vários mandatos presidenciais sem seguir o próprio pensamento escrito. Os líderes senegaleses eram corruptos, e o próprio cineasta lembra que, apesar de a evolução da qualidade de vida do povo africano ser bem maior do que a da burguesia, esta, por desviar para si metade do dinheiro do continente, enriqueceu bem mais. (29) No próprio romance, há a intenção de ensinar como o uso da malícia para a ascensão pessoal consegue obter apenas realizações efêmeras e como o modo burguês de proceder nos negócios é um meio falacioso e, tal como El Hadji, corrupto. (30) Além da questão da luxúria, pode haver outro motivo pelo qual El Hadji, fruto da colonização francesa, seja muçulmano, e que deve ser analisado por um viés político. Os franceses muçulmanos do Senegal possuíam grande poder de barganhar com os colonizadores, até que, na década de 1940, Senghor, para eleger-se deputado da Assembléia Nacional francesa, contou com o apoio das confrarias muçulmanas. Fortes parceiras da administração colonial, recebiam dela mais dinheiro do que os próprios fiéis somados, e por isso Senghor possuía as mãos atadas aos guias espirituais que lideravam tais confrarias. Por isso mesmo, a simbiose entre as confrarias e os colonizadores permitiu enorme expansão da religião muçulmana no Senegal. (31)


A exclusão linguística colonial e a crítica à francofonia de Senghor – Um dos problemas centrais dos países colonizados era a questão linguística, pois constituía regra o fato de as metrópoles implantarem aí um aparelho administrativo ao qual só poderiam ter acesso as pessoas que falassem o idioma do colonizador, como o francês, no caso da África Ocidental Francesa, na qual se localizava o atual Senegal. A primeira consequência dessa situação foi a criação de uma elite negra que, apesar de falar como língua materna um dos idiomas nativos que possuíam falantes na colônia, como o uolofe, recebia uma educação quase exclusivamente francófila (usa-se aqui esta palavra para indicar que havia assimilação não só linguística, mas também cultural). Como fica bem claro no filme e no romance, El Hadji é um dos frutos exemplares de tal processo, não só por sua paixão pela cultura francesa, já exaustivamente comentada no presente ensaio, mas também pela frequência com a qual utiliza a língua de Balzac. A segunda consequência da política administrativa colonial foi, consequentemente, a impossibilidade da participação da maior parte da população nativa, que não sabia francês, na máquina burocrática da colônia ou do desfrute, pelos falantes de línguas como o uolofe, dos direitos reservados à população assimilada. Os efeitos excludentes da imposição do francês como idioma de trabalho prolongaram-se até o surgimento da sociedade pós-colonial, como se pode notar em várias situações presentes no filme e no romance.

No caso da película, pôde-se expressar mais dinamicamente o bilinguismo do meio em que vivia El Hadji por meio dos diálogos nos dois idiomas que se intercambiavam, porém o livro não deixa de exibir fatos significativos, mesmo sendo seu único recurso intervenções do narrador que esclareciam que o personagem “disse em francês” ou “disse em uolofe”. Não são raras as ocasiões em que a primeira fórmula é utilizada em falas da segunda e da terceira esposa de El Hadji nas quais elas lhe prestam um favor ou serviço, indicando sua submissão ao marido, ou em situações nas quais pessoas autoritárias como Oumi desejam impor-se a alguém ou em alguma situação. Dito de outra forma, o francês protagoniza situações em que há uma explícita relação de dominação de alguém que se afina com a cultura européia e obriga ao uso de seu idioma um subordinado. (32) Quando o dominado é obrigado a expressar um acontecimento que constrangerá o dominador, ele também se vê acuado a usar o idioma deste, para que pareça mais eufêmico em sua declaração e, por ser um fato ligado também a quem o fala, diminua sobre si os efeitos da ira daquele que o recebe. Essa parece ser a explicação para o fato de N’Goné dizer ao marido em francês que não pode ter relações por estar menstruada, mesmo após ele se ter curado de seu xala. (33) A língua europeia também é utilizada pelos homens de posse, que, como já foi dito, são nela educados por pertencerem a uma elite dominadora restrita, e por isso, mesmo que reconheçam o uolofe como uma língua de intimidade e de familiaridade, têm dificuldades em praticá-lo devido à falta de uso. Como exemplo de tal situação, pode-se recorrer à conversa entre El Hadji e o subdiretor do banco ao qual o comerciante queria recorrer para obter um empréstimo, na qual o funcionário tenta falar em uolofe com o cliente mas, “Por defeitos da longa prática”, termina por expressar-se em francês. (34)

O caso mais emblemático de dominação linguística por meios burocráticos é a cena, aparecida apenas no romance, em que o guarda de trânsito pára a moto dirigida a toda velocidade por Rama e na qual também está seu noivo, Pathé. (35) Perguntada em francês sobre seus documentos, a jovem responde ao guarda em uolofe e finge saber falar apenas este idioma, ao que a autoridade questiona como ela conseguiu tirar a carta de motorista sem dominar o idioma europeu. O ato do policial de reconhecer Pathé como o médico que tratou de sua segunda mulher foi o que de fato ajudou Rama a livrar-se do embaraço, o que se nota bem na frase “Se não fosse ele tirava-te a carta de condução”. Porém, o assombro do guarda ao saber que ela teria obtido os documentos sem falar francês mostra a política excludente que restou do sistema colonial e que, como se verá adiante, foi imposta mesmo ao Senegal independente. Outra ocasião rica em significados e que, também apenas no romance, aparece antes da descrita acima, é a cobrança por Rama da multa ao seu noivo, na saída deste do hospital em frente ao qual ela o esperava, por ele ter falado em francês. Ambos pertencem a um grupo de língua uolofe, que tem por função divulgar e preservar o idioma e no qual os membros que se expressarem em francês devem pagar uma multa de natureza variada, como forma de estimular o uso do idioma nativo mais falado no Senegal. (36) Deve-se ligar aos incidentes outras duas cenas posteriores, presentes tanto no filme quanto no livro. A primeira é aquela na qual Rama se dirige ao escritório de seu pai para lhe informar que sua mãe precisava da presença do marido. (37) Contudo, a película guarda uma particularidade importante, que é o fato de El Hadji dirigir-se à filha em francês, mas ela responder apenas em uolofe, ao que o pai chega mesmo a questionar o porquê de ela fazer isso, mas sem obter uma resposta satisfatória. O mesmo ocorre na segunda cena, que mostra a reunião na Câmara de Comércio na qual os membros votam pela exclusão de El Hadji devido à mancha que sua corrupção estaria causando no órgão. (38) Somente no filme aparece o momento em que o comerciante tenta defender-se em uolofe, mas é impedido pelos colegas por “questão de ordem”, segundo a qual devem-se respeitar, naquele local, as regras da francofonia, até mesmo durante os insultos. Chega a ser uma situação cômica diante do fato de, no início do filme, esse grupo reivindicar sua africanidade, mesmo se afirmando como constituído por adeptos da modernidade.

Pode-se concluir daí a grande probabilidade de Sembène ter querido deixar a cena do guarda apenas para o livro, pois ela teria servido para mostrar aos europeus o autoritarismo que reveste o uso da língua francesa, além de retratar as difíceis situações nas quais o não falante do francês frequentemente se encontra ao deparar-se com a burocracia estatal legada pelos colonizadores. No romance, é Rama quem se encontra mais ferida pela exclusão linguística, justamente para fazer os leitores pensarem e se solidarizarem com o problema. A moça, além de aplicar a multa a Pathé por ele ter usado a língua da oficialidade, ato que provavelmente lhe dói no coração por indicar o abandono do uolofe que o multado estaria cometendo, é a vítima da repressão policial ocasionada pelo episódio da moto. Já as características que, no filme, revestem as duas situações posteriores interessariam mais aos senegaleses, aos quais seria agradável ver mostrada a questão das dificuldades de comunicação sofrida por eles cotidianamente e que nele assistem, desta vez, a El Hadji como vítima. No episódio do escritório, passa-se um agradável desafio realizado pela cultura popular, representada por Rama e sua defesa do idioma uolofe, à cultura das autoridades, encarnada em El Hadji e seu uso da língua francesa. Contudo, na última reunião da Câmara exibida na película, o comerciante é quem sente o gosto da exclusão, pois ele apresenta dificuldade em posicionar-se diante de uma situação extrema em uma língua que não lhe é materna, caso muito frequente em qualquer cultura, em qualquer ocasião. A virada que aí acontece, dos defensores da africanidade que se tornam arautos da francofonia, instiga os senegaleses a se insurgirem, seja apenas internamente ou também externamente, contra a repressão comunicativa da qual eles são vítimas.

O acontecimento da Câmara também pode ser interpretado como a armadilha causada pela exclusão linguística, armada pelo próprio El Hadji em seu cotidiano, ao priorizar o francês em sua relação com as pessoas, e na qual ele mesmo caiu. Em todo o seu cotidiano, o comerciante representou um Senghor que inseriu o Senegal no mundo da francofonia ao transformar o francês no idioma oficial do país, a despeito da maioria de pessoas que falam o uolofe. Apesar disso, ao tratar do estudo da realidade africana, Senghor chegou a defender o estudo das línguas desse continente, pois, nas palavras de Alain Pascal Kaly, o político julgava que “O domínio das línguas facilita sempre o diálogo entre pessoas e entre culturas”. (39) Até mesmo tal idéia será criticada por Sembène em Xala, pois tanto na versão literária quanto na cinematográfica não aparecem situações em que o domínio simultâneo do uolofe e do francês possibilite um diálogo entre as duas culturas, por três motivos. Primeiro: como já foi dito, os grupos que falam idiomas diferentes não se comunicam entre si, possuindo em El Hadji um meio-termo, pouco útil como intermediário. Segundo: na maioria das vezes, o multilinguismo (no caso de Xala, bilinguismo) é mais motivo de conflitos do que de acordos, como mostram os casos do guarda de trânsito (versão literária), da conversa no escritório de El Hadji e da expulsão do mesmo da Câmara (versão cinematográfica). E terceiro: em situações das quais o comerciante não possui controle, ele nunca escolhe o idioma que vai falar, adaptando-se a cada caso de acordo com a necessidade. Porém, mesmo a concepção universalista de Senghor possuía a limitação de considerar o francês como idioma de comunicação entre os diversos povos que deveriam compor a “civilização universal”, mantendo o status de inferioridade das línguas autóctones. (40) Senghor afirmava que usava o francês “para expressar seus sentimentos e emoções enquanto negro” por ser um “mestiço cultural”, (41) porém Sembène rejeitava transformar esse idioma em uma finalidade, ao contrário de Senghor, prática que se mostra visível nas canções em uolofe do filme, escritas pelo próprio cineasta. Na opinião de Sembène, todas as línguas são ricas, mas desde que se saiba usá-las, e por isso ele não deseja que seu país seja aprisionado dentro da francofonia. Por isso, considera que o uso que faz do francês não é uma escolha, mas a posse de uma ferramenta de comunicação com a qual ele transmite suas idéias. (42) A opção de Sembène, portanto, mostrada na crítica linguística que faz por meio de Xala, portanto, é o lamento pela manutenção do francês como idioma do Estado, de certa forma marginalizando o incentivo ao uso de outros idiomas, movimento contra o qual Rama lutará, como se verá adiante.


Rama como a encarnação do modelo de Senegal desejado por Sembène – Até aqui, o presente ensaio expôs a quantidade de problemas vividos pelo Senegal e que são traduzidos nos diversos elementos criados por Sembène em Xala, em especial o choque entre as culturas européia e africana, a adoção pelas elites de um modo de vida estrangeiro em detrimento da tradição africana, a indefinição do futuro do país, a exclusão linguística, entre outras coisas. O escritor e cineasta, como todo bom crítico social, não se limitou a apontar as falhas no processo de transformação que sua nação estava vivendo sob o comando de Senghor, mas, ao mesmo tempo, materializou seu sonho nas ações, no pensamento e no caráter da personagem Rama. A moça é a expressão da nova mulher africana, ligada às suas raízes e grata à sua tradição, independente, lutadora e ciente da importância de seu papel na sociedade. Pode-se notar, por tais características, a grande diferença que ela guarda em relação à própria mãe, que possui caráter piedoso, passivo e conformista, e aceitou mesmo carregar uma espécie de culpa pelo xala de El Hadji, mesmo sabendo que não era a responsável pelo feitiço. (43) Mesmo o uso que Rama faz da religião é mais pragmático, mais relacionado a uma identificação cultural e diferente daquele da mãe, que a usa para fugir de seus problemas, e daquele do pai, que se diz muçulmano, mas com o pretexto de dar vazão à sua luxúria por meio da poligamia. É interessante recordar que Sembène, apesar de possuir um modo racionalista de ver o mundo, também é muçulmano, ou seja, sua proposta pode muito bem ser a de fazer um uso mais racional da religião, e mesmo das práticas tradicionais, para que elas não sejam usadas para servir de instrumentos para fins pouco nobres relacionados ao proveito pessoal. Por designar-se uma “muçulmana moderna” que não aceita os casamentos múltiplos, (44) ela amplia tal diferenciação e lança a semente não só de uma nova mulher, mas também de um novo povo, tal como o concebe Sembène. Isso tudo também mostra o desejo de Sembène de criar uma nova racionalidade africana, que mesmo ligada nos progressos da ciência, não deve desligar-se dos benefícios culturais que o seu próprio continente pode trazer para proporcionar à tecnologia usos mais humanizados e coerentes com a realidade dos africanos.

Todavia, engana-se quem diz que Rama, assim como Oumi, é uma moça europeizada devido à sua independência, expansividade e cultura, pois o leitor ou espectador ocidental que toma tal atitude idealiza o próprio modo de vida como modelo universal de uma sociedade ideal. A vontade de liberdade feminina não é exclusiva da sociedade europeia, mas também está presente na sociedade africana e, sobretudo, no Senegal devido à importância, ao papel e ao poder que ela possui na educação dos filhos, (45) na cultura tradicional e na sustentação da economia. Conforme a crença que predomina na África Negra, a mulher possui um grande poder para mudar qualquer situação. (46) É por isso que Sembène afirma que a mulher africana evoluiu muito face à sua própria sociedade e em relação mesmo aos homens, no sentido de elas assumirem a economia local e sua própria independência. São esses motivos que dão, na opinião do cineasta, o papel de liderança às mulheres (47) e em cujo espírito Rama parece ter sido criada como personagem. Também é interessante o fato de a moça não estar junto de seu noivo por interesses financeiros, como Oumi, ou para satisfazer suas necessidades sexuais de modo prazeroso, como El Hadji, mas por afinidade, por vontade própria, uma liberdade que ainda era rara em seu país. Ainda assim, o Senegal não lhes oferece muitas oportunidades para ascender na vida sozinhas, devendo muitas vezes se rebaixar para que possam alcançar independência financeira. Por isso mesmo, Oumi, que por um momento pensou em divorciar-se de El Hadji após o terceiro casamento do marido, desistiu de fazê-lo ainda em pensamento. (48)

A divergência de interesses entre o leitor e o espectador também deve ser levada em conta no tocante à ideia da virgindade feminina, um dos maiores tabus das sociedades muçulmanas e determinante para a aceitação ou não da esposa pelo marido durante as núpcias. No livro, há uma constante dúvida da virgindade das jovens, tanto de N’Goné, cuja mãe, como visto acima, teme que ela engravide durante suas saídas constantes, quanto de Rama, que afirma ironicamente a seu noivo que a terceira esposa de seu pai “é tão virgem como eu”. (49) O romance trata mais da questão da quebra da moral predominante, e procura provar que a liberação feminina também se aplica à África, onde a função de tal movimento não seria a de aumentar a participação das mulheres africanas em sua sociedade, mas apenas tornar reconhecido um papel que elas já possuem. Quanto ao filme, embora Sembène expresse sua vontade que a situação na África mudasse, tais questões seriam demasiado acerbas se fossem tratadas de modo muito aberto em uma sociedade tão tradicional, o que deixaria os senegaleses de certa forma incomodados. (50) Há inclusive uma fala que aparece apenas na película, pela qual El Hadji, na festa de casamento, declara a amigos sua certeza de que a nova esposa é virgem. Antecede-a uma clara omissão dos principais momentos de temor da mãe de N’Goné presentes no romance e nos quais ela declara a necessidade de um casamento urgente para que sua filha não perca a virgindade com qualquer um. Deve-se lembrar que se nem na Europa pós-1968 a situação da mulher realmente mudou, que dirá em um continente cuja maioria da população não passou por um fenômeno parecido. Cumprindo seu lema de fazer um cinema que sirva ao povo e seja sua voz, Sembène preferiu, na versão cinematográfica, tocar com maior constância em questões mais palpáveis e diretamente relacionadas aos seus conterrâneos, como a questão social e a miséria, a serem tratadas mais adiante neste ensaio, do que nos choques nas relações familiares.

Rama também representa críticas duras tanto ao Senghor teórico quanto ao Senghor político, a começar pelo combate à poligamia que a jovem protagoniza, motivada por toda a crítica aos casamentos múltiplos que já foi comentada aqui, o que a faz opor-se ao terceiro casamento do pai e pedir ao noivo que não tome outra esposa além dela. É uma poligamia que não só obriga o homem, em cada casório, a despender quantias monstruosas de dinheiro, como também leva a primeira esposa a receber a culpa de todos os males, relacionados a problemas com as outras esposas, que o marido venha a sofrer. (51) A cena em que Rama leva uma bofetada de seu pai, citada mais acima para mostrar a importância que, no filme, El Hadji reservava à poligamia, também põe a jovem como opositora do despotismo e mostra a limitação do lado revolucionário que tanto o comerciante quanto Senghor possuíam. O comerciante lutou pela independência do Senegal, o que não deixa de ser uma revolução, entretanto, em uma circunscrição menor e na qual ele possui plenos poderes, ou seja, sua família, não admite, por ser a autoridade máxima, que ninguém desrespeite suas ordens, inclusive Rama, a qual, em um tom “moralizador”, ele julgava que “tinha muita liberdade”. (52) Já o líder político escrevia (ou ao menos tentava escrever) para toda a humanidade, à qual pregava a igualdade das pessoas acima das diferenças de cor, religião, nacionalidade etc., porém não prescindiu do autoritarismo durante o período em que governou seu país, o que mostra novamente a grande distância entre o Senghor escritor e o Senghor presidente.

Crítica das imposições culturais colonialistas, Rama fala preferencialmente a língua da maior parte de seu povo, não só porque é a mais falada no Senegal, mas também, como já foi dito, porque ela é a encarnação da nova mulher senegalesa que Sembène enxerga como a promessa dos novos tempos e que luta pela sua emancipação, mas não se desliga da cultura que ela herdou de seus antepassados. Sua fé no idioma uolofe se expressa em uma das passagens mais belas do romance, na qual El Hadji, ao chegar à casa de Adja, depara-se com Rama a escrever nessa língua. Ao ser questionada pelo pai sobre a amplitude de seu uso no país, ela lembra que “85% do povo utiliza-a” e, após qualificar o francês como “acidente histórico”, declara triunfante que “O uolofe é a nossa língua nacional”. (53) É um dos idiomas nos quais os senegaleses expressam seus sentimentos mais profundos, suas alegrias, suas tristezas e sua cólera, o que não foi permitido a El Hadji no momento de sua expulsão da Câmara de Comércio. A mensagem aos antigos colonizadores é clara: “temos nossos próprios meios de expressão e não precisamos de um idioma que não foi criado para expressar a realidade africana, mas uma outra, totalmente alheia a nós”. Retornando um pouco à cena do escritório de El Hadji, na qual ele e sua filha conversam em idiomas diferentes, o silêncio da moça ao ser questionada sobre o porquê de falar em uolofe mostra como, na verdade, é ele quem deve dar-lhe um esclarecimento. Deve prestar contas não só da infelicidade da qual Rama afirma que sua mãe está sofrendo, mas também do predomínio, em um senegalês independente, da marca do colonizador. Ampliando as consequências culturais desse pensamento, ele pode ser usado como explicação para o fato de Sembène privilegiar a África como referência para construir-se a si mesma, já que, para o cineasta, “É o homem quem se faz e quem se refaz”, não devendo ter mais como modelo a Europa, que, excluído o campo técnico, nada mais teria a oferecer-lhe. (54) No romance, Sembène inclusive deixa vazar um elogio implícito ao modo de vida tradicional africano, ao descrever a aldeia em que vivia o Sérigne Mada, que “não tinha loja, nem escola, nem dispensário, nem qualquer ponto de atracção”, porém se sustentava na “solidariedade comunitária” praticada pelos habitantes. (55)


O muito que ainda se há de fazer – À guisa de conclusão, e após lançar luz sobre a possível solução que Sembène propõe à sua sociedade, é mais do que necessário recordar que o próprio cineasta, ao longo do filme, expressou também as dificuldades pelas quais seu projeto teria de passar, ocasionadas, sobretudo, por um cenário de pobreza deixado pelos franceses. Como já foi lembrado acima, uma das principais diferenças entre o livro e a película é a ênfase que esta dá ao cenário de miséria vivido por boa parte da população senegalesa, largada à sorte da fome, do frio e da mendicância, muitas vezes acompanhados de alguma mutilação ou doença grave. No casamento de El Hadji, as cenas nas quais o noivo joga moedas para os transeuntes que se encontram na rua mostram a grande importância da menor quantia em dinheiro que essas pessoas pudessem receber. Em outros momentos, impressiona a grande quantidade de mendigos e desabrigados, grande parte deles aleijada, que anda grandes distâncias pelas ruas da cidade para, na maioria das vezes, receber uma alimentação que nem sempre lhes é suficiente. O furto ao rapaz que olhava o acidente de carro também mostra a que ponto chega a necessidade das pessoas, e o destino inicialmente pretendido ao dinheiro esclarece ainda que o pouco de recursos que uma família ou um grupo consegue juntar deve ser usado exclusivamente para satisfazer suas necessidades básicas. No meio de tal cenário, El Hadji, homem que tem meios para gastos desnecessários e indicadores de um exibicionismo elitista, constitui uma exceção. O comerciante exibe-se como uma fuga à regra mesmo em sua posição perante o mendigo que frequentemente se encontra na parte de fora de seu armazém tocando um instrumento e salmodiando canções que tratam de temas sociais, escritas pelo próprio Sembène. O cantor é conhecido e apreciado pelos populares que passam pelo local, porém El Hadji é a única pessoa que se aborrece com sua presença. O incômodo fica mais claro quando, no filme, pede ao presidente, em visita a seu escritório, que ligue para a polícia a fim de que ela retire aquele “lixo humano” que tem como principal característica ser “péssimo para o turismo”.

O mesmo mendigo será o protagonista do ápice da calamidade social que perpassa o filme, quando ele e seus companheiros entram na vila “Adja Awa Astou” e começam a consumir os comes e bebes da casa. O líder do grupo afirma que foi ele quem infligiu o xala a El Hadji devido à expropriação pelo comerciante das terras de seu clã e da expulsão e prisão do sujeito levada a cabo pelo mesmo. Não fica difícil assimilar a situação à espoliação dos nativos africanos promovida pelos europeus e por seus agentes do próprio continente, entre os quais se podem encontrar Senghor e, consequentemente, El Hadji. Vale lembrar que Sembène chega a afirmar que Senghor é “o mais belo fruto do sistema colonial” que a França pôde oferecer ao Senegal, (56) mostrando o papel que o político exerceu na dominação estrangeira colonial e pós-colonial. Uma vez espoliados, era a vez de os nativos pobres se vingarem, porém, como se pode notar, os únicos a sofrer as consequências serão outros africanos, gente da mesma origem. El Hadji, exceto a humilhação que terá de passar para se livrar do xala, sofrerá apenas perdas materiais de alguns produtos que são, na verdade, supérfluos, porém Rama é aquela que será mais vitimada, junto de sua mãe, pela ação dos pobres. (57)

O sofrimento da primogênita de El Hadji é a maior marca da insatisfação da moça com a Europa e com o passado da dominação europeia vivido pelo Senegal. Ela será uma das que mais os ameaça com a chamada da polícia, acompanha sua mãe no choro de medo e é também violentada moralmente pelo assédio que sofre ao ser olhada com lascívia por dois dos sujeitos. Rama, assim, passa-se por uma africana que se entristece pelo choque que ocorre entre seus ideais revolucionários e o fato de ser agredida pelos próprios conterrâneos por algo que ela não fez. É ainda o sinal da mulher como a principal sofredora de todas as dominações exercidas por um ser humano sobre outro ser humano e cuja importância na sociedade não é reconhecida pelo sexo masculino. A reflexão que se pode deixar, a partir desta última explanação, é aquela sobre os danos deixados na África pelos colonizadores e seus agentes, que polarizaram a sociedade entre aqueles que possuem muito além de suas necessidades e aqueles que não conseguem ter ao menos uma refeição decente. A partir de tal demarcação traçada sobre a população, surgiram também conflitos mais perigosos entre os próprios africanos, tratados em outras obras, por motivos que nem sequer lhes passavam pela cabeça até o século 19. Assim, os nativos pagavam por um erro do qual eles não possuíam a mínima culpa, e cuja responsabilidade é de apenas um grupo: o dos europeus. Eis, então, o maior desafio que se põe à construção de um novo Senegal e de um novo povo senegalês: a superação de barreiras sociais impostas de fora que proporcionem a união de toda a população nessa caminhada rumo a um desenvolvimento com características próprias e livre da submissão estrangeira. É nesse movimento que entram o cinema e a literatura produzidos por Sembène, cujo papel é ser a nova expressão cultural de um país que deseja a liberdade de construir um futuro e um progresso mais ligados ao seu jeito de ser.


Bibliografia

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. 23. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007.

KALY, Alain Pascal. Leopold Sedar Senghor e a construção do Estado-nação senegalês. Comunicação apresentada no Seminário de Construção de Estado-nação na África, UFSC, Florianópolis, maio de 2006.

SEMBÈNE, Ousmane. Xala. Tradução de Maria de Santa Cruz. Lisboa: Edições 70, 1979.

SEMBÈNE, Ousmane; AAS-ROUXPARIS, Nicole. “Conversation avec Ousmane Sembène”. The French Review, v. 75, n. 3, pp. 575-583, Feb. 2002. Disponível nesta página. Acesso em: 10. abr. 2008.

XALA. Produção e direção de Ousmane Sembène. Senegal: Films Domireew, 1975. 1 DVD (117 min.).

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Notas (clique no número pra voltar ao texto)

(1) Ousmane Sembène e Nicole Aas-Rouxparis, “Conversation avec Ousmane Sembène”, The French Review, v. 75, n. 3, fev. 2002, p. 574.

(2) Ousmane Sembène deixa clara tal característica de El Hadji em Xala, Lisboa, Edições 70, 1979, p. 12.

(3) Ibidem, pp. 66-67.

(4) Alain Pascal Kaly, Leopold Sedar Senghor e a construção do Estado-nação senegalês, comunicação apresentada no Seminário de Construção de Estado-nação na África, UFSC, Florianópolis, maio de 2006, pp. 25-28; Ousmane Sembène, op. cit., p. 30.

(5) Ousmane Sembène, op. cit., p. 30.

(6) Ibidem, pp. 92-94.

(7) Ibidem, pp. 23, 33, 35 e 65.

(8) Ibidem, pp. 21, 30 e 43.

(9) Ibidem, pp. 48-49, 51 e 123.

(10) Ibidem, p. 26.

(11) Ibidem, pp. 13, 15, 17 e 19. Sobre o direito aos quatro casamentos, cf. p. 44.

(12) Ibidem, p. 77.

(13) Ibidem, p. 55.

(14) Ibidem, pp. 120-126 e 141.

(15) Michel Foucault, “Não ao sexo rei”. In: Microfísica do poder, Rio de Janeiro, Graal, 2007, pp. 229-242.

(16) Ousmane Sembène e Nicole Aas-Rouxparis, op. cit., p. 575 e nota 3.

(17) Ousmane Sembène, Ibidem, pp. 38-39.

(18) Ibidem, p. 54.

(19) Ibidem, p. 60.

(20) Ibidem, p. 64.

(21) Ibidem, pp. 91-92 e 118-119.

(22) Ibidem, p. 83 e nota 1.

(23) Ibidem, pp. 32 e 79.

(24) Alain Pascal Kaly, op. cit., pp. 10, 12, 15-16 e 18-19.

(25) Ousmane Sembène, op. cit., p. 16.

(26) Ibidem, p. 81.

(27) Ibidem, p. 77.

(28) Alain Pascal Kaly, op. cit., pp. 39-41.

(29) Ousmane Sembène e Nicole Aas-Rouxparis, op. cit., p. 575.

(30) Ousmane Sembène, op. cit., p. 117. Para alusão de El Hadji à corrupção de sua classe, cf. p. 112.

(31) Alain Pascal Kaly, op. cit., pp. 30 e 34.

(32) Ousmane Sembène, op. cit., pp. 27, 48 e 80.

(33) Ibidem, p. 94.

(34) Ibidem, p. 105.

(35) Ibidem, pp. 60-61.

(36) Ibidem, p. 60.

(37) Ibidem, pp. 97-98.

(38) Ibidem, pp. 108-113.

(39) Alain Pascal Kaly, op. cit., p. 17.

(40) Ibidem, p. 21.

(41) Ibidem, p. 42.

(42) Ousmane Sembène e Nicole Aas-Rouxparis, op. cit., p. 577.

(43) Ousmane Sembène, op. cit., p. 58.

(44) Ibidem, p. 98.

(45) Ibidem, p. 25 e 83, nota 1.

(46) Alain Pascal Kaly, op. cit., p. 37, nota 14.

(47) Ousmane Sembène e Nicole Aas-Rouxparis, op. cit., pp. 575-576.

(48) Ousmane Sembène, op. cit., p. 49.

(49) Ibidem, p. 62.

(50) Como exemplo do incômodo causado entre os africanos por certos temas, ver o que disse Sembène sobre a recepção do filme Niaye, em Ousmane Sembène e Nicole Aas-Rouxparis, op. cit., p. 578.

(51) Ousmane Sembène, op. cit., pp. 23, 62 e 65.

(52) Ibidem, p. 105.

(53) Ibidem, p. 113 (grifo no original).

(54) Ousmane Sembène e Nicole Aas-Rouxparis, op. cit., p. 576.

(55) Ousmane Sembène, op. cit., p. 87.

(56) Ousmane Sembène e Nicole Aas-Rouxparis, op. cit., p. 574.

(57) A entrada dos mendigos na vila e as cusparadas em El Hadji estão em Ousmane Sembène, op. cit., pp. 126-134.




quarta-feira, 12 de junho de 2019

Mama Juanita (filme “Un día de vida”)


Endereço curto: fishuk.cc/juanita


Desde o ano passado, quando conheci o cantor Vice Vukov, eu já queria ter legendado esta canção em homenagem ao Dia das Mães, mas não consegui achar a letra. Finalmente, achei por acaso publicada num cancioneiro croata a letra de Draga mama (Mamãe querida), a tradução croata de Mama Juanita (às vezes “Huanita”), música que fez sucesso por causa do filme mexicano Un día de vida (1950, direção de Emilio Fernández, roteiro dele e de Mauricio Magdaleno). Este filme velhíssimo, porém, ficou esquecido por décadas no México, mas fez sucesso na antiga Iugoslávia (sob o nome Jedan dan života), onde seu tema principal recebeu diversas versões em croata e até esloveno, sempre com toada mexicana. No próprio México, a mesma melodia com outra letra é mais conhecida pela canção Las mañanitas, uma tradição dos aniversários.

A história do filme e da música é muito engraçada. Trata-se de dois homens durante a Revolução Mexicana, o general Felipe Gómez e o coronel zapatista Lucio Reyes, condenado à pena de morte em 1919 por se rebelar em armas contra o assassinato do líder revolucionário Emiliano Zapata. Os dois oficiais eram dois amigos de infância, mas depois se tornaram adversários, tendo Gómez sido encarregado de fuzilar Reyes. A mãe do que está preso, única parente com quem tinha contato e que já tinha perdido outros dois filhos durante a revolução, não sabe dessa mudança na relação: “Mamá Juanita” foi interpretada por Rosaura Revueltas (1910-1996), atriz mexicana de teatro e de cinema, e também dançarina, escritora e professora. Como último pedido de Reyes, deixam que ele vá visitar a mãe, acompanhado da jornalista cubana Belén Martí, que tinha vindo acompanhar as últimas mudanças no país. A graça do filme está em que o filho canta várias canções populares pra Juanita (inclusive Las mañanitas, que ele lhe cantava em todos os seus aniversários), que não pode conter as lágrimas, assim como Belén, que se apaixona por ele. Reyes poderia escapar da morte reconhecendo o governo, mas convicto de sua fidelidade a Zapata, deve voltar à prisão, e na manhã seguinte é fuzilado, tendo seu corpo sido retirado por Juanita.

Emilio Fernández, que era conhecido como “El Indio”, dedicou Un día de vida ao escritor cubano José Martí, herói nacional, e o homenageou dando esse sobrenome a Belén e recordando várias frases suas e partes de sua vida na história. Era o enredo perfeito pras necessidades do marechal Josip Broz Tito de legitimar a ruptura de sua Iugoslávia com a União Soviética de Iosif Stalin, mas a importação acabou também gerando gosto duradouro pelo cinema e música mexicanos no país balcânico. Isso só foi possível porque, com a cisão entre os dois países, Belgrado teve de tirar repentinamente de cena a maior parte dos filmes e discos em russo. Exibido em todas as repúblicas federais desde 1952, Un día de vida é bastante emocionante e dramático, levando umas duas gerações de iugoslavos ao choro nos cinemas. Elas possivelmente se identificaram com os personagens e enredo, por terem recentemente perdido parentes e amigos na 2.ª Guerra Mundial, não raro fuzilados pelos nazifascistas.

A partir dos anos 1950, quando foi decaindo a influência soviética, começou a primeira onda musical popular do pós-guerra, que consistiu justamente na música mexicana. Mama Juanita (o “j” espanhol soa idêntico ao “h” em servo-croata), traduzida nas línguas da Iugoslávia, influenciou todo um gênero que se desenvolveu no país nas décadas de 1950 e 1960. Artistas locais inclusive gravavam canções no célebre estilo mexicano mariachi, entre eles Slavko Perović e Nevenka Arsova, e Mama Juanita foi cantada por gente tão diferente quanto Ivo Robić, Nikola Karović, Mišo Kovač e a banda Pro Arte. E pra agravar os laços, o negativo original se perdeu durante o incêndio da Cineteca Nacional no México, em 1982, e a última cópia conhecida desse filme estaria guardada na Cinemateca Iugoslava, ou Arquivos do Filme Iugoslavo (Jugoslovenska kinoteka). A instituição até hoje funciona em Belgrado, hoje capital da Sérvia, mas embora possa ser de alto interesse dos mexicanos, é quase impossível conseguir uma cópia individual.

É sintomático que nas Wikipédias não haja nenhum artigo sobre o filme ou a música, nem em inglês e espanhol, nem mesmo numa das línguas da antiga Iugoslávia. Na Wikipédia, achei o artigo “Serbian pop” em inglês, os artigos sobre os cantores citados em servo-croata e os artigos sobre o mariachi nas duas línguas. Em blogs isolados que tive de caçar pelo Google há postagens em inglês e espanhol sobre Un día de vida e Mama Juanita, como a do “In Dreams”, com várias fotos e cartazes mexicanos e iugoslavos da época, e do “Hemeroteca” (em espanhol), que por sua vez copiou de outra fonte. Nas páginas 154 e 155 de Modern Mexican Culture: Critical Foundations, editado por Stuart A. Day e do qual achei alguns trechos no Google Livros, há também algumas informações sobre o filme.

A primeira montagem abaixo, com áudio de Vice Vukov, é um lindo trabalho com pinturas francesas e europeias, e eu apenas baixei pra pôr as legendas traduzidas. A segunda montagem, que eu mesmo fiz, tem o primeiro áudio da dupla croata Kraljevi ulice (“Os reis da rua”), gravado em 1994, e o segundo áudio do Trio Tividi, que gravou em 1961, bem quando vigorava a moda, e por isso a produção é menos dinâmica. Todos esses cantores são croatas, então posso dizer que traduzi a letra direto do croata, mas o texto-base que achei tem várias diferenças com todas as versões cantadas que encontrei. Segundo pude apurar, a canção mexicana tem autoria de Antonio Díaz Conde, enquanto o tradutor pro servo-croata foi Mario Kinel. Seguem abaixo as duas legendagens, as três letras em croata e suas traduções em português. Vejam o segundo vídeo duas vezes, lendo uma legenda de cada vez:




1. Nek’ putem sad tvoga života
Mnogo sreće za tebe bude,
I srca ti sada naša
Mnoge želje u susret trude.

Pripjev (2x):
Nek’ oči tvoje brižne
Vječno krasi topli sjaj,
Nek’ je tebi, o draga mama,
Sad posvećen pozdrav taj.

2. Zaboravi majčice brige,
Tužne misli dušu što bole,
I ponosno digni čelo,
Jer te srca mnoga još vole.

(Pripjev 2x)


1. Nek’ putem kojim si pošla
Mnogo sreće za tebe niče,
I srce ti sada naše
Svoje želje u susret kliče.

Pripjev:
Nek’ oči tvoje brižne
Vječno krasi topli sjaj,
Nek’ je tebi mama Huanita
Sad posvećen pozdrav taj.

2. Zaboravi majčice brige,
Tužne misli dušu što more,
I ponosno digni čelo,
Jer te mnoga srca još vole.

(Pripjev)

3. Još jednom čestitamo sada
Tebi rođendan o mama,
I želimo tebi od srca
Da još dugo budeš s nama.

(Pripjev)


1. Nek’ putem na koji si pošla
Mnogo sreće za tebe niče,
I srce ti sada naše
Svoje želje u susret kliče.

Pripjev:
Nek’ oči tvoje brižne
Vječno krasi topli sjaj,
Nek’ je tebi mama Huanita
Sad posvećen pozdrav taj.

2. Zaboravi majčice brige,
Tužne misli dušu što bole,
I ponosno digni čelo,
Jer te srca mnoga još vole.

(Pripjev)

3. Još jednom čestitamo sada
Tebi rođendan o mama,
I želimo tebi od srca
Da još dugo budeš s nama.

(Pripjev)

1. Que agora no curso de sua vida
Haja para você muita felicidade,
Que nossos corações lancem agora
Muitos desejos direcionados a você.

Refrão (2x):
Que um forte brilho eterno
Enfeite seus olhos cuidadosos,
Que seja agora, mamãe querida,
Dedicada a você esta saudação.

2. Mãezinha, esqueça as aflições,
As ideias ruins que ferem a alma,
E erga a cabeça orgulhosamente,
Pois muitos corações ainda te amam.

(Refrão 2x)


1. Que no caminho que você andou
Muita felicidade venha para você,
Que nosso coração exclame agora
Seus desejos direcionados a você.

Refrão:
Que um forte brilho eterno
Enfeite seus olhos cuidadosos,
Que seja agora, mamãe Juanita,
Dedicada a você essa saudação.

2. Mãezinha, esqueça as aflições
As ideias ruins que afligem a alma,
E erga a cabeça orgulhosamente
Pois muitos corações ainda te amam.

(Refrão)

3. Agora felicitamos mais uma vez
Você, mamãe, pelo aniversário,
E lhe desejamos de todo coração
Que viva muito tempo ainda conosco.

(Refrão)


1. Que no rumo que você escolheu
Muita felicidade venha para você,
Que nosso coração exclame agora
Seus desejos direcionados a você.

Refrão:
Que um forte brilho eterno
Enfeite seus olhos cuidadosos,
Que seja agora, mamãe Juanita,
Dedicada a você essa saudação.

2. Mãezinha, esqueça as aflições
As ideias ruins que ferem a alma,
E erga a cabeça orgulhosamente
Pois muitos corações ainda te amam.

(Refrão)

3. Agora felicitamos mais uma vez
Você, mamãe, pelo aniversário,
E lhe desejamos de todo coração
Que viva muito tempo ainda conosco.

(Refrão)


Adendo (18/12/2024): Na mesma época em que fiz a pesquisa pra esta publicação e redigi o texto final, também achei uma versão em esloveno da canção Mama Juanita, mas já não sei mais qual foi a fonte (portanto, nem o tradutor também). Porém, guardei o texto até hoje, não traduzi, e só agora tive tempo de conferir com um áudio original que também achei ao acaso, fazer uma tradução básica e finalmente inserir aqui este presente de Natal!

Os artistas que cantam, em claro estilo esloveno influenciado pela Áustria, seguem no vídeo acima, e abaixo segue a letra que não sei se está na língua padrão, mas que joguei primeiro no Google Tradutor e à qual dei depois uma forma final aceitável em português, embora não saiba se a tradução está exata. O sentido não muda muito em relação às principais versões em servo-croata, e se alguém desejar, pode comentar ou me contatar pra fazer qualquer sugestão ou correção:

1. Nek’ putem na kojem si pošla
Mnogo sreče sa tebe biče,
I srce ti sada naše
Svoje želje u sret kliče.

Refren:
Nek’ oči tvoje briže
Večno krasi topli sjaj,
Nek’ je tebi mama Juanita
Sad posveča pozdrav taj.

2. Zaboravi ču majčice brige,
Tužne misli dušo što bole,
I ponosno digni sa čelom,
Jer te srca mnoga još vole.

(Refren)

3. Još jednom čestitamo sada
Tebi rodžendan dan o mama,
I želimo tebi od srca
Da još dugo budeš sa nama.

(Refren)

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1. Que pela estrada que você percorreu
Haja muita sorte pra você,
E agora nosso coração deseja
Que seus desejos se realizem.

Refrão:
Que seus olhos eternamente
Conservem o lindo brilho ardente,
Que pra você, mamãe Juanita
Seja dedicada agora esta saudação.

2. Mãezinha, esqueça as preocupações,
Ideias tristes que machucam a alma,
E levante sua cabeça com orgulho,
Pois muitos corações ainda te amam.

(Refrão)

3. Mais uma vez desejamos agora
Feliz aniversário pra você, mamãe,
E desejamos do fundo do coração
Que ainda viva muito tempo conosco.

(Refrão)



segunda-feira, 10 de junho de 2019

“God Save the Queen” (hino britânico)


Link curto pra esta publicação: fishuk.cc/hino-ingles


Por alguns meses hesitei em traduzir e legendar este hino, porque muitos outros já tinham feito isso e porque, na época da Copa do Mundo, fiquei com preguiça de verter a letra do inglês. Porém, achei este vídeo e esta execução tão bonitos que decidi arranjar uma tradução e, junto com a letra já incluída no original em inglês, legendar em português. Esta canção se chama God Save the Queen (Deus salve a Rainha) e há muitos séculos é usada como hino nacional de facto (não oficial) do Reino Unido e, dentro dele, também da Inglaterra. Quando o monarca é homem, usa-se King no lugar de Queen, e os pronomes pessoais femininos dão lugar aos equivalentes masculinos. Remetendo a uma ou mais melodias que datam mais ou menos do século 17, nunca alguém conseguiu definir ao certo quem escreveu algumas das inúmeras versões da letra nem quem compôs a melodia, a qual, porém, alguns relacionam a uma composição de 1619 do músico, compositor e organista inglês John Bull (1562-1628).

Como grande parte dos elementos de cultura e Estado da monarquia britânica, o hino nacional foi se enraizando por meio do costume e da consagração, e não leis ou decretos oficiais, e jamais recebeu sanção oficial. É possível que tenha se originado de um hino eclesiástico, já que sua melodia ainda consta em alguns hinários protestantes. Houve muitas versões da letra, muitas das quais paródicas, humorísticas ou até antimonárquicas, mas o texto geralmente usado, inclusive neste vídeo, tem três estrofes e foi publicado pela primeira vez em 1745 no Gentleman’s Magazine. Em anos vindouros, God Save the King/Queen inspirou muitos outros músicos europeus, e vários hinos nacionais adotaram até a mesma melodia, como o da Alemanha imperial (Heil dir im Siegerkranz), a Molitva russkikh (na Rússia de 1816 a 1833), o da Suíça até 1961 (Rufst Du, mein Vaterland), o da Suécia de 1805 a 1880 (Bevare Gud vår kung) e o atual do Principado de Liechtenstein (Oben am jungen Rhein).

Dado que o Império Britânico foi uma unidade política de dimensões globais, muitos territórios ingleses ao redor do globo ainda usam God Save the Queen como seu hino nacional, e na Commonwealth vários países ainda o usam como hino nacional e/ou “hino real”, executado junto com o nacional, já que o monarca britânico é o chefe de Estado (papel mais simbólico). Quando cada unidade do Reino Unido tem representação em eventos esportivos, em geral são tocados hinos locais junto ou sem o hino britânico: a Escócia, o País de Gales e a Irlanda do Norte têm canções próprias. Já a Inglaterra costuma usar Jerusalem em campeonatos de críquete e rugby, bem como nos Jogos da Commonwealth. Desde 1953, muitas vezes (como no vídeo) o hino é precedido por uma fanfarra composta por Gordon Percival Jacob pra coroação de Elizabeth 2.ª. O “hino oficial” consiste apenas na primeira estrofe, mas durante eventos oficiais se tocam a primeira e a última, a segunda em geral sendo omitida.

A qualidade do vídeo sem legendas é bem ruim, pois a postagem original é de 2007, e eu tentei a melhorar um pouco. Segundo o dono do canal, a execução é da Orquestra Sinfônica e Coral da BBC, dirigida por Sir Andrew Davis, junto da Fanfarra de Trompetes da Marinha Real de Sua Majestade, no evento Prom at the Palace em 1.º de junho de 2002, Palácio de Buckingham, Londres. Foi produzido um DVD do evento, que serviu de fonte pra postagem. Eu mesmo traduzi diretamente do inglês, mas também cotejando com as traduções francesa, espanhola, italiana e russa, e às vezes alemã, da Wikipédia, de onde também copiei o texto original. Embora o hino se refira a Deus com o pronome arcaico thou (tu), escolhi traduzir como “você” e suas formas verbais. Seguem abaixo as legendas, a letra em inglês e a tradução em português (ambas com as mudanças masculinas entre colchetes):



Adendo (2023): Desde 8 de setembro de 2022, com a “morte da imortal” rainha Elizabeth 2.ª e a subida de seu filho (agora chamado) Charles 3.º, naturalmente podemos ver usada ainda por um bom tempo (não sabemos até quando...) a variante God Save the King, como foi o caso em sua coroação, no dia 6 de maio de 2023. Por isso, resolvi adicionar aqui também, a partir do vídeo completo da cerimônia (YouTube oficial da Família Real), o momento em que o rei é coroado, após o que o Arcebispo da Cantuária diz a famosa frase “God save the king!” e a orquestra toca uma bela melodia, e a saída final de Charles 3.º e acompanhantes ao som do hino nacional:




God save our gracious Queen [King]!
Long live our noble Queen [King]!
God save the Queen [King]!
Send her [him] victorious,
Happy and glorious,
Long to reign over us:
God save the Queen [King]!

O Lord our God arise,
Scatter her [his] enemies,
And make them fall:
Confound their politics,
Frustrate their knavish tricks,
On Thee our hopes we fix:
God save us all.

Thy choicest gifts in store,
On her [him] be pleased to pour;
Long may she [he] reign:
May she [he] defend our laws,
And ever give us cause,
To sing with heart and voice,
God save the Queen [King]!

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Deus salve nossa graciosa Rainha!
Viva muito nossa nobre Rainha!
Deus salve a Rainha!
Mande-a vitoriosa,
Feliz e gloriosa,
Para reinar longamente sobre nós:
Deus salve a Rainha!

[Deus salve nosso gracioso Rei!
Viva muito nosso nobre Rei!
Deus salve o Rei!
Mande-o vitorioso,
Feliz e glorioso,
Para reinar longamente sobre nós:
Deus salve o Rei!]

Surja, ó, Senhor nosso Deus,
Disperse os inimigos dela [dele]
E faça-os cair:
Atrapalhe suas intrigas,
Frustre suas armadilhas sujas,
Em você pomos nossa esperança:
Deus salve todos nós.

Reserve as mais seletas bênçãos
Para verter com gosto sobre ela [ele];
Possa ela [ele] reinar longamente:
Possa ela [ele] defender nossas leis
E nos dar sempre motivos
Para cantar com coração e voz,
Deus salve a Rainha [o Rei]!



sábado, 8 de junho de 2019

Meu relato final de iniciação científica


Link curto para esta postagem: fishuk.cc/relatorio-ic


Hoje o documento que quero tornar público é meu relatório final de iniciação científica, a qual conduzi pelo programa PIBIC da Unicamp com bolsa concedida pela CNPq entre agosto de 2008 e julho de 2009. Seu título completo é O impacto da desestalinização sobre o Partido Comunista do Brasil e os limites das mudanças (1956-1960), (1) assinado como Érick Fiszuk de Oliveira e orientado pelo Prof. Dr. Claudio H. M. Batalha (Departamento de História, IFCH/Unicamp), que não por acaso orientou meu TCC e meu mestrado e ainda está orientando meu doutorado. Quero publicar em breve outros trabalhos de faculdade que tenham texto completo e argumentação sólida, mas este é particularmente importante por ser minha primeira experiência de pesquisa séria e sistemática, passível de avaliação por terceiros e captação de financiamento. Como se vê, embora eu já escrevesse bem, a linguagem está rebuscada e ainda emito certos julgamentos de valor sobre os comunistas, como se os “pró-Stalin” fossem o lado do “mal” e os “anti-Stalin”, o do bem. Mas a importância maior foi de eu poder ter começado minhas primeiras leituras sobre a história do PCB e da URSS, juntando saberes que até hoje só têm aumentado, e adquirido a base temática pra minha monografia de fim de curso, defendida só em março de 2012. As únicas mudanças redacionais que fiz concernem aos algarismos romanos, à transliteração do russo e à numeração das páginas, que estava abreviada, por exemplo, “pp. 45-9” ao invés de “pp. 45-49”. O recurso à citação autor-data, mesmo em nota de rodapé, que procurei evitar, mas não pude por causa do tamanho exigido, tive de manter pra não alongar demais o trabalho.

Introdução: A morte do dirigente soviético Iosif Stalin, em 5 de março de 1953, iniciou um processo de lenta abertura política, diplomática e cultural na URSS, depois continuada por Nikita Khruschov. O novo líder ficaria conhecido por ações ousadas que se tornariam ápices do chamado processo de “desestalinização”, o primeiro e mais marcante deles sendo a leitura do “relatório secreto”, em sessão fechada do 20.º Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em fevereiro de 1956, quando se denunciaram os abusos do governo anterior. Levado ao conhecimento das direções dos Partidos Comunistas (PCs) no mundo inteiro, o documento gerou uma crise política e de identidade em cada um deles: como explicar os assassinatos, os processos-farsa e outros excessos ordenados por quem era considerado o “defensor dos operários” e “campeão da paz mundial”? O choque foi grande porque a conduta recente desses partidos, por ocasião da vitória soviética na 2.ª Guerra Mundial, havia-se formado no “culto à personalidade” de Stalin, ou seja, na assimilação incondicional do louvor à sua pessoa e do arsenal teórico elaborado pelo “Mestre”.

No Brasil não foi diferente, visto ser o Partido Comunista do Brasil (PCB) um dos prosélitos da linha moscovita. Embora as divergências políticas acerca de questões organizativas e programáticas já latejassem desde o 4.º Congresso do partido (7 a 11 de novembro de 1954), a discussão sobre o “relatório secreto”, o passado da organização e a realidade brasileira, iniciada somente em outubro, conheceu momentos de tensão e profunda indignação com os erros que vinham à tona. Controlada a situação pelos defensores da manutenção do status quo e punidos os críticos mais acerbos, as mudanças no PCUS e o afrouxamento da repressão política com Juscelino Kubitschek, porém, impulsionaram mudanças no programa partidário vigente, cujos ápices foram a “Declaração de Março” de 1958 e o 5.º Congresso de agosto de 1960. Mesmo assim, tanto aqui quanto na URSS, os “retoques” serão superficiais e dois pontos marcarão a permanência do espírito partidário anterior: o “marxismo-leninismo” codificado por Stalin, traço da inalterada submissão de quase todos os PCs ao soviético, e a organização burocrática e antidemocrática dessas entidades.

Com efeito, a pesquisa aqui relatada buscou avaliar as mudanças ocorridas no PCB durante o processo de “desestalinização” do Movimento Comunista Internacional (MCI), sobretudo os limites para uma verdadeira abertura na política intrapartidária e uma análise mais realista da conjuntura brasileira. Procurou-se pesar os fatores nacionais e internacionais que condicionaram as transformações teóricas, práticas e organizacionais dos comunistas brasileiros e verificar se o partido apenas modificou em parte sua leitura conjuntural ou se a estrutura partidária e ideológica então vigente foi atingida com a crise iniciada em 1956. Para cumprir tal meta, foi necessário pesquisar livros e periódicos que abordavam parcial ou quase integralmente o assunto, revistas e jornais comunistas do período, que refletiam as metamorfoses em processo, e material artístico que de algum modo lembrava o clima rígido então vigente no MCI e os esforços para transformá-lo. Grande quantidade de material primário ou bibliográfico foi copiada ou consultada no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL/IFCH/Unicamp), em Campinas, e no Centro de Documentação e Memória da Unesp (CEDEM), na cidade de São Paulo. Contudo, devido à enormidade do conjunto e ao tempo disponível diante do necessário cumprimento das tarefas discentes no curso de História, delimitou-se a consulta aos periódicos Voz Operária (semanário oficial do partido, editado até fevereiro de 1959 – doravante VO), Novos Rumos (sucessor de Voz Operária – doravante NR) e Novos Tempos (revista marxista independente publicada entre setembro de 1957 e maio de 1958).

O principal motivo da pesquisa foi que, embora seja significativa a bibliografia a tratar do PCB ou de algum de seus aspectos, são limitados os trabalhos específicos sobre a época da “desestalinização”, seus detalhes, limites e consequências. Uma iniciação científica, mesmo com limitações, pode ser um bom começo para reunir material sobre o assunto e introduzir o bolsista ao estudo do “Partidão” e ao recorte de seu interesse, visando a realizações acadêmicas mais amplas. Enquanto isso, é mister reunir as obras existentes, analisá-las e confrontá-las com o máximo possível de material primário. O livro e o artigo de Raimundo Santos basearam boa parte da análise, mas limitam-se a 1956 e 1957. Este trabalho, ainda que resumidamente, pretendeu abranger também os corolários da discussão, como a “Declaração de Março” e o 5.º Congresso. A dissertação de Luiz Flávio de Carvalho Costa, bastante informativa, não faz o recorte temporal ou temático mais adequado para tratar-se propriamente da “desestalinização”. E um dos livros de José Antonio Segatto, por fim, malgrado a ótima pesquisa documental, aborda um período mais amplo do que o pretendido aqui e não entra em detalhes no processo. (2) Sabendo ainda que outras obras tratam o período de forma parcial, começa-se aqui a juntar vários “tijolos” para formar-se um retrato mais ou menos completo da crise e das mudanças no PCB após as revelações dos crimes de Stalin.


As linhas pecebistas anteriores a 1956 e suas inflexões: Consolidado o stalinismo no PCB, o organismo precisava ligar-se mais à realidade, o que se tentou pelo 4.º Congresso, de conclusões ditas mais “científicas” e definitivas. Foram aí reafirmadas as velhas teses do Brasil como sociedade “semifeudal e semicolonial”, crescentemente “colonizada” e “militarizada” pelos EUA, que “submetiam” os governos “de traição nacional”, “de latifundiários e grandes capitalistas”. Por isso, na atual etapa da revolução (“democrático-popular, agrária, antifeudal e anti-imperialista”), pregava-se a derrubada de Getúlio Vargas e do latifúndio, fator de atraso e aliado aos EUA, mas sem tocar nas posses dos camponeses ricos, e a partilha das terras como propriedade privada. Assume-se como aliada a “burguesia nacional”, distinta da burguesia “entreguista”, e exige-se um regime “democrático-popular” com hegemonia do proletariado operário-camponês e do PCB. A postulada “Frente Democrática de Libertação Nacional” (FDLN), mesmo abarcando vastos setores da sociedade supostamente contraditos com o “imperialismo norte-americano”, no qual a luta deveria centrar fogo, punha em bloco todo o governo Vargas no lado “inimigo”. Segundo Santos, o Programa aprovado analisou superficialmente o capitalismo e seu desenvolvimento, o campo e a criticada “opressão externa” e supervalorizou a força proletária. (3)

Chilcote lembra que se passou da linha revolucionária do “Manifesto de Agosto” de 1950, vindo do rompimento com os não comunistas, da repressão interna e da polarização externa, a um programa reformista de curto prazo, em um momento de apoio soviético a “movimentos reformadores moderados” nas sociedades “dependentes”. Segundo Costa, ao assumir as “tarefas políticas” de uma “burguesia acéfala” para, consoante à tese da etapa democrático-burguesa da revolução, melhor entrar na política burguesa, o PCB praticamente não propôs avanços políticos para a classe operária. (4) Morto Vargas durante a discussão do programa, o projeto original, lançado em dezembro de 1953, que chamava a Constituição de “opressora” e subestimava as eleições, pouco mudou, como na substituição de “governo Vargas” por “atual governo”, revelando-se a falta de cuidado na análise da conjuntura ao atribuir a João Café Filho alguns problemas de seu antecessor. Falsamente também se atribuíram as manifestações varguistas ao PCB, quando na verdade este foi duramente criticado por sua pregação da derrubada do presidente suicidado. (5) Aprovado com pouca discussão, o Programa foi criticado apenas por Fernando de Lacerda, que, embora cauteloso, foi execrado e denunciado como “liquidacionista”, sendo exigida sua autocrítica e rejeitadas suas propostas corretivas. Logo a conjuntura começaria a pôr em xeque a absolutização da oposição entre “progressistas” e “pró-imperialistas” e revelaria a pouca flexibilidade do Programa devido ao seu “dogmatismo” centrado na obediência incondicional à direção partidária. (6)

O Pleno do Comitê Central (CC) de agosto de 1955, ao contrário de 1950, valorizou as eleições presidenciais como meio de luta contra o “golpismo” e pela frente única herdada das movimentações de agosto de 1954. (7) Para o Pleno do CC de janeiro de 1956, empossados JK e João Goulart, que fariam um governo com “atributos novos”, haveria a derrota dos “entreguistas”, que tentaram impedir sua posse em novembro, e uma abertura democrática em prol dos trabalhadores. Era preciso unir os nacionalistas e democratas e corrigir os erros “aventureiristas”, imobilizadores e de pouca atenção aos CRs para evitar novos “golpes” da “reação” e ampliar as ações de massas contra a carestia de vida e a “colonização ianque”. Com um programa de paz, soberania, liberdades e satisfação material, fazem oposição ao “governo de novembro” e lutam pela unidade operário-camponesa, mas sem a necessidade de derrubar o atual regime, ou mesmo o governo. Contudo, ainda pairava a visão do regime como de “latifundiários e grandes capitalistas” e a oposição aos chamados “nacional-reformistas”, ou seja, é uma análise revisada pela ação da conjuntura, e não da doutrina “marxista-leninista-stalinista”, que ainda impedia os progressos daquela análise. (8)


O “relatório secreto”, o início e os obstáculos da “desestalinização” soviética: O 20.º Congresso do PCUS (14 a 26 de fevereiro de 1956) refletiu a necessidade de abertura política, econômica, burocrática e cultural nos países socialistas europeus e na própria URSS, como consequência das mudanças na situação internacional. Centrou-se na “coexistência pacífica” entre os blocos, considerada como indispensável devido à corrida armamentista e a periculosidade de uma nova guerra mundial para a humanidade, e a pluralidade de caminhos para o socialismo, incluindo a via parlamentar, o que na teoria possibilitaria o policentrismo do MCI. (9) No dia 25, Khruschov leu o famoso “relatório secreto” de denúncias aos crimes de Stalin, ato que representou seu próprio sucesso pessoal e, em tese, a revitalização do partido sob a “direção coletiva” e a valorização da chamada “legalidade socialista” contra o “terror”. Embora o evento tentasse golpear de morte o stalinismo, seus fundamentos já ruíam antes, com as falhas nas previsões econômicas para o mundo, o fim do monolitismo no bloco socialista (Tito e Mao) e problemas pendentes, como o das nacionalidades. Um grupo antistalinista de cúpula também se consolidara há tempos, vindo agora à tona um grave conflito entre os chefes soviéticos; a literatura já vivera um primeiro “degelo” em 1954 com a publicação de obras críticas de Ehrenburg, Solzhenitsin e outros; e a Conferência de Genebra, em 1955, indicara a vontade de um relaxamento nas relações exteriores. (10)

Todavia, Khruschov fez críticas estreitas a Stalin por ter-se envolvido com ele, atenuando os aspectos mais nocivos e floreando as obras de um antecessor que teria mais acertado do que errado, as denúncias limitaram-se aos quadros mais intimamente ligados ao tirano e omitiram-se várias épocas, processos e o “terror de massa”. Na leitura do “relatório”, aos moldes stalinistas, tiraram-se resoluções por voto unânime e proibiu-se contestar e debater pontos dados pelo primeiro-secretário. Pesaram ainda, na “sessão secreta” (cujo conteúdo não deveria ser divulgado fora das fronteiras do socialismo), a distribuição do texto apenas para os congressistas (ele só foi impresso na URSS durante o governo de Mikhail Gorbachov), os inconvenientes tecnológicos da exposição oral e um anedotário que perturbava a compreensão. Mas o documento, malgrado sua superficialidade nos nomes, fatos e causas, foi mal recebido nas “democracias populares”; chocou bastante os PCs ocidentais que pouco sabiam o que se passava na URSS e, como os PCs governantes, reagiram conforme sua estratégia política e envolvimento com o stalinismo. De fato, a resistência era significativa, pois os mais próximos de Stalin temiam as denúncias, e porque, para Leandro Konder, mesmo sem valor científico e profundidade historiográfica, o ato foi de inegável coragem. (11)


O impacto das denúncias sobre o PCB e a discussão em 1956: Os meses posteriores ao 20.º Congresso serão de silêncio da direção pecebista sobre as denúncias. O “relatório secreto” teria vazado da Polônia à Suíça, daí aos EUA e destes para o resto do mundo, publicado no Brasil pelo Estado de S. Paulo e o Diário de Notícias. Embora se publicassem na imprensa comunista, entre julho e setembro, notas sobre o “culto à personalidade” vindas de outros PCs e se abordassem as questões “inovadoras” postas por Khruschov, as denúncias eram tratadas como “intrigas do imperialismo” e “artimanhas da imprensa burguesa”. Embora no segundo semestre o PCB ainda não iniciasse a discussão, ela continuava atual, dados os abalos, aberturas e substituições de líderes em outros PCs e o toque nas velhas concepções que os mesmos causavam. Mas o silêncio gerou indignação, sobretudo após as crises húngara e polonesa e a publicação do informe de Palmiro Togliatti ao 8.º Congresso do PC italiano, “A luta pelo caminho italiano para o socialismo”, e de críticas do mesmo dirigente à URSS pelo burocratismo, a falta de democracia e seu monocentrismo no MCI. O material do PCI teria inspirado alguns elementos do debate brasileiro no que tange ao “culto à personalidade” e à “via nacional para o socialismo”. (12)

Em 25 de agosto, já reconhecendo a veracidade do “relatório”, o CC reuniu-se para discutir o problema, mas sem o secretário-geral, Luiz Carlos Prestes: ouviu-se a delegação que foi ao 20.º Congresso, liderada por Arruda, que só retornara em julho, supostamente devido a uma viagem à China, com posterior volta à URSS, para comprovar a autenticidade do documento. Houve críticas virulentas à linha do partido e aos dirigentes, em especial da parte de Agildo Barata, e a exigência de autocrítica, mas proibiu-se a abertura dos debates. (13) Formaram-se então os primeiros grupos não oficiais de oposição, como o “Sinédrio”, que publicaria vários artigos e teria Barata à frente. Composto sobretudo por intelectuais e jornalistas do partido, atuava em “dupla clandestinidade” (da polícia e da direção do PCB) e teria, segundo Peralva, combinado a abertura do debate à revelia da direção. (14) Fez-se isto com a publicação simultânea, na VO de 6 de outubro, de uma carta de Maurício Pinto Ferreira e do artigo “Não se poderia adiar uma discussão que já se iniciou em todas as cabeças”, de João Batista de Lima e Silva. Ambos criticam a demora na abertura do debate, o qual deveria ser iniciado o quanto antes “em prol do operariado” e antes que o “inimigo” se utilizasse da ocultação de um erro já conhecido por todos para prejudicar os comunistas.

Entre 9 e 14 de outubro, também os diários comunistas Imprensa Popular e Notícias de Hoje publicaram cartas, com oposição entre “abridistas” (partidários da abertura oficial dos debates) e “fechadistas” (contrários à discussão ou adeptos de sua consecução, mas controlada). Estes grupos grosso modo se transformarão respectivamente nos “renovadores” (defensores de mudanças organizacionais e ideológicas profundas no PCB) e nos “conservadores” (aliados ao status quo e à ausência de graves transformações). O debate parou brevemente com a publicação do Projeto de Resolução do CC (na VO do dia 20 e na Imprensa Popular e nas Notícias de Hoje do dia 19), mostrando a pretensão da direção de dirigir a discussão. (15) O Projeto é superficial na crítica e autocrítica da demora na discussão e da volta da delegação brasileira que fora ao 20.º Congresso, e liga o “culto” daqui e da URSS (que deve continuar a ser defendida) a fatores históricos de cada país, e não à linha política. É cauteloso na análise do Brasil, limitando-se à parte organizativa, mas aludindo às questões nacional, democrática e das condições de vida dos trabalhadores, e associa a democratização partidária e o direito à crítica e autocrítica às necessidades populares. Repete, sobre o 20.º Congresso, os documentos do PCUS, como ao falar do momento favorável ao socialismo diante das “contradições interimperialistas” aguçadas. E por fim, privilegiando a luta contra o “dogmatismo”, abre oficialmente os debates a fim de “reforçar o partido”. (16)

A seguir, vários artigos opinarão sobre o programa e o desempenho partidário. Cunha opõe-se à tese da “derrubada do atual governo”, pede melhores análises do desenvolvimento do capitalismo brasileiro e vê no “capitalismo de Estado” um embrião do socialismo. Quintino de Carvalho critica a superficialidade do Projeto de Resolução e os decalques do que vinha da URSS, sugerindo análise mais profunda da era Stalin por seus crimes e centralização excessiva. Peralva aplaude as brechas do 20.º Congresso e do Projeto de Resolução para maior expressão das “minorias”, desde que continuem obedientes à “maioria”, mas de modo “voluntário” e “persuasivo”. Rezende pede a manifestação dos dirigentes e acredita que o partido deve ligar-se a e aprender mais com a realidade, não permitir o negativismo e a desilusão em suas fileiras e não usar o “culto”, mera consequência da concepção apriorística do PC como “vanguarda”, como explicação para tudo. E aparece mesmo uma resposta “conservadora” a Quintino, de Agostinho de Carvalho, que estranha a separação entre “ditadura do proletariado” e “ditadura do partido”, crê inalterada a essência do regime soviético sob Stalin e defende a compensação de seus erros por seus acertos. (17)

Resoluções de vários CRs (Comitês Regionais) opuseram os que pediam revisão do desempenho partidário e os que queriam um debate mais vigiado. Os CRs do Ceará e de Piratininga (São Paulo) criticaram o “mandonismo”, a falta de democracia no 4.º Congresso, a subestimação das massas e a superficialidade do Projeto de Resolução, que omitia a “culpa” de Prestes. O primeiro pede melhor trabalho de massas e a discussão sobre as organizações incômodas ao trabalho partidário, a estrutura regional do PC, o burocratismo, os direitos às minorias e outras coisas. Já o segundo tomou medidas democratizantes, como a ampliação do número de dirigentes nas reuniões, a devolução ao CR de funções sugadas pelo Secretariado, reparos a “injustiças” e restrição da cooptação de quadros. (18) Nessa época, a Editorial Vitória, ligada ao partido, publicou Que é o stalinismo?, uma seleta de documentos de vários PCs tentando explicar o fenômeno, enfatizando o “culto” a Stalin. A variedade de países releva a tese das “vias plurais ao socialismo”, mas a ausência de textos brasileiros revela o despreparo teórico do PCB na lida do assunto. No básico, além das difíceis condições da URSS nos anos 1920, explica-se o “culto” pela vaidade de Stalin, o que se choca com a teoria “marxista-leninista” de que o indivíduo não é onipotente, usada, por sua vez, para justificar a imutabilidade da natureza do regime durante o “terror”. (19)

Porém, na VO de 24 de novembro, publicou-se carta de Prestes ao debate, apelidada depois de “carta-rolha”. Ela colocou a figura do dirigente como referência aos desorientados e escondeu a proibição de criticar o partido e o CC por trás do pedido de respeito ao “internacionalismo proletário” (ou melhor, defesa acrítica da URSS), ao “marxismo-leninismo” e à unidade do PCB. É um reflexo dos limites impostos à “desestalinização” já na leitura do “relatório secreto”, que receou em contestar o PCUS ou aqueles que agiam em seu nome e lhe eram fiéis. (20) O documento elogia o debate e o combate ao centralismo, mas, em nome da “justa relação” entre liberdade e disciplina, exige seu direcionamento pelo CC para evitar críticas aos soviéticos e a penetração de “ideologias estranhas”, assim reforçando o partido em torno daquele organismo contra a ofensiva da “reação”. (21) Assim, começou a autodefesa dos mais ligados ao passado, que esperavam a manifestação da militância a seu favor, não sem antes chamar os críticos de “revisionistas” e “fracionistas”, dando um caráter de “luta de classes” ao debate. O chamado “núcleo dirigente”, que, segundo Barata, ascendera por volta de 1943 e era conhecido pela arrogância e desejos de poder de seus “membros”, foi o principal alvo das críticas e procurou defender-se pela relativização dos crimes de Stalin. (22)

Silva, por exemplo, pede princípios e coesão em torno do CC no combate ao “culto”, e não exclui a hipótese da luta armada, por ser o Brasil ainda “semicolonial” e o “fascismo” ter quase vencido em países como a Hungria. Ghilardini ataca o CR de Piratininga pelas decisões “anárquicas” e o pedido de mudanças nos Estatutos fora do período congressual, quando os erros, na verdade, proviriam não desse documento, mas de sua má aplicação; no mesmo dia, a esperada Resolução do CC apenas respalda a carta de Prestes como instrução oficial. Maia, contra a rotulação apressada das críticas à URSS, elogia a carta de Prestes como um bom início da exposição da direção e da proteção do debate contra “ideologias estranhas ao proletariado”, embora ela ainda não dissesse todo o necessário. Ao questionamento da frase “O Partido é tudo”, José Gorender responde que ele “é tudo” nesta hora de crise e quando se mostra um guia das massas, de quem é vanguarda inevitável, e rejeita o “liquidacionismo” de quem pensa que “o Partido não é nada”. E Hércules dos Santos, respondendo a Peralva, não reconhece a existência de “minorias” nos PCs, porquanto elas se guiam de acordo com a “maioria” e têm garantida apenas a liberdade de expressão. (23)


O controle, a continuação e o fim dos debates no PCB em 1957: Em 1957 os artigos refletem os limites dados pela “carta-rolha”, e a luta pelos “princípios” e contra os “revisionistas” torna-se mais aberta. Para Santos, a educação recebida pelos militantes fez com que eles fossem mais facilmente instigados pela direção a isolar-se dos “renovadores” e a escrever artigos negando a “crise” como “ideia inculcada pelo imperialismo”. (24) A “virada” incluiu a troca do corpo editorial e da redação da Voz Operária em fevereiro, exonerando seu editor, Aydano do Couto Ferraz. Houve até mesmo um episódio de depredação da redação desse jornal e, no dia 28, da Imprensa Popular, segundo alguns, ordenada por elementos mais “conservadores” na direção do PCB. (25) Nos primeiros meses do ano, embora o PCB tome uma visão mais lúcida do capitalismo no Brasil, a defesa dos princípios classistas antiburgueses atravancarão o aprofundamento do processo. No próprio bloco socialista, a invasão da Hungria, entre outubro e novembro de 1956, mostrara as contradições da “desestalinização” khruschoviana. A revolta húngara impossibilitara a convivência da condenação do autoritarismo staliniano e da pregação das “vias múltiplas ao socialismo” com a exigência de submissão a Moscou, mas obrigara a URSS a uma revisão de suas relações com as “democracias populares” na direção de certa abertura, sobretudo econômica. (26)

Em artigo, Marighella vê o apoio “internacionalista” à URSS como necessário quando era o único país socialista, prega sua manutenção para fortalecer a luta contra o “reacionarismo” dos EUA e teme o uso dos debates no fortalecimento do “inimigo”. Amazonas, mantendo o dito “golpismo” e o mecanicismo da sucessão de modos de produção, privilegia o papel das massas, desde que dirigidas por “chefes esclarecidos” e sua “vanguarda”, o PCB, e também mitiga os erros de Stalin com seus acertos. Pomar admoesta simultaneamente a demora na abertura dos debates, a superficialidade do Projeto de Resolução e o uso da discussão pelos “inimigos”, relevando a intocabilidade da URSS, do PCB e do “marxismo-leninismo”. Barata ainda escreveu defendendo a democratização do partido por meio dos debates e a revelação e correção dos erros, mas guarda uma concepção elitista da “renovação”, a ser conduzida exclusivamente pela intelligentsia comunista; ao seu lado, todavia, aparece texto de Amazonas, que critica o elitismo, as ideias “estranhas ao proletariado” e o “fracionismo” de Barata, mas não alude à marginalização das bases e dos intelectuais, talvez uma queixa do ex-militar. Mesmo assim, ainda saiu em abril um trabalho de Barata, com propostas de renovação e democratização no partido, ampliação da frente única, via pacífica da revolução e igualdade entre PCs, semelhantes às da futura “Declaração de Março”. (27)

Os documentos do Pleno do CC de abril seriam uma síntese forçada das críticas “renovadoras”, talvez trabalhadas por um grupo anônimo na cúpula, à tática política do PCB, mas privilegiando a “unidade”, suposta segurança ao grosso inerte da militância. Como o Pleno de janeiro de 1956, reconhecia a conjuntura e, por força dos debates, outras coisas, embora houvesse resistência a mudanças estratégicas e ideológicas. Ligam-se as lutas nacional “anti-imperialista” e pelas liberdades democráticas e procura-se ampliar a frente nacionalista, mas fracamente, por causa da má análise da realidade. (28) A Resolução “Sobre a unidade do Partido”, publicada na VO do dia 20, ataca as “infrações disciplinares”, como a abertura súbita do debate, e ordena que todas as críticas respeitem o “marxismo-leninismo” e não sejam feitas “à margem” do PCB ou do CC. Já a Resolução “A situação política e nossas tarefas atuais”, no mesmo dia, cita a crescente “restrição de liberdades” do governo JK, que, também sendo “de latifundiários e grandes capitalistas”, corre risco de “submissão” e “militarização” pelos EUA. (29) Depois do Pleno, um novo grupo dirigente em ascensão no CC absorvia algumas ideias dos “renovadores”, mas flertava com os “conservadores” sobre a unidade partidária, focando as atenções na questão da frente única, abordada à luz do desenvolvimento capitalista nacional. Já os “conservadores” continuarão atacando os “renovadores” e, para muitos, serão sinal do remanescente “anti-intelectualismo” da velha guarda. (30)

A marginalização dos “renovadores” já derrotados aumentaria com a recusa de Barata a publicar autocrítica na imprensa comunista e a reafirmação das teses de “Pela renovação e o fortalecimento do Partido” ao ser entrevistado pela revista Manchete em maio. Seguiram-se declarações de apoio ao CC e à unidade partidária por vários comitês, chegando os CRs do Ceará e de Piratininga a voltar atrás nas declarações anteriores, condenado Barata. Conforme Peralva, no tempo restante à discussão, ela teria sido uma “caricatura”: vários artigos “renovadores”, engavetados pela comissão de censura e já desatualizados, teriam sido publicados junto a trabalhos “conservadores”, feitos “em massa por dois ou três intelectuais auxiliares da Direção” e assinados por outros militantes. (31) Nesse tempo, ocorreu polêmica sobre a UJC, no bojo da discussão sobre a imposição de “palavras de ordem” às massas e do “baluartismo” partidário, sendo o trabalho juvenil considerado por muitos como subestimado e limitado. Mas o CC contrariou-se e expediu resolução encerrando a controvérsia, reconhecendo erros, mas avaliando a atividade como no geral positiva, e cogitando fazer substituições da direção da UJC. O documento também pediu reforço nos trabalhos da entidade, colocando-se contra sua dissolução. (32) Em junho saiu uma “Declaração do Presidium do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil em face das declarações feitas por Agildo Barata a um semanário burguês contra o Partido e o movimento operário”, de título autoexplicativo, rejeitando o “fracionismo criminoso” do militante já afastado do PCB por iniciativa própria. (33)


A ascensão do “centro pragmático” e a luta contra o “dogmatismo” e o “revisionismo”: Findos os debates em maio por determinação da direção, o PCB desnortear-se-á com o crescimento do movimento nacionalista, captando parte das teses “renovadoras” sobre a frente única em textos oficiosos, mas mantendo a defesa dos “princípios”. Em junho as demissões de Molotov, Malenkov, Kaganovich e outros “stalinistas” do CC do PCUS geraram a necessidade de mais autocrítica e revisão das teses sobre o nacionalismo, o que é feito no Pleno de agosto, a primeira reunião oficial com Prestes, após nove anos vivendo clandestinamente. Aí se rejeitou o “nacionalismo burguês” e reafirmou-se o “internacionalismo” e a aliança com a “burguesia nacional”, porém, ao contrário de Barata, dentro de “princípios”. Sob o pretexto de destravar as mudanças políticas, Diógenes Arruda, Maurício Grabois, Sérgio Holmos e João Amazonas, que eram parte do antigo “núcleo dirigente”, foram demitidos do Presidium, mas continuaram no comitê, dando lugar a Giocondo Dias, Mário Alves, Calil Chade e Marighella (outrora um “conservador”). (34) Subiu o novo grupo dirigente conhecido como “pântano”, “grupo baiano” ou “centro pragmático”, que, percebendo a grave crise, renovou em parte a política com teses antes contestadas e combateu “dogmáticos” e “conciliadores”, mas apelou pela unidade. (35) Esse grupo dispôs-se a fazer uma autocrítica profunda, mas conservando o partido intacto, e não era exatamente “pendular”, mas teria reforçado a “esquerda” contra a “direita” e, liquidada esta, atacado então aquela. Entre seus principais nomes estavam, além de Dias, Alves e Marighella, Jacob Gorender e Moisés Vinhas. O próprio Prestes, adaptando-se ao curso dos acontecimentos, decidiu abandonar as posições intransigentemente conservadoras e aderiu a esse grupo. (36) Percebendo a nova correlação de forças, Arruda, comprometido com o “mandonismo” no PCB, escreveu o artigo “Renovar o partido e derrotar o antipartido”, que, segundo Pacheco, foi uma autocrítica que marcou o fim da luta interna. (37) Coerente ao novo, Arruda pede renovação partidária por meio da crítica fraternal e do contato com as bases e a vontade das massas para fazer valer a “sabedoria coletiva” do partido. Repudiando a “sede de vingança” de Barata, reafirma a necessidade de lutar “em duas frentes” (contra o “revisionismo” e o “dogmatismo”), mas sem ferir os princípios partidários. (38)

Segundo Santos, a luta simultânea contra o “dogmatismo” e o “revisionismo”, centrando-se neste, não seria uma oscilação entre “direita” e “esquerda”, mas uma concepção stalinista de privilégio da organização em detrimento do processo histórico. (39) No mesmo Pleno, apesar da autocrítica e do ataque ao conservadorismo, continuaram os velhos métodos, como a expulsão a posteriori de Barata, enquanto outros “revisionistas” seriam mais bem tratados, tendo em vista sua reabsorção. (40) A Resolução do CC do PCB “Sobre a atividade antipartidária de Agildo Barata”, tirada então, com direito à rotulação com todos os “anti-” e “-istas” possíveis, classificava suas críticas como “fracionistas” e “caluniosas”, surgidas no “aguçamento da luta de classes” como resquícios de “mentalidade burguesa”. Barata não teria sido expulso por suas ideias, mas pela ação “antipartidária”: a apologia da “democracia interna” e da “crítica e autocrítica” choca-se com a rejeição ao “revisionismo” e a conceitos “reformistas”, como os de “marxismo brasileiro” e “comunismo nacional”. (41) Mesmo com tais contradições, e sem criar propriamente uma estratégia política, a nova direção tentou recuperar a autoridade e credibilidade do CC e reorientou o PCB, o que se pode ver nos editoriais de fins persuasivos, que até valorizam as eleições de 1958 como meio de mudança. (42) Eles também criticam a condução dos debates, louvam o Pleno de agosto e clamam por legalidade democrática, soluções nacionalistas, contato com as massas e a luta “em duas frentes”, sobretudo a luta mais dura contra o “dogmatismo”. (43) Na edição de 1.º de junho a VO começara a publicação de duas colunas, “Teoria e prática” e “Perguntas e respostas”, como instrumento de doutrinação e esclarecimento do grosso da militância, provavelmente visando suprir a deficiência teórica e de clareza política elucidada nos debates. Gorender será um modelo da nova linha, ao relatar que a luta contra a “cisão” de Barata, seu “antipartidarismo” e seu “desejo de dissolver o marxismo no nacionalismo” teriam dado munição aos stalinistas, que, se não fossem contidos, jogariam o partido no “imobilismo político”. (44)


Heterodoxias pós-1956 e os limites do khruschovismo: Sobretudo após 1956, as “heterodoxias” também passaram a reivindicar-se como “marxistas”, atraindo mais intelectuais ao marxismo, e, com mais comunicações entre os dois blocos mundiais, também caíram as visões idílicas dos comunistas ocidentais sobre “o outro lado”. No Brasil, a antiga simbiose entre marxismo e PCB também foi minada, e passaram a surgir inúmeros polos de irradiação marxista, processo que, sumamente na década de 1960, só iria agravar-se. (45) A revista Novos Tempos, fundada em setembro de 1957 separadamente do PCB como órgão da dita “Corrente Renovadora do Marxismo Brasileiro”, desenvolveu temas sufocados no partido, descria na infalibilidade deste e tentava inserir seus colaboradores, livres do Programa de 1954, no movimento nacionalista. (46) Apresentando-se, a corrente diz ter surgido da impossibilidade de se renovar o PCB, nega o caráter burguês do nacionalismo, que seria a forma brasileira de luta pelo socialismo e antecipa a teoria da hegemonia operária só possível após conquista e de luta por um governo que faça reformas de estrutura. Porém, quase esquece o campo, propondo soluções reformistas que privilegiam a questão nacional em detrimento da “defesa das liberdades”. (47)

Porém, lembram Chilcote e Costa, mesmo o discurso dos “renovadores”, apesar das ideias interessantes sobre o nacionalismo, ainda se ressentia das influências stalinistas em seus membros, o que lhes dá muitas similaridades programáticas com o PCB. Barata, sem dizer, sinalizará as “permanências” em suas memórias, nas quais confessa que, embora não domine filosofia bem, considera o “materialismo dialético” (talvez um disfarce para “stalinismo”) como “o ponto mais exato e mais alto do pensamento humano”: novamente a mistificação da teoria... (48) Artigos como os de Teixeira, Peralva e Fausto mostrarão como restam ainda a ideia da dependência aos EUA e do latifúndio gerador de “atraso”, o etapismo na descrição do processo revolucionário, a repulsa ao chamado “nacionalismo burguês” e a tendência às ações violentas; e como a crítica limita-se a aspectos organizacionais do PCB e pouco toca na teoria política, ainda muito semelhante. (49) O próprio nome da publicação será uma inversão do nome português corrente de uma revista soviética seguidora da linha oficial do PCUS: Tempos Novos. Tais resquícios, a pouca ligação de massas e o receio de formar um partido organizado devido ao medo do burocratismo prejudicaram a inserção do grupo no processo político de então. Já a prisão ao modelo tradicional de PC, por parte de teóricos como Basbaum (que com ironia dirá que Novos Tempos não emplacou porque todos arranjaram bons empregos), chocar-se-á com a política “para fora” dos nacionalistas. (50)

De 14 a 16 de novembro de 1957 diversos partidos comunistas e trabalhistas assinaram a Declaração de Moscou, resultado da Conferência dos Representantes dos Partidos Comunistas e Operários dos Países Socialistas, privilegiando o combate ao “revisionismo”, ou seja, apesar do “degelo” nos PCs do Ocidente, eles não se centraram na luta contra o “dogmatismo”, seguindo os passos do PCUS. A revitalização do CC soviético e a direção colegiada, mais teórica do que prática, conviveram com o acúmulo de poder cada vez maior por Khruschov entre 1957-58 e a marginalização dos assim chamados “antipartidários”. (51) Segundo Adler, o primeiro-secretário, apesar de seu “neopopulismo”, excedeu em uma difusão de rotatividades que quase desmantelaram o aparelho partidário, era pouco afeito ao diálogo com os setores mais críticos da sociedade e fez uma política externa cheia de erros. (52) Em meio à luta contra o “culto”, a VO publicará congratulações de outros PCs pelo aniversário de Prestes (3 de janeiro), e o artigo “Saudamos o 60.º aniversário de LUIZ CARLOS PRESTES”, (53) de J. Armando de Castro, fala da dependência ao “imperialismo” e as tentativas de miná-la, mas relacionadas com a trajetória política do líder.


A “Declaração de Março” e suas mudanças na linha política: No Pleno de agosto de 1957, o CC designara uma comissão para preparar um documento sobre os reflexos do “culto” no PCB e elaborar a autocrítica baseada no balanço dos debates. Obtido em janeiro do ano seguinte, o resultado deveria ser discutido em março, mas no mesmo mês, um grupo liderado por Dias passou por cima da comissão e apresentou a Prestes um texto alternativo. Uma Reunião Plenária do CC, após intenso debate, ratificou-o com apenas um voto de diferença. Conhecido como “Declaração de Março”, publicado na VO do dia 22, oficializou a “desestalinização” no PCB e reconheceu a intensidade do desenvolvimento capitalista brasileiro, contra a tese de sua catástrofe, ressalvando que os entraves a ele devem ser sanados por uma política externa soberana e o fim do monopólio da terra. No Brasil, a contradição “nação” versus “imperialismo norte-americano”, refletida no governo, deveria ser resolvida antes da contradição entre burgueses e proletários, enquanto a etapa atual da revolução agora seria “anti-imperialista, antifeudal, nacional e democrática”. Sob as condições mundiais de “coexistência pacífica”, era assumida uma tendência à democratização do país, viabilizando a luta pacífica pelo poder de um governo nacionalista e por reformas graduais e profundas, embora houvesse alusão muito secundária a fases violentas. A frente única teria uma hegemonia proletária a ser conquistada, apoiada pelos camponeses, e lutaria basicamente por uma política externa e economia independentes, pela reforma agrária e a defesa de direitos trabalhistas já existentes aos camponeses, a melhora no nível de vida do povo e a consolidação da legalidade democrática. (54)

Na verdade, o 20.º Congresso do PCUS já pedira que o proletariado, nesse momento “não revolucionário”, adotasse a política de “frente única” pelas “liberdades democráticas burguesas” e pela “independência e soberania nacional”. E mesmo Stalin, fechando o 19.º Congresso, em 1952, mostrava qual a relação entre o internacionalismo comunista e o nacionalismo pátrio: os PCs, para dirigir seus países, deveriam recolher “a bandeira da soberania nacional e das liberdades democráticas burguesas”, jogada fora pela burguesia para manter sua dominação de classe. (55) Na América Latina os anos 1950 foram de desenvolvimentismo otimista baseado no desejo de independência econômica nacional contra o subdesenvolvimento e a miséria, o que, segundo também o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), aparentemente influenciando o PCB, dar-se-ia pela resolução da contradição “nação” versus “antinação” antes da luta de classes. E JK seguiu tal linha, acrescentando considerável estabilidade democrática, e, mesmo anticomunista, permitiu a livre ocupação de cargos públicos por comunistas. (56) Não se devem, portanto, esquecer estes contextos para entender a elaboração da linha da “Declaração de Março”.

Segundo Gorender, a política da “Declaração” era fato consumado, sendo sectários apenas os documentos do PCB, e por isso, e porque pessoas como Grabois e Arruda o rejeitariam, passou por cima do CC diretamente para a assinatura de Prestes. (57) Em todo o caso, a nova orientação confirmou e reforçou uma situação de semilegalidade, permitindo alianças mais flexíveis e uma reposição do que se perdeu culturalmente com as defecções intelectuais recentes. Marca desta renovação foi a criação da revista Estudos Sociais, já em 1958, mostrando que as questões postas pelo partido ligavam-se à cultura geral produzida então, pretendida nacional e popular e símbolo de uma rica tomada de consciência sobre os problemas sociais e políticos do Brasil. (58) Nas palavras de Pablo Neruda, as revelações do 20.º Congresso haviam posto Jorge Amado, outro escritor comunista, “meio melancólico”, mas melhoraram a qualidade de sua literatura, agora sem “caráter político direto”, e a sobriedade de suas ações e declarações. O poeta chileno, além de refletir o choque em que mergulharam os literatos comunistas, narra a decepção de presenciar o fechamento posterior às atitudes mais ousadas, como ocorreu na China, onde “Todas as flores se fechavam”. (59)

No dia 29 a VO publicou documento de Prestes, “É indispensável a crítica e autocrítica de nossa atividade para compreender e aplicar uma nova política”, que embora critique o “dogmatismo” da linha anterior e a má análise da realidade brasileira, condena os erros na aplicação do “marxismo-leninismo” “universal”. O secretário-geral rejeita as teses anteriores da estagnação econômica, da colonização crescente, dos golpes contra a burguesia “nacional-reformista” e da “apriorística” FDLN com seu privilégio da luta armada. Por fim, clama por uma política de mudanças progressistas graduais, mas sem cair no “reboquismo” à burguesia, no esquecimento dos “inegáveis” êxitos passados e, por incrível que pareça, no “reformismo”. (60)


1959, ano raramente comentado pelos historiadores do PCB: A nova História do PCUS, de 1959, estranhamente manterá a primazia da URSS na interpretação marxista, contra o “revisionismo”, elogiará uma “coexistência pacífica” contrastante com o armamentismo soviético e citará uma “democracia intrapartidária” dessemelhante à derrota dos inimigos de Khruschov em 1957. Prosseguem as loas a Stalin, a justificação de sua ditadura e a atribuição do exagero a seu “culto” a fatores psíquicos, sem mencionar o controle do primeiro-secretário sobre a arte e a literatura, apesar do breve e ambíguo “degelo”, cujos limites serão marcados pelo caso de Boris Pasternak e seu Doutor Zhivago. Aliás, o principal limite da abertura khruschoviana transposto pelo livro (não criticar a Revolução Russa) será semelhante aos impostos pela “carta-rolha” de Prestes, que julgava intocável a “Pátria do Socialismo”. Também em 1959 (27 de janeiro a 5 de fevereiro) ocorrerá o 21.º Congresso do PCUS, em que o “culto” a Khruschov será moeda corrente. A partir de 1959, a corrida armamentista, os erros na agricultura, o desperdício, a corrupção e o alto custo da burocracia conseguiram diminuir, e até mesmo retroceder, a abertura política e o crescimento econômico conquistados desde 1953. (61)

Em janeiro, Prestes publicara A situação política e a luta por um governo nacionalista e democrático, no qual, com retificações e atualizações conforme os fatos nacionais e internacionais, reafirma as convicções na política do 20.º Congresso e da “Declaração”. Esta, segundo o líder, teria dado acertos em 1958, ano de maior desenvolvimento industrial e mais avanços de candidatos nacionalistas, podendo-se mudar os rumos do governo. Entretanto, prosseguem a tese dos “restos feudais” na agricultura, a superposição da questão nacional à democrática, a “luta em duas frentes” e os pedidos de melhor aplicação do “marxismo-leninismo” em nome dos sucessos, visto que só o PCB supostamente poderia representar os interesses operários. (62) A VO reafirmará as conquistas e lutas nacionalistas e operárias, e noticiará, sem quaisquer críticas ou debates, o 21.º Congresso do PCUS, publicando vários de seus documentos e passando a ideia de reafirmação e “confirmação” dos princípios do 20.º Congresso. Em fevereiro, o PCB substituiu o semanário pelo igualmente semanal Novos Rumos, o qual deveria integrar-se à frente nacionalista e democrática com posição proletária e continuar baseado no “marxismo-leninismo”, sem que desta vez, todavia, isso implicasse em uma posição sectária. (63) No primeiro ano de existência aparecerão o esforço para “lutar em duas frentes”, o início da campanha Lott-Jango à Presidência da República, os impasses internacionais, elogios à Revolução Cubana e a fé na chegada iminente do comunismo na URSS.


O 5.º Congresso, as reafirmações e as conciliações: Em abril de 1960 o PCB estabeleceu quatro meses para se discutir, em uma Tribuna de Debates dos NR, os Projetos de Teses para o 5.º Congresso e de Estatutos, combatidos pelos “conservadores” (que denunciavam “desvios de direita” nos documentos desde 1958) e defendidos pelo “centro pragmático”. (64) No primeiro grupo, relevam-se “Duas concepções, duas orientações políticas”, de Grabois, “Análise marxista ou apologia do capitalismo?” e “Ainda sobre a apologia do capitalismo”, de Pedro Pomar. (65) Para Grabois, a “Declaração de Março” e as Teses “embelezam” o capitalismo, criam uma frente única de composição prejudicial, induzem à “passividade” das massas e têm a mesma matriz de inúmeros erros “de direita” dos últimos anos. Propõe várias teses alternativas, chamadas pelos opositores de “substitutivas”, muito ligadas ao radicalismo e “catastrofismo” pré-1958, mas também com várias semelhanças às Teses em discussão, como sobre a etapa atual da revolução. Pomar, adepto das “soluções radicais”, ataca a sobrevalorização da burguesia em detrimento do operariado, o esquecimento das mazelas do capitalismo e a linha “direitista” da “Declaração de Março”. Também critica a “apologia do capitalismo”, mas o excesso de aforismos não demonstrados e os parágrafos que aparentemente demonstram a ideia contrária revelam as contradições e a inconsistência de seu pensamento.

Do outro lado, foram vários os defensores assíduos da linha vigente e dos documentos comentados, e aqui se extrairão os mais chamativos. Jacob Gorender, logo no começo, será o retrato da penetração khruschoviana e seu “retorno a Lenin” no PCB: invoca a atualidade das ideias do líder bolchevique, tira Stálin veladamente da lista dos “clássicos”, não o cita ao falar do sucesso soviético na 2.ª Guerra Mundial e não usa o termo “marxismo-leninismo”. Alves, rebatendo Grabois, pensa que as Teses não embelezam o capitalismo, mas apontam suas mazelas; não adulam a burguesia, pois a chamam de “inconsequente”; e não separam as tarefas nacional, democrática e agrária, nem absolutizam o “caminho pacífico”. Reis imputa os erros à má aplicação da “justa” “Declaração” pelos dirigentes “sectários” e vê o aumento do trabalho nas bases como condição para a mobilização das massas. E até mesmo Arruda, com uma retórica vazia e plena de chavões, projeta-se como democrata, faz uma autocrítica da linha anterior sem citar-se a si mesmo e usa um tom conciliatório para com os opositores das Teses, as quais corrigiriam os erros “de direita” da “Declaração”. Para Dias, o Projeto de Estatutos põe a “direção coletiva” e o “centralismo democrático” como corretores das violações aos métodos de direção “leninistas”, enquanto a hegemonia proletária e “marxista-leninista” nas massas só pode ser obtida com luta, e não a priori. (66) Prado Jr., fora dos dois grupos, fará acurada análise do “imperialismo” e da economia brasileira rural e industrial para dizer que as propostas e conceituações das Teses são imprecisas e inadequadas; defenderá a preparação político-ideológica do proletariado como tarefa central, para que ele lidere a frente única e leve adiante a luta de classes, postergando a questão das alianças. (67)

O congresso, em agosto, adotará uma Resolução Política com 30 itens, sendo os primeiros dedicados a assinalar o desenvolvimento progressista do capitalismo brasileiro, ainda atravancado pelo monopólio da terra, por sua vez sustentado pelo “imperialismo norte-americano”. Por isso, a atual etapa da revolução permanece “anti-imperialista, antifeudal, nacional e democrática”, mas a contradição entre a burguesia e o proletariado continuará subestimada em prol daquela entre “nação” e “imperialismo”. O governo JK seria “de compromisso” por ter elementos contraditórios, oscilando por isso entre “nacionalismo” e “entreguismo”. No campo internacional, nova ênfase na “coexistência pacífica”, na “superioridade” do socialismo e na possibilidade de o Brasil não depender “só dos imperialistas”. Na frente única, o proletariado deve conquistar com luta, guiado pelo PCB, sua hegemonia e manter-se independente, reivindicando reformas dentro do atual regime e por meios pacíficos, não excluindo a violência caso seja essa a resposta das classes dominantes. No campo, preferir-se-ão meios legais de luta, o foco nos assalariados e semiassalariados agrícolas, as reivindicações imediatas, a reforma agrária, a sindicalização e a união operário-camponesa. E no terreno organizacional, continuam as lutas “em duas frentes” e pela legalização do PCB. (68)

Como resultado de luta interna e concessões, os documentos oficiais, sumamente a Resolução Política, não romperam radicalmente com as antigas concepções revolucionárias inspiradas no 6.º Congresso da Comintern, como a divisão do processo histórico em etapas, e subordinaram a questão democrática à nacional. Conquanto se consolide o poder de Prestes e outros reformistas, foram elementos de conciliação parcial com os “conservadores” a reafirmação da hegemonia do proletariado e do PCB nas lutas sociais, agora convivendo com o desenvolvimentismo, e a dissociação entre “via pacífica” e “passividade”, embora as pretensões à luta armada fossem estranhas naquele contexto estável. Ocorreu, de fato, uma reafirmação da “Declaração de Março”, mas fazendo formulações menos nítidas e incisivas e mais hesitantes. (69)

O grupo “conservador” foi marginalizado e retirado do CC, mas voltou à cena na Conferência Nacional de setembro de 1961, quando se aprovaram os novos Estatutos e Programa e um Manifesto, publicados em agosto, e mudou-se o nome do PCB de “do Brasil” para “Brasileiro”, pretextando legalizá-lo sem dar a impressão de ser uma “filial da URSS”. O Manifesto, escrito por Prestes, fala da necessidade de legalizar o PCB, dada a nova situação mundial, a força real dos comunistas no Brasil e o apoio matizado a seu registro. O breve Programa apoia um desenvolvimentismo estatizante, a paz mundial com “coexistência pacífica”, melhores condições de vida ao povo, “medidas parciais” moderadas por uma reforma agrária dentro da lei e a abolição das desigualdades jurídicas, sempre com a questão nacional à frente da democrática. Os Estatutos parecem-se com os de outros partidos, com mudanças de nomes (e. g. “Comitês” tornam-se “Diretórios” e o “secretário-geral”, “presidente”) e uma “Introdução” sem o “marxismo-leninismo”, o “internacionalismo proletário” ou referências a centralismo, disciplina e combatividade. Seus opositores lançaram a “Carta dos Cem”, chamando as mudanças de “reformistas” e contrárias às decisões do 5.º Congresso, que teria permitido mudanças desse porte apenas em outro congresso. Vistos como “fracionistas”, os subscritores foram expulsos do PCB em janeiro de 1962 e seriam o embrião do futuro PC do B, fundado um mês depois, mas que foge do escopo desta pesquisa. (70)


As linhas políticas do PCB: evolução ou calcificação?: Com o suicídio de Vargas, o PCB afinará a tática e diminuirá o sectarismo, mas não aprofundará a análise da realidade para não tocar nos dogmas da “revolução democrático-burguesa” e do “Brasil colonizado”, reafirmados no 4.º Congresso, enquanto a crise do stalinismo só será discutida após 1956. A partir daí, as mudanças advirão dos desdobramentos do 20.º Congresso do PCUS, mas serão também a culminância de problemas internos longamente acumulados no seio do PCB, gerados especialmente da oposição ao “Manifesto de Agosto” e, depois, ao Programa de 1954. Já os debates de 1956-7 mostram como o PCB começou a reconhecer a modernidade e a pluralidade do país, malgrado a constância do estatismo econômico, que persistiria em 1960, da subestimação das massas e da cegueira ante a complexidade de momentos como 1935 e 1964. Mesmo assim, para Santos, as incorporações “renovadoras” no Pleno de abril de 1957 não serão “oportunistas” a salvar o “dogmatismo”, mas resultado de uma autêntica luta interna. (71) Em todo o caso, a “renovação” será conservadora, dados os compromissos com o passado, exclusões, isolamentos, acomodações das divergências e concessões aos dois lados. (72) E mesmo que a proposta do “governo nacionalista e democrático”, desde aquele ano, inserisse mais o PCB na realidade política e desse-lhe uma influência desproporcional à sua fraqueza numérica e eleitoral, ela era economicista por ligar o desenvolvimento democrático ao capitalista e à participação da burguesia em um Estado superestimado, em detrimento da auto-organização das forças sociais. (73)

A “Declaração de Março” tentou romper com o “golpismo” e o “dogmatismo” e apoiar o pluralismo, a política de massas, as liberdades democráticas e uma ligação maior com a realidade e as exigências da sociedade brasileira. Isso porque, com o desenvolvimento industrial e urbano da segunda metade dos anos 1950, a sociedade civil fortaleceu-se e tornou mais complexo o cenário político, dando à classe média mais poder de barganha e novas prioridades ao PCB. Mas a “nova política” nunca foi plenamente aplicada devido à permanência de práticas como a falta de debates, a acomodação das divergências e o burocratismo. (74) Assim, é notável a própria aprovação da “Declaração”: um grupo restrito, passando por cima do trabalho de uma comissão regulamentar, levou-a diretamente a debate. O “passar por cima” dos órgãos instituídos foi como Prestes alçou ao CC, em 1945, um dos maiores críticos da falta de democracia no PCB: Barata, promovido sob chios do “núcleo dirigente”, reconhece o tom de imposição do ato, mas trata-o como uma “necessária homenagem” pela sua atuação nas revoltas de 1935. (75) É a amostra cabal de que a mentalidade stalinista era algo inevitável aos comunistas, sobretudo os dirigentes. Também mudou pouco a definição da etapa da revolução, “anti-imperialista e antifeudal, nacional e democrática”, conduzida por uma frente de camponeses, operários, pequena-burguesia e “burguesia nacional”. Em 1958, as lições da Comintern diminuíram a influência sobre a tática, marginalizando a tomada súbita e violenta do poder, mas a estratégia “chegar ao socialismo” e a análise da realidade continuavam semelhantes. De fato, embora a análise da realidade acrescentasse forçosamente novos elementos, permanecia parte do velho dogmatismo, mecanicismo e uma visão arquetípica sobre a mesma. (76)

A discussão de 1956-7, pouco profunda, travara entre “um novo doutrinarismo” e o reconhecimento efetivo das novas forças sociais. Parece ter ocorrido o mesmo com a do 5.º Congresso, embora debatesse o nacionalismo, a frente única, a “burguesia nacional” e a possibilidade de atuar legalmente e optasse em definitivo pela via “reformista” contra a “revolucionária”, encerrando a era de oscilações. (77) Já a visão do Brasil “feudal” ou “semifeudal” (este termo, talvez, atenuante da incerteza sobre a noção de “feudalismo”), para Dória, teve como fontes não só a inserção do país em um processo mundial, mas ainda as análises estrangeiras e a literatura popular e erudita que medievalizaram o sertão. (78) Embora aqui nunca houvesse feudalismo, o decalque do modelo russo enxergou, até 1958, um campo “feudal” brasileiro sem penetração capitalista, enquanto após 1958, mesmo com tal intrusão, teriam sobrado “resquícios feudais”. Essa visão prejudicou muito a intervenção do PCB no campo, especialmente após 1956, por esquecerem as reivindicações imediatas dos trabalhadores rurais ao subordiná-los aos acasos da luta operária. (79)


Os limites das mudanças no PCUS e no PCB por seus sistemas: O reformismo soviético em geral, por ser ligado a uma estrutura de poder avessa à modernização global da sociedade, paradoxalmente reproduzia um Estado ao mesmo tempo centralizador (despotismo) e fraco (pouca independência com relação aos órgãos policiais). Na URSS, os “resquícios” stalinistas teriam sobrevivido porque, sem grupos opositores, a “desestalinização” só podia paradoxalmente ser conduzida por stalinistas. (80) O PCB, de linha básica definida pelos soviéticos, era fiel seguidor das vicissitudes do MCI, em especial após 1947, quando o Cominform (extinto em abril de 1956) ressuscitou a subordinação a Moscou, antes afrouxada com o fim da Comintern, em 1943, atrelando a política pecebista, em grande parte do tempo, à política externa do PCUS e da URSS. Mas por não ser governante, ainda será geralmente ligado aos acontecimentos nacionais, e até mesmo, por força da conjuntura, terá frequentemente sua linha desobedecida, seja pelas bases, seja pela própria direção, como no apoio eleitoral a JK, pondo de lado a desvalorização das eleições. Por isso só se compreende o partido por meio da análise de suas relações com o país e com o exterior e de sua ligação e interferência na conjuntura em que se insere. (81) Ainda assim, alguns comentaristas referem-se à preocupação excessiva com o que acontecia no exterior, como a “troca” do campesinato brasileiro pela Coreia, por volta de 1951, e o excesso de traduções soviéticas na revista Problemas, em detrimento de análises nacionais, (82) ou à ausência de um pensamento marxista próprio no PCB por causa de sua dependência da URSS. (83)

Na URSS (embora se possa dizer o mesmo do Brasil), usou-se o “culto à personalidade” como “fórmula mágica” para explicar todos os males e escamotear a origem no próprio sistema stalinista de Estado e do MCI, o que ajudou a perpetuar, com pouca renovação, os métodos e a política passados. Era o desvio da essência da questão, por medo ou conveniência, que criava “bodes expiatórios” para a questão, como já se dera no fuzilamento de Lavrenti Beria, chefe da polícia staliniana, em 1953. (84) A mentalidade do marxismo até então assimilado será responsável pelas adaptações e reprodução do “núcleo dirigente” do PCB, que na prática absorvia as funções do CC com a conveniência omissa deste, e pela prevalência das permanências sobre as mudanças. (85) Os dirigentes brasileiros procuravam discutir pouco as relações com o PCUS para não pôr em dúvida o caráter nacional do marxismo brasileiro nem arriscar o prestígio e os privilégios morais dessa ligação. Mas a concepção estreita do fazer político no Brasil republicano, certamente influenciadora da visão de mundo dos líderes ascendidos em 1943, também ajudou a perpetuar as cópias, mesmo após a diretiva dos “caminhos múltiplos para o socialismo”. (86) Para Benevides, o que também parece plausível, o próprio fazer político como participação de massas e mesmo liberdade política não era claro para os partidos da época, não se colocando centralmente, por isso, a questão da democracia interna, nem para o PCB, nem para outras agremiações. (87)

O chamado “culto” a Prestes, embora em dimensões menores, foi auxiliado pelo antigo prestígio popular do ex-militar, do qual a máquina partidária utilizou-se para funcionar. Para Pandolfi, no que concorda Peralva, apesar de o secretário-geral ter perdido poder entre os anos de isolamento de 1948-57, o “núcleo dirigente” “conservador” teria aproveitado a situação para “endeusá-lo” e assim controlar tudo. Porém, com razão, Loner diz que se poderia deduzir “ingenuidade política” do líder caso aceita a tese de que ele teria sido enganado pelo “núcleo” e, assim, mantido naquele “cativeiro”. (88) Por isso, é difícil atribuir responsabilidades somente a Prestes, (89) a Arruda (90) ou um grupo restrito, pois a mentalidade stalinista estava difusa entre todos, e assim todos colaboraram com atos de “mandonismo” ou a difusão do ideário “errôneo”. Com exceção dos motivos históricos, talvez se aplique ao PCB uma interessante explicação de Lukács para o funcionamento do sistema do “culto” na URSS: não se deve olhar um indivíduo ou grupo, mas todo um sistema em que, como uma pirâmide, os superiores tiranizam os subordinados, em todos os níveis (aqui, os “comitês”). A teoria, mistificadora da realidade, vulgariza-se para ser melhor “digerida” pela militância e torna-se um mero instrumento para a prática e a propaganda do partido e do líder “salvador das massas”. (91)

O PCB, nas crises ideológicas, e com um saldo ruim, absorvia até certa hora o pensamento mais moderno, mas logo lutava contra os “liquidacionistas” e não elaborava uma estratégia socialista explícita sem ambiguidades e de acordo com as mudanças nacionais. Isto ocorria talvez porque, na teoria, havia no partido um fluxo de ideias de baixo para cima, mas não na prática, causando, também pelo choque dos problemas internacionais, os “fracionismos”, quando se abriam debates que, por serem logo suprimidos pela direção, inspiravam várias defecções. Tal postura também ocorria porque um dos princípios básicos e “intocáveis” dos PCs, malgrado sua difícil aplicação, fossem a coesão e homogeneidade orgânicas. (92) Por isso talvez Vinhas, ele próprio adepto do “centro pragmático”, exagere quando, ao falar dos pedidos dos “renovadores” de 1957 “por uma autocrítica radical”, pense que eles “progressivamente” acabavam “negando” o próprio partido. (93)

Para alguns, o pouco cientificismo da cultura brasileira e do “marxismo-leninismo” assimilado, o parco espírito crítico dos PCs, a separação entre líderes e massas e a predominância de um líder carismático e seu grupo moldariam o desempenho do PCB. (94) Contudo, Loner refuta genialmente a famosa explicação do “atraso cultural” do Brasil, segundo dois fatos. Primeiro, mesmo em países “culturalmente avançados”, como a França, havia PCs no mesmo nível teórico que o PCB. E segundo, o país não era tão carente de intelectuais quanto se pensava, mesmo dentro do “Partidão”, onde grassava sua subestimação “obreirista” e acrítica, em especial pela política de Arruda. (95) Malina, como razões críveis de tal ineficácia, reafirma o “obreirismo” sectário e a falta de uma tradição de pensamento e política socialistas no Brasil, o que é verdade, porquanto o arcabouço teórico marxiano, sobretudo em forma de traduções, chegou ao Brasil depois da estrutura cominterniana de PC. Lembra também que a época da reestruturação do PCB após a perseguição do Estado Novo coincidiu com o apogeu do stalinismo e do carisma de Prestes, então preso. (96) Talvez por isso, nos anos 1940-50, a publicação de livros marxistas pela Editorial Vitória quase omitiu Marx e Engels e fez abundarem Lenin e Stalin, que legitimaram uma política praticista e radical. (97)

Sempre se atribuíram os erros a influências “pequeno-burguesas”, e não à teoria, embora esta geralmente fosse não adaptada à realidade brasileira, mas decalcada de situações diferentes e imposta aos militantes aprioristicamente, como a tese staliniana dos países coloniais e dependentes. O comunista, embora se julgue mais “realista” por dominar a “ciência marxista-leninista”, tende a rejeitar a priori o que não se encaixe em seus dogmas e atribui os erros à má aplicação da teoria à realidade brasileira. Destarte, o poder de mudança e de proposição de soluções foi travado no PCB pela falta de conhecimento dos brasileiros e seus problemas, que eram suas condições primordiais. (98) O personalismo prestista e a eterna busca por estar no centro da política cegaram o PCB às questões vitais da sociedade e às reivindicações das massas, enquanto a máquina partidária, ao servir de meio de ascensão de status a operários, tê-los-ia acomodado no conservantismo. O paradoxo do PCB sempre será dizer-se “partido da classe operária”, mas tentar corresponder aos interesses de um número maior de setores da sociedade e dar-se a acordos e conchavos de cúpula de acordo com as conveniências, adaptando-se aos ditames do jogo político-partidário a fim de ganhar mais terreno. (99)

Também geraram fracassos as propostas vagas, a divisão das forças e os compromissos com as classes dominantes. Com efeito, em detrimento do proletariado, a liderança de Prestes teria marcado o domínio da pequena-burguesia radical, enquanto a mostra de mais penetração na classe média, nos anos 1950-60, supostamente ajudaria a legalização. (100) Porém, mesmo com essa formação de classe, as concepções tidas como “golpistas” não teriam vindo dos comunistas militares, como largamente se pensa, mas da cópia do modelo insurrecional cominterniano. (101) O privilégio da questão nacional à democrática, sobretudo após 1960, também marginalizará as iniciativas autônomas das classes subalternas e do operariado, tomando a democracia mais por um viés instrumental e escasseando seus períodos de inserção de massas, porquanto nunca se abandonou de todo a visão do PCB como “filial da revolução mundial”. Tal visão da democracia subestimará as eleições – vistas de modo oportunista para obter benefícios de outros grupos (tal como estes queriam com o “Partidão”) –, a luta pela desestatização das entidades dos movimentos sociais e a vivência real da experiência democrática. (102) Nas eleições, realmente, a constante incoerência entre a filosofia partidária e os candidatos apoiados para o executivo poderia ser explicada pela “venda” de votos combinada com os políticos (103) ou pela escolha do concorrente “menos ruim”, chegando, como foi no caso do Paraná em 1955, a apoiar-se o “grileiro” Moisés Lupion, apesar da oposição inicial dos “posseiros”. (104) A ênfase na luta por um socialismo assumido como “distante” gerou despreparo para o processo político imediato e deixou o partido dependente dos aliados, trocando as massas pelos sindicatos na aplicação da linha política e marginalizando nestes a luta pelos interesses operários imediatos. (105)

A peça “A semente”, escrita por Guarnieri em 1961, resume alguns traços do PCB no período, como o dilema entre as soluções “radicais” e “de cabeça fria”, nenhuma delas resolvendo a paralisação das atividades nas bases e nas fábricas, e a dedução de “traidores” como necessidade de afirmação de dirigentes arrogantes e falsamente eruditos. A colocação da política em todos os acontecimentos e a exigência da “renúncia de si” interferiam na vida privada de militantes que, se titubeassem, seriam “pequeno-burgueses” distanciados do ideal de “revolucionário” imposto pelo partido. A obra denuncia ainda o nacionalismo “de fachada” do exército e dos grandes capitalistas, que esconderam das esquerdas, sobretudo dos comunistas largamente influenciados pela ideia de “burguesia nacional revolucionária”, seus interesses particularistas e “reacionários”. (106) Ressaltam-se em um primeiro olhar sobre a natureza funcional do PCB o conflito entre o discurso democrata e a falta de democracia interna; a reivindicação da liderança operária convivendo com o apoio a setores de burgueses e latifundiários; e a atribuição dos erros a fatores externos, quando a própria tática professada foi criada para situações distintas. A “desestalinização” (entre aspas – ao contrário do título original da pesquisa –, vistos todos os seus limites aqui estudados) acordou o partido para as diferenças entre o Brasil de Eurico Dutra (“Manifesto de Agosto”) e o de JK e levantou aquelas contradições, escamoteadas, contudo, no afã de torná-lo um partido “como os outros”.


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Periódicos:
Voz Operária, janeiro de 1956 a fevereiro de 1959.
Novos Rumos, fevereiro de 1959 a outubro de 1961.
Novos Tempos, setembro de 1957 a maio de 1958.


Perspectivas de continuidade ou desdobramento do trabalho: A continuação do trabalho é certa na execução da monografia do bolsista, talvez possível na pós-graduação. Muito do material obtido ainda ficou sem análise, e seu emprego poderia enriquecer a compreensão do tema, o que foi inviável nesta iniciação devido à magnitude da ideia. Com efeito, o estudo do período ajuda a entender a atuação e tática pecebistas nas décadas posteriores e o dilema que oporá a valorização da democracia “burguesa” ao caminho das soluções “radicais”. Sendo a ciência histórica um reflexo do tempo de sua produção, cabe recordar que hoje o estudo dos partidos e regimes comunistas escasseia-se entre os pesquisadores mais jovens, talvez como reflexo da menor militância nessas agremiações, ou mesmo em partidos tout court. Olvidar o papel dos comunistas na luta por um Brasil melhor terá talvez o mesmo efeito de um suposto esquecimento dos grupos minoritários hodiernos nos futuros estudos sobre a época atual. Também a dúvida “reforma ou revolução?”, que por vezes deságua na pergunta “transigência ou sectarismo?”, ainda permanece em setores das esquerdas contemporâneas, tanto em seu programa quanto em sua prática cotidiana, por isso sendo atual a reflexão sobre a democracia interna dentro dessas agregações.

Apoio: Esta pesquisa foi estipendiada pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Agradecimentos: Sou grato ao PIBIC/CNPq, que financiou a pesquisa; a meu orientador, Dr. Claudio Henrique de Moraes Batalha, que reservou seu tempo livre para ajudar-me; a Dainis Karepovs, que lecionou instrutiva matéria relativa ao PCB no 1.º semestre; aos funcionários do Centro de Documentação e Memória da Unesp e do Arquivo Edgard Leuenroth, por sua paciência e inestimável auxílio; e a minha família, cuja ajuda moral tornou o trabalho mais ameno e prazeroso.

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Notas (clique no número pra voltar ao texto)

(1) Texto redigido conforme as normas da Reforma Ortográfica vigente no Brasil desde 1.º de janeiro de 2009.

(2) Santos 1988 e 2003; Costa 1976; Segatto 1995.

(3) Santos 1988:35-39 e 44-45; “IV Congresso do PCB (dezembro de 1954 a fevereiro de 1955)”. In: Carone 1982:128 e 131-134; Pacheco 1984:204.

(4) Chilcote 1982:106-107 e 114-115; Costa 1976: 35-36 e 48.

(5) Santos 1988:71-74; “Projeto de programa (dezembro de 1953)”. In: Carone 1982:116-117.

(6) Santos 1988:48, 51-52, 54-55, 58-60, 62 e 80.

(7) Santos 1988:88; Santos 2003:230-231.

(8) Santos 1988:88-9 e 91; Segatto 1995:41-2; Santos 2003:230-1; Luiz Carlos Prestes, “A situação atual, a tática e as tarefas do Partido Comunista” (informe apresentado em nome do Presidium ao Pleno Ampliado do Comitê Central de janeiro de 1956); “Manifesto do CC do Partido Comunista do Brasil”; Diógenes Arruda, “Todo o Partido na ação política de massas”, os três textos em VO, 18/2/1956.

(9) Eric J. Hobsbawm, “O marxismo hoje: um balanço aberto”. In: idem 1991b:20; Elleinstein 1975:93-95; Arruda 1978:394.

(10) Franz Márek, “A desagregação do stalinismo”. In: Hobsbawm (Org.) 1991a:307-308; Alexander Adler, “Política e ideologia na experiência soviética”. In: Hobsbawm, 1991b:136-137; Reis Filho 2003:122; Chambre 1967:49, 55 e 59.

(11) Alexander Adler op. cit.:155-156; Elleinstein 1975:96-100; Werth 2001:434; Isaac Deutscher, “A Rússia em transição”. In: idem 1968:58; Reis Filho 2003:123-124; Reis Filho 1997:198-202; Konder 1980:98.

(12) Santos 1988:99-102, 104-105, 109 e 113-114; Santos 2003:233-235; Segatto 1995:49-50; Falcão 1988:445-446. Pode-se ler o informe de Togliatti em Denis et al. [1956].

(13) Segatto 1995:48-49; Vinhas 1982:178; Reis 2007:88-89; Falcão 1988:445-446; Peralva 1960:216 e 294-295.

(14) Peralva 1960:254-255 e 258; Pacheco 1984:209-210.

(15) Santos 1988:114-116; Pacheco 1984:213-214.

(16) Projeto de Resolução do CC do PCB “Sobre os ensinamentos do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, o culto à personalidade e suas consequências, a atividade e as tarefas do Partido Comunista do Brasil”. In: Carone 1982:143-154; Santos 1988:116-117; Santos 2003:236-237.

(17) Armando Lopes da Cunha, “O programa e os caminhos de desenvolvimento do Brasil”, VO, 27/10/1956; Quintino de Carvalho, “O Partido não é tudo”, VO, 3/11/1956; Osvaldo Peralva, “Sobre os direitos da minoria”, VO, 10/11/1956; Nelson Rezende, “O partido – um organismo vivo e atuante dentro da realidade”, VO, 17/11/1956; Agostinho de Carvalho “O partido é tudo”, VO, 17/11/1956.

(18) Santos 1988:139-140, 142-143 e 148-149; “Reuniu-se o Comitê Regional Piratininga do PCB: Aprovadas medidas de democratização da vida interna do Partido Comunista”, VO, 10/11/1956; “Declaração do Comitê Regional do Ceará do PCB sobre o culto à personalidade e seus reflexos na atividade do partido”, VO, 24/11/1956.

(19) Denis et al. [1956].

(20) Santos 1988:134-135; Segatto 1995:56-57; Chambre 1967:51.

(21) “Importante carta de Luiz Carlos Prestes ao CC do PCB sobre o debate político”. In: Carone 1982:154-159.

(22) Barata 1978:322-323; Santos 1988:125-126; Reis 1990:36.

(23) Paulo Pio da Silva, “Disciplina e unidade, fatores principais para a vitória”, VO, 24/11/1956; “Resolução do CC do PCB”, VO, 1/12/1956; Luiz Ghilardini, “Algumas considerações sobre a resolução do C.R. Piratininga”, VO, 1/12/1956; Ernesto Luiz Maia, “A carta de Prestes e o debate”, VO, 8/12/1956; José Gorender, “Quando o Partido é tudo”, VO, 8/12/1956; Hércules Correia dos Santos “Minoria e maioria (carta a Osvaldo Peralva)”, VO, 29/12/1956.

(24) Santos 1988:157-161.

(25) Santos 1988:135; Vinhas 1982:180; Pacheco 1984:212-213; Basbaum 1976:234-239; Peralva 1960:320.

(26) Santos 1988:162-164; Chambre 1967:60-61; Madeira 2006.

(27) Carlos Marighella, “Carta de Prestes e o internacionalismo proletário”, VO, 5/1/1957; João Amazonas, “As massas, o indivíduo e a história”, VO, 26/1/1957; Agildo Barata, “Pela democratização do Partido”, VO, 2/2/1957 (a datação de 27/11/1956 ao final sugere o engavetamento de artigos “renovadores”, ao qual se referirá mais à frente); João Amazonas, “Salvaguardar a unidade do partido, primeiro dever do comunista”, VO, 2/2/1957; Pedro Pomar “O XX Congresso e os nossos debates”, VO, 9/2/1957; Agildo Barata, “Pela renovação e o fortalecimento do partido”, VO, 6/4/1957. (Este, também publicado em Novos Tempos, n. 1, set. 57, pp. 42-7, embora assinado por Barata, é um trabalho coletivo à guisa de “plataforma da maioria do grupo renovador do Rio”, segundo Peralva 1960:323.)

(28) Santos 1988:183-187.

(29) As duas Resoluções estão em Carone 1982, respectivamente pp. 160-165 e 165-175.

(30) Santos 1988:193; Chilcote 1982:120-121.

(31) Peralva 1960:322; Santos 1988:199-202; Costa 1976:130.

(32) Santos 1988:173-174 e 177-178; “Resolução sobre a UJC”, VO, 27/4/1957.

(33) VO, 1/6/1957.

(34) Segatto 1995:63-65 e 69-72; Santos 1988:205-206 e 210; Santos 2003:250-251.

(35) Santos 1988:211-212; Chilcote 1982:118-119. O nome “grupo baiano” provém do grande número de baianos no CC, fato que Basbaum 1976:233-234 ironiza ao dizer que não havia comunistas no estado porque todos iam ao Rio de Janeiro e entravam naquele órgão. A existência desse grupo é refutada por Gorender 2003a:35-36, alegando que seus “membros” possuíam divergência de ideias; cabe lembrar que o próprio historiador era soteropolitano, e a negação do conjunto parece interessante para quem quer omitir suas ações ocultas e astuciosas.

(36) José Antonio Segatto, “Apresentação”. In: Santos 1988:II-III; Santos 1988:217; Chilcote 1982:189-190; Pacheco 1984:213-214.

(37) Pacheco 1984:216-217.

(38) VO, 27/7/1956. Conforme Prestes, em depoimento para D. Moraes & Viana 1982:129, Arruda era “stalinista convicto que mudara de posição da noite para o dia, após tomar conhecimento do famoso relatório Kruchev [sic].”

(39) Santos 1988:214-215.

(40) Santos 1988:218-219. Parece plausível dizer que Barata teria sido usado como “bode expiatório” para satisfazer a constante necessidade de achar e exemplarmente culpar “traidores” sem causar grande sangria de quadros.

(41) VO, 7/9/1957. O documento encontra-se também em Carone 1982: 320-325.

(42) Santos 1988:219-220; Segatto 1995:73-74.

(43) “Pelo fortalecimento do Partido Comunista”, VO, 14/9/1957; “O sentido fundamental da nossa autocrítica”, VO, 21/9/1957; “Novas soluções para a crise que ameaça”, VO, 19/10/1957. Aparentemente a direção, em público, enfatizava o “dogmatismo”, enquanto na prática, para evitar os “fracionismos”, sublinhava o “revisionismo”.

(44) Gorender 2003a:29.

(45) Eric J. Hobsbawm, “O marxismo hoje: um balanço aberto”. In: idem 1991b:20-22 e 48; Antônio Albino Canelas Rubim, “Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil”. In: J. Q. Moraes (Org.) 2007:374-375.

(46) Santos 1988:229 e 240-241. Alguns “renovadores” também fundaram o semanário O Nacional, mas não só as referências a ele na bibliografia são escassas, como não foi possível o acesso a uma quantidade suficiente de exemplares.

(47) Evaldo Martins e Pedro Salústio, “Que é a Corrente Renovadora?”, Novos Tempos, n. 1, set. 1957, pp. 14-18 e 22.

(48) Chilcote 1982:121-123; Costa 1976:131-132; Barata 1978:358-360.

(49) Eros Martins Teixeira, “Nossa revolução” (2 partes), Novos Tempos, n. 1, set. 1957 (pp. 23-29) e n. 2, out.-nov. 1957 (pp. 20-27); Osvaldo Peralva, “O caráter popular do nacionalismo brasileiro”, Novos Tempos, n. 3, dez. 1957, pp. 42-7; Ruy Fausto, “A burguesia nacional e as tarefas da revolução no Brasil”, Novos Tempos, n. 6, maio 1958, pp. 26-9.

(50) Basbaum 1976:239; Santos 1988:255-260 e 270. Basbaum defende a ideia em “Por um novo partido da classe operária”, Novos Tempos, n. 5, mar. 1958, pp. 29-33. Raimundo Schaun e Hélio Oliveira, “Caminhos da renovação socialista no Brasil”, Novos Tempos, n. 3, dez. 1957, pp. 36-39, reprovam a formação de partido novo e preferem entrar em todos os movimentos de esquerda, mantendo independência e fidelidade a um programa comum.

(51) Franz Márek op. cit.:308-309; Fedenko 1965:172-173; Werth 2001:438-440. Em 4/1/1958 a VO publicou resolução, datada de dezembro, de apoio à Declaração e lançou o próprio texto da Declaração em suplemento do dia 18.

(52) Alexander Adler op. cit.:155-156.

(53) VO, 18/1/1958.

(54) “Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro”. In: Carone 1982:176-196; José Antonio Segatto, “Apresentação”. In: Santos 1988:III-IV; Chilcote 1982:123-124; Segatto 1995:78-79; Vinhas 1982:181.

(55) Marcuse 1984:74-78; Chaves Neto 1956:59.

(56) Chilcote 1982:116-117; Toledo 1986:225, 238 e 240. Prestes, para D. Moraes & Viana 1982:156, qualificando a posteriori essa linha como “direitista”, informa que “Nós saímos de uma posição esquerdista para cair no desenvolvimentismo do ISEB [...].”

(57) Gorender 2003b:305.

(58) Celso Frederico, “A política cultural dos comunistas”. In: J. Q. Moraes (Org.) 2007:338-340; Pacheco 1984:217-218.

(59) Neruda 2002:274-279.

(60) O documento pode ser encontrado também em Carone 1982:196-202.

(61) Fedenko 1965:9-12, 150-155, 161-163 e 179; Werth 2001:447-450; Reis Filho 1997:201-202; Isaac Deutscher, “O fracasso do kruschevismo”. In: idem 1968:154-156.

(62) L. C. Prestes 1959. Aparentemente o mesmo documento foi publicado, com ligeiras modificações, como suplemento da VO de 31 de janeiro, sob o título “A situação política e a posição dos comunistas”.

(63) Antônio Albino Canelas Rubim, “Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil”. In: J. Q. Moraes (Org.) 2007:392-394.

(64) Segatto 1995:83-84. Os Projetos de Teses e de Estatutos foram publicados em suplemento dos NR de 15-21/4/1960.

(65) NR, respectivamente 22-28/4, 29/4-5/5 e 6-12/5/1960; 6-12/5/1960; e 10-16/6 e 17-23/6/1960.

(66) Jacob Gorender, “Presença de Lênin”, 22-28/4/1960 (o tema do “retorno a Lenin” é brevemente comentado em Chambre 1967:49-50); Mário Alves, “As bases falsas de uma linha falsa”, 20-26/5/1960; Hércules Corrêa Reis, “Teses, atuação e Estatutos”, 3-9/6/1960; Diógenes Arruda, “Compreensão autocrítica da nossa política” (2 partes), 3-9/6 e 10-16/6/1960; Giocondo Dias, “Partido de ação e direção coletiva”, 24-30/6/1960.

(67) Caio Prado Jr., “As Teses e a revolução brasileira”, dividido em sete partes distribuídas nas edições de 10-16/6, 17-23/6, 24-30/6, 1-7/7, 8-14/7, 15-21/7 e 22-28/7; Segatto 1995:91-92.

(68) A “Resolução Política” pode ser encontrada nos NR, 16-22/9/1960, em PCB: Vinte anos de política – 1958-1979 (documentos), pp. 39-69, ou em Carone 1982:209-227. Cabe pensar se a pretensão de não depender “só dos imperialistas” não aponta para uma desejada “dependência da URSS” que aumentaria o prestígio do PCB, e se lutar por “reformas” com uma linha que se pretende “antirrefromista” é um mero lapso dos redatores.

(69) Segatto 1995:93-100; Reis 1990:24-26; Konder 1980:106-107; Chilcote 1982:123-125.

(70) “Partido Comunista Brasileiro: Manifesto, Programa, Estatutos”, NR (Suplemento), 11-17/8/1961 (a capa leva um enorme retrato de Prestes); “Em defesa do Partido” (Carta dos Cem), 2002; Chilcote 1982:125-127; Rodrigues 1981:440.

(71) Santos 1988:21 e 250-252; Rodrigues 1981:429.

(72) Segatto 1995:103-104.

(73) José Antonio Segatto, “Apresentação”. In: Santos 1988:II; Santos 1988:14, 17-18 e 263-265; Segatto 1981:75; Segatto 1995:17-18 e 28-29; “Comentário de Daniel Aarão Reis Filho”. In: Garcia (Org.) 1986:47.

(74) José Antonio Segatto, “Apresentação”. In: Santos 1988:IV-V; Konder 1980:127-130.

(75) Barata 1978:349.

(76) José Antonio Segatto, “Apresentação”. In: Santos 1988:V; Pandolfi 1995:64; Mazzeo 1999:86-87.

(77) Santos 1988:14-15; Rodrigues 1981:440.

(78) Carlos Alberto Dória, “O dual, o feudal e o etapismo na teoria da revolução brasileira”. In: J. Q. Moraes (Org.) 2007:259-62.

(79) Cunha 1994:54-55, 57, 73-74 e 79-82.

(80) Alexander Adler, op. cit.:159-60; Isaac Deutscher, “O significado da desestalinização”. In: idem 1968:30-31.

(81) Chilcote 1982:32, 34-35 e 103; Segatto 1995:26; A. L. Prestes 2007:85; Mazzeo 1999:82; Reis 1990:84-87; Loner 1985:37.

(82) Basbaum 1976:209-214.

(83) Rodrigues 1981:434, nota 173.

(84) Claudín 1986:631, nota 25; Peralva 1960:294-295.

(85) Santos 1988:266-267; Segatto 1995:102-103; Loner 1985:54-55.

(86) Brandão 1997:222-229; “Exposição de Daniel Aarão Reis Filho”. In: Garcia (Org.) 1986:25-30.

(87) “Comentário de Maria Victória Benevides”. In: Garcia (Org.) 1986:32 e 35.

(88) Pandolfi 1995:128-136; Peralva 1960:264; Loner 1985:175-176.

(89) Como faz Gorender 2003a:30, que afirma ter o líder se escondido para mistificar-se ainda mais.

(90) Como faz A. L. Prestes 2007:92-93, que acusa o dirigente de ter sido o principal mecenas do isolamento de Prestes.

(91) Lukács 1977:1-2 e 6-11.

(92) Santos 1988:23; Chilcote 1982:172-173; Pandolfi 1995:73.

(93) Vinhas 1982:180.

(94) Santos 1988:29; Chilcote 1982:208-210.

(95) Loner 1985:47-53.

(96) Malina 1981:39 e 49-50.

(97) Antônio Albino Canelas Rubim, “Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil”. In: J. Q. Moraes (Org.) 2007:407-408 e 437-439.

(98) Santos 1988:41-42; Pandolfi 1995:40 e 43; Konder 1991:57.

(99) Chilcote 1982:304-306; Pandolfi 1995:12-13; Konder 1991:82.

(100) Chilcote 1982:254-255 e 301-302.

(101) A. L. Prestes 2007:79-80.

(102) Segatto 1995:206; Brandão 1997:49-53 e 188-190; Reis 1990:139-142.

(103) Rodrigues 1981:422, nota 149.

(104) Bezerra 1979:124-125.

(105) Corrêa 1980:148-149; Rodrigues 1981:419-420.

(106) Guarnieri 1978, sobretudo pp. 16-23, 34-38, 54-59, 67-70, 78-95, 110-113, 133-138 e 140-141.