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O historiador contemporâneo deve estar ciente de que a arte, em suas mais variadas manifestações, pode servir, em vários casos, como preciosa fonte para o estudo de uma época ou de um espaço físico, seja uma pequena localidade, uma região, um país ou mesmo um continente inteiro. Produções literárias ou plásticas consideradas como obras-primas de seu tempo, ou mesmo, em certas situações, obras pouco conhecidas, mas levadas à luz pelo historiador, costumam servir como um instrumento muito útil para se conhecer o contexto no qual foram produzidas. Em tempos mais recentes, aparecem também, como recursos importantes para um contato maior com o passado, manifestações concentradas na comunicação sonora ou na junção de som e imagem, como o cinema e a televisão. Aí desempenham importante papel formas mais avançadas tecnologicamente de registro da informação, como, num primeiro momento, o disco de vinil e a fita magnética e, mais atualmente, o CD, os programas de computador e a internet. Por descreverem vários aspectos da vida cotidiana ou mesmo das ocasiões políticas que costumam passar despercebidos ou mesmo não foram considerados como passíveis de entrar para o rol dos “acontecimentos históricos”, todas essas produções mencionadas preenchem lacunas frequentemente encontradas na “historiografia oficial”. No século 20, presenciou-se grande esforço em completar tais vazios que deveriam tratar de temas marginalizados pelos historiadores, o que foi feito em especial pela maior amplitude dada à noção de “documento”: ele não seria mais o produto das instituições ou pessoas às quais supostamente estaria reservado o papel de protagonistas da história, mas qualquer produção legada pelos antepassados que pudesse ajudar a reconstituir sua vivência e o meio físico e temporal no qual se encontravam, ou parte deles.
Diante das presentes idéias, torna-se mais fácil atribuir às obras do senegalês Ousmane Sembène, sejam literárias ou cinematográficas, o caráter de documentos muito valiosos para a compreensão de seu país no período em que foram produzidos, sobretudo a partir da década de 1960. Nesse decênio, fazia-se deveras presente o impacto da descolonização, ou seja, a independência da maior parte dos países africanos perante o domínio colonial europeu, fato determinante para implicar o dever dos novos países de seguir seus próprios rumos e tomar suas decisões por si sós. O novo status da população africana colocava na pauta do dia o problema do choque, que há muito se fazia presente, entre a cultura africana e o modo de vida europeu, entre as tradições seculares que acompanhavam aquelas pessoas e a modernidade das instituições e dos meios de comunicação e transporte. Para tentar mostrar tamanha problemática relativa ao seu povo e seu tempo e propor soluções respeitantes do “jeito africano de ser”, Sembène lançou-se como um artista visionário portador de uma “função social utilitária” e produtor de criações que, segundo seu desejo, devem permanecer intemporais. (1) Sua obra, pois, tem a intenção de servir ao povo, já que, na concepção do artista, ela porta uma mensagem social dirigida tanto a privilegiados quanto a espoliados, na intenção de passar chamados que despertem para a mudança na sociedade e no modo como as pessoas relacionam-se umas com as outras. Acrescenta-se também a função de “parábola” de sua produção, que lança ao passado questões que afligem o presente daquele que a cria e daquele que a frui, e pode servir mesmo como fonte de indagações para os leitores ou espectadores de tempos posteriores ao surgimento dos livros e dos filmes.
Com essa intenção social e questionadora, Ousmane Sembène escreveu o romance Xala, publicado em 1973, e produziu depois, baseado no livro, o filme de mesmo nome. O enredo centra-se na figura de El Hadji Abdou Kader Bèye, comerciante senegalês muçulmano que sofre o xala (feitiço que tem por objetivo quebrar a potência sexual de alguém) após seu terceiro casamento, e na tentativa desse homem de livrar-se do mal que lhe foi infligido. A ocasião serve de pretexto para a mostra de problemas culturais, sociais e até mesmo linguísticos que perpassam o Senegal nos primeiros tempos após a conquista de sua independência perante a França, em 1960. A exibição das dúvidas e choques originados da oscilação entre a Europa e a África por parte das classes dominantes critica duramente o futuro que tais grupos decidiram traçar para seu país e procura sugerir uma solução que leve em conta, acima de tudo, as especificidades dos que aí sempre viveram. Além dessa oscilação cultural realizada de acordo com as conveniências de quem a vive, o presente ensaio procurará mostrar também como o enredo trabalha a exclusão linguística promovida pela política francófila do primeiro governo senegalês pós-colonial e sugere o papel fundamental que a mulher africana possui nos novos tempos. O destaque das diferenças entre o filme e o romance deverá permear a análise, a fim de mostrar uma distinção de objetivos e de mensagens que os dois formatos de Xala possuem e levantar outras questões sociais e culturais que essas diferenças possuem por pano de fundo.
A alegoria de Senghor, os problemas do Senegal e a crítica à ideia da “civilização universal” – Como obra política e social, e devido às contrariedades que Ousmane Sembène possuía com o governo do Senegal da época da escrita do romance e da produção do filme, Xala não poderia prescindir de criticar o regime político vivido pelo país e o homem que o comandava, Léopold Sédar Senghor, a quem é importante entender para detectar o jogo realizado pelo cineasta e escritor. O primeiro líder do Senegal independente, antes de assumir o poder, viveu por um longo tempo na França, onde fez uma boa porção de seus estudos superiores e começou sua carreira política como deputado da Assembléia Nacional francesa. Além de político, foi também escritor e poeta, produzindo sempre em francês, o que lhe colocou no panteão dos principais autores da francofonia africana. El Hadji, assim como Senghor, é uma pessoa que oscila entre os mundos africano e europeu, vivendo entre duas culturas, muito distintas material e linguisticamente. É interessante o uso que se faz da biculturalidade, pois os dois homens nunca fundem as duas tradições, mas saltam de uma para outra quando isso melhor lhes convém, já que uma cultura será melhor que a outra para encarar esta ou aquela situação. (2) Pode-se ver muito bem que El Hadji e Senghor, mesmo assumindo ser biculturais, preferem a Europa em sua vivência cotidiana, o segundo devido à sua naturalização francesa, e o primeiro devido a uma série de situações retratadas em Xala, como o consumo de água, comida, roupas e outros bens de origem européia. O personagem do romance também revela pouca adaptação para a cultura africana, devido às suas constantes atitudes europeizadas e apesar de seu passado infantil ser povoado por mitos e crenças locais, colocando-se como em becos sem saída todas as vezes que precisa deparar-se com ela. (3) Não se pode deixar de lembrar, porém, que o esforço dos franceses negros de parecer pessoas totalmente assimiladas e o das mulheres em casar-se com um branco metropolitano foram traços marcantes da população nativa do Senegal na era colonial, esforço que ainda pode ser encontrado em El Hadji. Esse esforço, todavia, chega a beirar o ridículo, pois em muitas situações em que o negro tenta passar-se por europeu, seu lado africano faz grande pressão sobre ele, lançando-o em situações constrangedoras. (4) Afinal, como afirma Yay Bineta, tia de N’Goné, “Tu não és um tubab!” (europeu), referindo-se ao novo marido da sobrinha. (5) A queda pela Europa é transparente na cena em que o protagonista, curado de seu xala, dirige-se à casa de N’Goné, a terceira esposa com a qual se casara recentemente, para finalmente consumar seu casamento, mas é informado de que a moça está no período da menstruação. No caso do romance, El Hadji, abatido e necessitado de aplacar suas necessidades sexuais, não se dirige à casa de Adja Awa Astou, a primeira esposa, mas à de Oumi N’Doye, a segunda, com a qual de fato pratica o sexo. (6)
Não se pode entender o que representa a cena sem a ciência dos significados carregados pelas duas primeiras esposas de El Hadji. Adja pode ser vista como uma encarnação do Senegal tradicional, muçulmano, falante preferencialmente do uolofe, resignado com a dominação masculina e seguidor dos costumes. É uma resignação e uma submissão que nascem das circunstâncias difíceis, pois Adja, por exemplo, em nenhum momento após o terceiro casamento de El Hadji pensa em divorciar-se do marido, pois teme não achar outro companheiro da mesma idade que ela e solteiro. São sentimentos acompanhados de uma grande piedade para com o próximo, com o qual sofre em conjunto, consequentes do seguimento à risca da religião, muçulmana no caso de Adja, que a usava, como Sembène parece mostrar, como uma espécie de droga, um subterfúgio para escapar à difícil realidade. (7) É uma África que está sendo abandonada, cujos rituais se tornam cada vez mais raros e desacreditados e são substituídos por hábitos considerados modernos, na maioria das vezes de origem européia, como também fica evidente na recusa de El Hadji a realizar o ritual com o pilão, proposto por Yay Bineta. (8) Quanto a Oumi, personagem-chave para entender parte da mentalidade do comerciante, trata-se de uma alegoria de um Senegal europeizado e francófono, modelo que Senghor, como presidente, distante do que falou como teórico e poeta humanista, tentou impor aos seus governados. Oumi é a mulher que se veste à européia, ouve rádio em francês, lê revistas femininas (em francês, é claro, vista a ainda incipiente produção escrita em uolofe, cuja maior expressão na trama é o jornal Kaddu), ama o luxo, a moda e a beleza corporal e não se cansa de arrancar dinheiro do marido. Tem propensão para a monogamia, ao considerar-se e tentar mostrar-se como a única esposa de El Hadji, e acredita em romances e “amores palpitantes” embalados por saídas noturnas, característica que se mostrará mais forte após abandonar o marido. (9) Tanto no filme quanto no romance, é visível sua mentalidade centrada na concorrência, que a levou a casar-se com El Hadji não por amor, mas por interesse em uma vida melhor, o que a leva a pensar que Adja foi quem arranjou o terceiro casamento simplesmente para atazaná-la. (10) Em outras palavras, é o abrigo europeu de seu marido, é a cultura do coração de El Hadji, na qual ele precisa imergir-se, esconder-se e recuperar suas forças nos momentos mais difíceis.
Transparecem também suas fugas para o lado africano em ocasiões como a preferência pelo islã como religião e a recorrência a curandeiros para livrar-se de seu xala, porém, é nítido o oportunismo de El Hadji quando ele opta por abrigar-se em seu próprio continente. Por ser muçulmano, o primeiro direito que o comerciante reivindica é o de casar-se mais de uma vez, até chegar na terceira esposa, que lhe proporcionaria maior notabilidade e boa reputação entre as pessoas que seguissem a mesma tradição. Ele também não prescinde da prerrogativa de exercer seu mando sobre as esposas e de demonstrar constantemente que o faz, tal como um “autêntico Africano” sempre procede, e não teria por que recusar um novo casamento que lhe aparecesse à vista, porquanto era um verdadeiro muçulmano. (11) É interessante como no filme, cujos espectadores privilegiados seriam os senegaleses, é passada a idéia de que El Hadji estaria casando-se por dever, como ocorre na cena em que o presidente da Câmara de Comércio, no início do filme, anuncia o terceiro casamento daquele membro do grupo. Também se encontra nessa versão, e não no livro, a fala em que, após a cerimônia, já no quarto dos noivos, Yay Bineta ordena a N’Goné que ela seja submissa ao marido, não eleve sua voz contra ele e faça-lhe todas as vontades. Em ambas as versões, há a cena anterior ao casório passada na casa de Adja, na qual Rama critica o acontecimento diante de seu pai, que lhe dá uma bofetada e ordena-lhe que faça suas “revoluções” em outro lugar. Porém, na película, aparecem mais duas falas de El Hadji, que mostra a importância guardada pela expulsão dos colonizadores que seu círculo promoveu e prega que a poligamia é um patrimônio religioso. De fato, a crítica às uniões múltiplas é menos presente no filme do que na obra literária, já que, como se verá mais adiante, o Sembène cineasta preocupa-se mais em instigar seus patrícios com uma forte crítica social do que com o apontamento de problemas nos costumes locais.
Voltando ao romance, o costume permite até mesmo uma situação irônica, na qual o dono de um restaurante francês frequentado por El Hadji afirma que a África, por permitir o casamento poligâmico, é um continente que sempre há de encontrar-se à frente da Europa. (12) É notável ainda o uso que El Hadji faz da poligamia como uma ótima ferramenta para satisfazer sua luxúria, sua sede por mulheres mais novas, com todo o frescor e o calor da juventude, e sua necessidade de se afirmar como homem viril, desejos que são, sobretudo, fruto de uma influência da cultura europeia. O próprio personagem pergunta a si mesmo se não fora esse o motivo que o levou à nova união, pois pairava sobre sua mente a dúvida sobre se ele realmente amava N’Goné: (13) afinal, como Oumi, no filme, adverte seu marido, ele não estaria mais na idade de domar uma potranca, visto que sua fama acabara. Com efeito, El Hadji não opta por divorciar-se das outras esposas basicamente pelo status que os múltiplos casamentos proporcionam, como já foi dito, e porque um divórcio seria um caminho muito oneroso e que lhe traria muitos problemas, como de fato ocorreu durante os acontecimentos finais da trama. Mesmo diante do xala que sofria com N’Goné, a separação seria algo que tiraria o rótulo de homem viril do comerciante e faria com que as despesas excessivamente vultosas do casamento tivessem sido em vão. (14) Mas por que a suposição da luxúria como algo de origem européia? Ora, o “sexo rei”, como o chamou Michel Foucault, emergirá no século 19 europeu, com a sexualidade tornando-se a tônica das relações sociais no continente e impregnando todos os discursos (15). Outros povos relacionar-se-ão muito diferentemente com o sexo, não se mostrando totalmente necessitados ou insaciavelmente sedentos dele, ele não impregnará quase totalmente suas relações sociais e discursivas. Por isso, pode-se dizer que o sexo como mediador social e, como se expressará claramente em El Hadji, a necessidade masculina de provar sua virilidade diante dos camaradas, além da justificativa ligada, sobretudo, à libido para casar-se pela terceira vez, são elementos essencialmente europeus.
O curandeirismo, por sua vez, mesmo constituindo uma prática amplamente difundida na sociedade senegalesa e que convive em harmonia com o islã, será uma ferramenta invocada por El Hadji apenas neste caso de extrema necessidade, quando o surgimento de outros caminhos para livrar-se de seu xala parece improvável. Na opinião de Sembène, e para seu desespero, a sociedade africana ainda crê em fetiches, e há aí dois fetichismos predominantes: o “fetichismo técnico”, que é o recurso à tecnologia européia, e o “fetichismo marabútico”, que exige o socorro aos marabutos, os praticantes das curas tradicionais. Para o cineasta, em uma sociedade que por séculos conviveu e dependeu de fetiches, eles não poderiam desaparecer tão rapidamente, mesmo com a importação de práticas mais “científicas”, como a medicina moderna. (16) Assim, quando El Hadji, que sempre zombou do xala dos outros, mas agora era também atingido, percebeu que não tinha como recorrer aos seus métodos preferidos, cedeu ao curandeirismo, mesmo não crendo nele, pois, como lhe dizia Yay Bineta, ele não era europeu, e por isso devia ter seguido seu conselho. (17)
A diferença entre o número de curandeiros que El Hadji consultou no filme e no romance e a linguagem usada em cada um para referir-se a eles mostram o tom da crítica de Sembène à má-fé dos mesmos e o impacto que o autor queria causar no grupo dos leitores ou dos espectadores. O romance, por ser voltado especialmente para ledores europeus, em especial àqueles que sabiam francês, a língua original da obra, possui uma crítica mais desenvolvida em relação às práticas tradicionais, das quais muitos curandeiros se aproveitariam para rechear os próprios bolsos. Percebe-se a ausência de eficácia desses profissionais quando o autor escreve que El Hadji procurou vários deles sem obter sucesso e quando os chama de “charlatães”. (18) O mesmo acontece em um trecho no qual Pathé, o futuro genro do comerciante, conversa com o médico-chefe do hospital em que trabalha sobre o xala do futuro sogro, ouvindo do superior a seguinte afirmação sobre o caso:
– [...] a ciência não é impotente. O que tem é zonas inexploradas. Além disso, estamos em África, nem tudo se pode explicar ou resolver com uma terapêutica bioquímica. O nosso país é o reino do irracional. Queres fazer o favor de te aproximares dele [El Hadji] mais frequentemente para saberes o que tem conseguido junto dos curandeiros? (19)
No excerto, é bem explícito o racionalismo professado por Sembène, que acredita na ciência como meio de explicação do mundo e torce para que os médicos estudem mais a fundo como certos problemas humanos são resolvidos pelos métodos tradicionais para que se possam elaborar remédios cientificamente elaborados. Entretanto, o cineasta sabe também que, mesmo que a ciência tenha conseguido suas próprias soluções para muitos males cotidianos, a população que possui pouco acesso, ou mesmo duvida dela, continuará a resolvê-los com aquilo que possui à mão. O autor também indica que a própria Rama ainda guardava essa dúvida, mesmo não sabendo o que a motivava dentro de si. (20)
Mais tarde, o último curandeiro ao qual El Hadji recorreu por indicação de Modu, o motorista, só obterá sucesso para mostrar ao leitor que tudo aquilo que é conquistado com facilidade, no fundo, é efêmero, e que a tentativa de ludibriar as pessoas sempre terá um final infeliz. Afinal, ao receber o cheque de El Hadji, o curandeiro lembra que aquilo que ele tirava, também podia voltar a pôr com a mesma rapidez, o que acabou concretizando ao descobrir que o comerciante lhe dera um cheque sem fundos. (21) Contudo, dizer aos senegaleses que o curandeirismo não funciona e que os seus praticantes são charlatães seria uma provocação a algo que lhes era caro, e por isso foram feitas algumas mudanças. Para não passar a idéia de ineficácia da prática, o número de curandeiros foi reduzido a dois, sendo o primeiro alguém que guardava certa distância de práticas que pudessem parecer muçulmanas e, por isso, sintetizava todos os curandeiros ineficazes aludidos no romance. Aquele que mais parecia aproximar-se da ritualística islâmica, com trajes e procedimentos que lembravam a religião praticada pela maioria dos senegaleses, foi o que conseguiu livrar El Hadji de seu xala.
Um dos pontos do pensamento político de Senghor, a quem Sembène criticou duramente por meio de Xala, é a pretensão de criar uma “civilização universal” para cuja formação todas as culturas deveriam contribuir com algo de bom. Para o cineasta, neste processo de encontro das culturas, não haveria apenas uma soma das coisas boas de cada povo, mas também das coisas ruins. O caso da poligamia é o melhor exemplo: mal adaptada ao meio urbano, ela torna-se fonte de divisão familiar e má formação dos filhos, ou seja, uma base frágil para uma sociedade que se pretende estável, e, na prática, apenas permite ao homem esbanjar dinheiro para tentar demonstrar riqueza. (22) Retornando ao caso de El Hadji, as duas esposas, em certo momento, sentir-se-ão como que rejeitadas pelo marido, que agora favorecia a nova companheira, e mesmo com esta as conversas serão escassas e a delicadeza na conversação, mínima. Sembène, ainda no romance, informa que os homens pertencentes à mesma categoria social do comerciante (notar a referência à mesma pela palavra “gentry” para facilitar a compreensão do leitor europeu) tendem a ver na esposa um simples instrumento de prazer e reprodução. Prescindir do carinho para com a companheira e usá-la para a simples afirmação da virilidade são atos compartilhados pelas culturas européia e africana, e poderiam ser elementos que, com o contato maior entre os povos pregado por Senghor, universalizar-se-iam. (23)
Um dos argumentos centrais de Xala, que é o choque existente entre as irreconciliáveis culturas africana e européia (como já dito, El Hadji não as funde), vai também de encontro à origem do universalismo de Senghor. O político vivia dentro de si a convivência pacífica entre o pensamento dos dois continentes, o que o levou a pensar que se poderia construir uma nova civilização resultante do diálogo entre “raças superiores” e “raças inferiores”, em cuja formação contribuiriam todas as classes sociais. Neste diálogo, também seria importante que não predominasse o cientificismo típico do colonialismo e promotor de tantas barbáries, mas a emotividade, que, sendo uma das principais características do povo negro, ajudaria a humanizar a ciência. Colaboraria também para essa humanização a arte, que, no fundo, possuía inspiração divina, já que “todos os seres humanos teriam brotado do seio de Deus via a Palavra ritmada”. (24) Para Sembène, contudo, a tentativa de realizar o encontro entre as duas visões de mundo só causa problemas, como demonstra El Hadji, que salta de um para o outro de acordo com a ocasião, constituindo um meio termo entre os negros que guardam as tradições e os negros mais europeizados, grupos que não travarão contatos entre si nem no filme nem no romance. O que mais se aproxima de um encontro entre os dois é a presença conjunta de Adja e Oumi no terceiro casamento do esposo, realizada ao fim de um tempo em que as duas se encontraram meras sete vezes e que durará apenas alguns minutos, encerrando-se com a volta de Adja para sua casa. Essa própria dificuldade de se misturar as duas culturas também mostra que o diálogo nunca foi a prioridade para os colonizadores e, por isso, seria ingenuidade pensar que todos aqueles que gozam de um status superior em sua sociedade ou no mundo, sejam negros ou brancos, cederiam gratuitamente suas posições em favor dos mais oprimidos. A arte de Sembène, ao contrário, também é mais racionalista, possui preocupações mais práticas e voltadas, sobretudo, para o social, opondo-se à emotividade da de Senghor, cujas inquietações sociais apareceriam apenas na teoria, e não na prática. É preciso lembrar ainda que se o racionalismo cientificista é uma característica européia, o que Sembène faz em suas criações é propor um outro racionalismo, baseado não em coisas da Europa, mas da África. Este argumento será melhor desenvolvido adiante, na interpretação sobre Rama.
Outras críticas que Sembène faz ao Senghor político podem ser decodificadas na diferença que existe entre a N’Goné do romance e aquela do filme. Neste, a moça mal fala, mal mostra seu rosto e atua em poucas cenas, sempre de forma passiva, em suma, sua atuação é apagada, o que representa a figuração de um futuro incerto, sem rosto e misterioso reservado ao Senegal, face ao país tradicional, materializado em Adja, e à nação europeizada, representada por Oumi. A mensagem aos compatriotas é clara: “não sabemos o que acontecerá ao nosso país, possuímos líderes impotentes que não sabem lidar com nosso porvir e o povo está assistindo passivo ao desenrolar dos problemas, sendo que é preciso que ele atue mais presentemente”. Todavia, o livro mostra uma jovem mais livre e ativa, que inclusive preocupa sua mãe com a possibilidade de engravidar de algum dos amigos com os quais frequentemente sai. (25) Já casado pela terceira vez, incomodado com os constantes pedidos feitos pela jovem, como aprender a dirigir, e pelo ápice das preocupações ocasionadas pelo seu xala, El Hadji não mais a considera como alguém que, como outrora, fazia-lhe fugir da monotonia rotineira e dava luz e cor à sua existência, mas como um peso, um fardo, uma “perseguição moral e física”. (26) Desta vez, o recado é outro, e dirigido aos europeus: a herança deste continente para a África deve ser vista como pesada, pois a luxúria de El Hadji, traduzida no terceiro casamento, já se tornava insustentável, era sem sentido e não cabia e nunca coube na realidade africana. Será que não era hora de as classes dominantes “caírem na real” e perceberem que não se estava na Europa para que elas se comportassem como europeus? A poligamia e a luxúria, destarte, eram dois erros de culturas diferentes e que, se houvesse uma “civilização universal”, com certeza caminhariam lado a lado contrabalançando com as benesses da junção das boas contribuições de cada cultura. Algumas páginas atrás, Sembène também expressa alegoricamente sua desilusão com o Senghor político, que possui um coração mais voltado para a França do que para seu país, mais voltado para a cultura francesa do que para a senegalesa, fato a partir do qual questiona: “Como pode alguém que tem três esposas e três vivendas ir dormir num hotel?”. (27) Sempre foi típico de Senghor favorecer a francofonia e abrigar-se nela para produzir sua literatura, porém a frase fará mais sentido após o fim de seu governo, quando ele saiu de seu país para viver na França, onde se tornou membro da Academia Francesa. Por isso, é um questionamento que ainda poderia perguntar, mesmo alguns anos após de sua colocação: como pôde Senghor, que assistiu a tantas fases do desenvolvimento de sua nação, prescindir de viver em sua terra natal, seu verdadeiro lar?
Há também uma divergência entre Senghor e Sembène no que tange ao uso da cultura e ao destino do Senegal pós-colonial. Senghor acreditava que a cultura seria o meio mais eficaz de operar mudanças em seu país, pois ela ultrapassaria as fronteiras étnicas e religiosas, não apoiando a via política por si só, pois, em sua concepção, os problemas políticos seriam automaticamente resolvidos pelo intercâmbio entre culturas. Seria a união cultural que proporcionaria a consolidação da chamada União Francesa, que reuniria a França e suas ex-colônias em pé de igualdade, para que o preço pago pela colonização não fosse distribuído apenas aos ex-colonizados, mas repartido também com a velha metrópole, e para que a África também pudesse desfrutar do que lhe foi espoliado pela Europa. (28) Sobre a cultura, Sembène não a defende como um instrumento de fusão entre culturas, mas como uma ferramenta auxiliadora na luta contra a opressão dos povos estrangeiros, frente aos quais os senegaleses deveriam formar uma identidade nova. Também saltam aos olhos o apoio a um Senegal independente, separado da França, pelo qual Sembène sempre lutara e cuja idéia continuava a defender, e uma crítica pesada à atuação dos líderes nacionais, em especial Senghor, que, representado na figura de El Hadji, exerceu vários mandatos presidenciais sem seguir o próprio pensamento escrito. Os líderes senegaleses eram corruptos, e o próprio cineasta lembra que, apesar de a evolução da qualidade de vida do povo africano ser bem maior do que a da burguesia, esta, por desviar para si metade do dinheiro do continente, enriqueceu bem mais. (29) No próprio romance, há a intenção de ensinar como o uso da malícia para a ascensão pessoal consegue obter apenas realizações efêmeras e como o modo burguês de proceder nos negócios é um meio falacioso e, tal como El Hadji, corrupto. (30) Além da questão da luxúria, pode haver outro motivo pelo qual El Hadji, fruto da colonização francesa, seja muçulmano, e que deve ser analisado por um viés político. Os franceses muçulmanos do Senegal possuíam grande poder de barganhar com os colonizadores, até que, na década de 1940, Senghor, para eleger-se deputado da Assembléia Nacional francesa, contou com o apoio das confrarias muçulmanas. Fortes parceiras da administração colonial, recebiam dela mais dinheiro do que os próprios fiéis somados, e por isso Senghor possuía as mãos atadas aos guias espirituais que lideravam tais confrarias. Por isso mesmo, a simbiose entre as confrarias e os colonizadores permitiu enorme expansão da religião muçulmana no Senegal. (31)
A exclusão linguística colonial e a crítica à francofonia de Senghor – Um dos problemas centrais dos países colonizados era a questão linguística, pois constituía regra o fato de as metrópoles implantarem aí um aparelho administrativo ao qual só poderiam ter acesso as pessoas que falassem o idioma do colonizador, como o francês, no caso da África Ocidental Francesa, na qual se localizava o atual Senegal. A primeira consequência dessa situação foi a criação de uma elite negra que, apesar de falar como língua materna um dos idiomas nativos que possuíam falantes na colônia, como o uolofe, recebia uma educação quase exclusivamente francófila (usa-se aqui esta palavra para indicar que havia assimilação não só linguística, mas também cultural). Como fica bem claro no filme e no romance, El Hadji é um dos frutos exemplares de tal processo, não só por sua paixão pela cultura francesa, já exaustivamente comentada no presente ensaio, mas também pela frequência com a qual utiliza a língua de Balzac. A segunda consequência da política administrativa colonial foi, consequentemente, a impossibilidade da participação da maior parte da população nativa, que não sabia francês, na máquina burocrática da colônia ou do desfrute, pelos falantes de línguas como o uolofe, dos direitos reservados à população assimilada. Os efeitos excludentes da imposição do francês como idioma de trabalho prolongaram-se até o surgimento da sociedade pós-colonial, como se pode notar em várias situações presentes no filme e no romance.
No caso da película, pôde-se expressar mais dinamicamente o bilinguismo do meio em que vivia El Hadji por meio dos diálogos nos dois idiomas que se intercambiavam, porém o livro não deixa de exibir fatos significativos, mesmo sendo seu único recurso intervenções do narrador que esclareciam que o personagem “disse em francês” ou “disse em uolofe”. Não são raras as ocasiões em que a primeira fórmula é utilizada em falas da segunda e da terceira esposa de El Hadji nas quais elas lhe prestam um favor ou serviço, indicando sua submissão ao marido, ou em situações nas quais pessoas autoritárias como Oumi desejam impor-se a alguém ou em alguma situação. Dito de outra forma, o francês protagoniza situações em que há uma explícita relação de dominação de alguém que se afina com a cultura européia e obriga ao uso de seu idioma um subordinado. (32) Quando o dominado é obrigado a expressar um acontecimento que constrangerá o dominador, ele também se vê acuado a usar o idioma deste, para que pareça mais eufêmico em sua declaração e, por ser um fato ligado também a quem o fala, diminua sobre si os efeitos da ira daquele que o recebe. Essa parece ser a explicação para o fato de N’Goné dizer ao marido em francês que não pode ter relações por estar menstruada, mesmo após ele se ter curado de seu xala. (33) A língua europeia também é utilizada pelos homens de posse, que, como já foi dito, são nela educados por pertencerem a uma elite dominadora restrita, e por isso, mesmo que reconheçam o uolofe como uma língua de intimidade e de familiaridade, têm dificuldades em praticá-lo devido à falta de uso. Como exemplo de tal situação, pode-se recorrer à conversa entre El Hadji e o subdiretor do banco ao qual o comerciante queria recorrer para obter um empréstimo, na qual o funcionário tenta falar em uolofe com o cliente mas, “Por defeitos da longa prática”, termina por expressar-se em francês. (34)
O caso mais emblemático de dominação linguística por meios burocráticos é a cena, aparecida apenas no romance, em que o guarda de trânsito pára a moto dirigida a toda velocidade por Rama e na qual também está seu noivo, Pathé. (35) Perguntada em francês sobre seus documentos, a jovem responde ao guarda em uolofe e finge saber falar apenas este idioma, ao que a autoridade questiona como ela conseguiu tirar a carta de motorista sem dominar o idioma europeu. O ato do policial de reconhecer Pathé como o médico que tratou de sua segunda mulher foi o que de fato ajudou Rama a livrar-se do embaraço, o que se nota bem na frase “Se não fosse ele tirava-te a carta de condução”. Porém, o assombro do guarda ao saber que ela teria obtido os documentos sem falar francês mostra a política excludente que restou do sistema colonial e que, como se verá adiante, foi imposta mesmo ao Senegal independente. Outra ocasião rica em significados e que, também apenas no romance, aparece antes da descrita acima, é a cobrança por Rama da multa ao seu noivo, na saída deste do hospital em frente ao qual ela o esperava, por ele ter falado em francês. Ambos pertencem a um grupo de língua uolofe, que tem por função divulgar e preservar o idioma e no qual os membros que se expressarem em francês devem pagar uma multa de natureza variada, como forma de estimular o uso do idioma nativo mais falado no Senegal. (36) Deve-se ligar aos incidentes outras duas cenas posteriores, presentes tanto no filme quanto no livro. A primeira é aquela na qual Rama se dirige ao escritório de seu pai para lhe informar que sua mãe precisava da presença do marido. (37) Contudo, a película guarda uma particularidade importante, que é o fato de El Hadji dirigir-se à filha em francês, mas ela responder apenas em uolofe, ao que o pai chega mesmo a questionar o porquê de ela fazer isso, mas sem obter uma resposta satisfatória. O mesmo ocorre na segunda cena, que mostra a reunião na Câmara de Comércio na qual os membros votam pela exclusão de El Hadji devido à mancha que sua corrupção estaria causando no órgão. (38) Somente no filme aparece o momento em que o comerciante tenta defender-se em uolofe, mas é impedido pelos colegas por “questão de ordem”, segundo a qual devem-se respeitar, naquele local, as regras da francofonia, até mesmo durante os insultos. Chega a ser uma situação cômica diante do fato de, no início do filme, esse grupo reivindicar sua africanidade, mesmo se afirmando como constituído por adeptos da modernidade.
Pode-se concluir daí a grande probabilidade de Sembène ter querido deixar a cena do guarda apenas para o livro, pois ela teria servido para mostrar aos europeus o autoritarismo que reveste o uso da língua francesa, além de retratar as difíceis situações nas quais o não falante do francês frequentemente se encontra ao deparar-se com a burocracia estatal legada pelos colonizadores. No romance, é Rama quem se encontra mais ferida pela exclusão linguística, justamente para fazer os leitores pensarem e se solidarizarem com o problema. A moça, além de aplicar a multa a Pathé por ele ter usado a língua da oficialidade, ato que provavelmente lhe dói no coração por indicar o abandono do uolofe que o multado estaria cometendo, é a vítima da repressão policial ocasionada pelo episódio da moto. Já as características que, no filme, revestem as duas situações posteriores interessariam mais aos senegaleses, aos quais seria agradável ver mostrada a questão das dificuldades de comunicação sofrida por eles cotidianamente e que nele assistem, desta vez, a El Hadji como vítima. No episódio do escritório, passa-se um agradável desafio realizado pela cultura popular, representada por Rama e sua defesa do idioma uolofe, à cultura das autoridades, encarnada em El Hadji e seu uso da língua francesa. Contudo, na última reunião da Câmara exibida na película, o comerciante é quem sente o gosto da exclusão, pois ele apresenta dificuldade em posicionar-se diante de uma situação extrema em uma língua que não lhe é materna, caso muito frequente em qualquer cultura, em qualquer ocasião. A virada que aí acontece, dos defensores da africanidade que se tornam arautos da francofonia, instiga os senegaleses a se insurgirem, seja apenas internamente ou também externamente, contra a repressão comunicativa da qual eles são vítimas.
O acontecimento da Câmara também pode ser interpretado como a armadilha causada pela exclusão linguística, armada pelo próprio El Hadji em seu cotidiano, ao priorizar o francês em sua relação com as pessoas, e na qual ele mesmo caiu. Em todo o seu cotidiano, o comerciante representou um Senghor que inseriu o Senegal no mundo da francofonia ao transformar o francês no idioma oficial do país, a despeito da maioria de pessoas que falam o uolofe. Apesar disso, ao tratar do estudo da realidade africana, Senghor chegou a defender o estudo das línguas desse continente, pois, nas palavras de Alain Pascal Kaly, o político julgava que “O domínio das línguas facilita sempre o diálogo entre pessoas e entre culturas”. (39) Até mesmo tal idéia será criticada por Sembène em Xala, pois tanto na versão literária quanto na cinematográfica não aparecem situações em que o domínio simultâneo do uolofe e do francês possibilite um diálogo entre as duas culturas, por três motivos. Primeiro: como já foi dito, os grupos que falam idiomas diferentes não se comunicam entre si, possuindo em El Hadji um meio-termo, pouco útil como intermediário. Segundo: na maioria das vezes, o multilinguismo (no caso de Xala, bilinguismo) é mais motivo de conflitos do que de acordos, como mostram os casos do guarda de trânsito (versão literária), da conversa no escritório de El Hadji e da expulsão do mesmo da Câmara (versão cinematográfica). E terceiro: em situações das quais o comerciante não possui controle, ele nunca escolhe o idioma que vai falar, adaptando-se a cada caso de acordo com a necessidade. Porém, mesmo a concepção universalista de Senghor possuía a limitação de considerar o francês como idioma de comunicação entre os diversos povos que deveriam compor a “civilização universal”, mantendo o status de inferioridade das línguas autóctones. (40) Senghor afirmava que usava o francês “para expressar seus sentimentos e emoções enquanto negro” por ser um “mestiço cultural”, (41) porém Sembène rejeitava transformar esse idioma em uma finalidade, ao contrário de Senghor, prática que se mostra visível nas canções em uolofe do filme, escritas pelo próprio cineasta. Na opinião de Sembène, todas as línguas são ricas, mas desde que se saiba usá-las, e por isso ele não deseja que seu país seja aprisionado dentro da francofonia. Por isso, considera que o uso que faz do francês não é uma escolha, mas a posse de uma ferramenta de comunicação com a qual ele transmite suas idéias. (42) A opção de Sembène, portanto, mostrada na crítica linguística que faz por meio de Xala, portanto, é o lamento pela manutenção do francês como idioma do Estado, de certa forma marginalizando o incentivo ao uso de outros idiomas, movimento contra o qual Rama lutará, como se verá adiante.
Rama como a encarnação do modelo de Senegal desejado por Sembène – Até aqui, o presente ensaio expôs a quantidade de problemas vividos pelo Senegal e que são traduzidos nos diversos elementos criados por Sembène em Xala, em especial o choque entre as culturas européia e africana, a adoção pelas elites de um modo de vida estrangeiro em detrimento da tradição africana, a indefinição do futuro do país, a exclusão linguística, entre outras coisas. O escritor e cineasta, como todo bom crítico social, não se limitou a apontar as falhas no processo de transformação que sua nação estava vivendo sob o comando de Senghor, mas, ao mesmo tempo, materializou seu sonho nas ações, no pensamento e no caráter da personagem Rama. A moça é a expressão da nova mulher africana, ligada às suas raízes e grata à sua tradição, independente, lutadora e ciente da importância de seu papel na sociedade. Pode-se notar, por tais características, a grande diferença que ela guarda em relação à própria mãe, que possui caráter piedoso, passivo e conformista, e aceitou mesmo carregar uma espécie de culpa pelo xala de El Hadji, mesmo sabendo que não era a responsável pelo feitiço. (43) Mesmo o uso que Rama faz da religião é mais pragmático, mais relacionado a uma identificação cultural e diferente daquele da mãe, que a usa para fugir de seus problemas, e daquele do pai, que se diz muçulmano, mas com o pretexto de dar vazão à sua luxúria por meio da poligamia. É interessante recordar que Sembène, apesar de possuir um modo racionalista de ver o mundo, também é muçulmano, ou seja, sua proposta pode muito bem ser a de fazer um uso mais racional da religião, e mesmo das práticas tradicionais, para que elas não sejam usadas para servir de instrumentos para fins pouco nobres relacionados ao proveito pessoal. Por designar-se uma “muçulmana moderna” que não aceita os casamentos múltiplos, (44) ela amplia tal diferenciação e lança a semente não só de uma nova mulher, mas também de um novo povo, tal como o concebe Sembène. Isso tudo também mostra o desejo de Sembène de criar uma nova racionalidade africana, que mesmo ligada nos progressos da ciência, não deve desligar-se dos benefícios culturais que o seu próprio continente pode trazer para proporcionar à tecnologia usos mais humanizados e coerentes com a realidade dos africanos.
Todavia, engana-se quem diz que Rama, assim como Oumi, é uma moça europeizada devido à sua independência, expansividade e cultura, pois o leitor ou espectador ocidental que toma tal atitude idealiza o próprio modo de vida como modelo universal de uma sociedade ideal. A vontade de liberdade feminina não é exclusiva da sociedade europeia, mas também está presente na sociedade africana e, sobretudo, no Senegal devido à importância, ao papel e ao poder que ela possui na educação dos filhos, (45) na cultura tradicional e na sustentação da economia. Conforme a crença que predomina na África Negra, a mulher possui um grande poder para mudar qualquer situação. (46) É por isso que Sembène afirma que a mulher africana evoluiu muito face à sua própria sociedade e em relação mesmo aos homens, no sentido de elas assumirem a economia local e sua própria independência. São esses motivos que dão, na opinião do cineasta, o papel de liderança às mulheres (47) e em cujo espírito Rama parece ter sido criada como personagem. Também é interessante o fato de a moça não estar junto de seu noivo por interesses financeiros, como Oumi, ou para satisfazer suas necessidades sexuais de modo prazeroso, como El Hadji, mas por afinidade, por vontade própria, uma liberdade que ainda era rara em seu país. Ainda assim, o Senegal não lhes oferece muitas oportunidades para ascender na vida sozinhas, devendo muitas vezes se rebaixar para que possam alcançar independência financeira. Por isso mesmo, Oumi, que por um momento pensou em divorciar-se de El Hadji após o terceiro casamento do marido, desistiu de fazê-lo ainda em pensamento. (48)
A divergência de interesses entre o leitor e o espectador também deve ser levada em conta no tocante à ideia da virgindade feminina, um dos maiores tabus das sociedades muçulmanas e determinante para a aceitação ou não da esposa pelo marido durante as núpcias. No livro, há uma constante dúvida da virgindade das jovens, tanto de N’Goné, cuja mãe, como visto acima, teme que ela engravide durante suas saídas constantes, quanto de Rama, que afirma ironicamente a seu noivo que a terceira esposa de seu pai “é tão virgem como eu”. (49) O romance trata mais da questão da quebra da moral predominante, e procura provar que a liberação feminina também se aplica à África, onde a função de tal movimento não seria a de aumentar a participação das mulheres africanas em sua sociedade, mas apenas tornar reconhecido um papel que elas já possuem. Quanto ao filme, embora Sembène expresse sua vontade que a situação na África mudasse, tais questões seriam demasiado acerbas se fossem tratadas de modo muito aberto em uma sociedade tão tradicional, o que deixaria os senegaleses de certa forma incomodados. (50) Há inclusive uma fala que aparece apenas na película, pela qual El Hadji, na festa de casamento, declara a amigos sua certeza de que a nova esposa é virgem. Antecede-a uma clara omissão dos principais momentos de temor da mãe de N’Goné presentes no romance e nos quais ela declara a necessidade de um casamento urgente para que sua filha não perca a virgindade com qualquer um. Deve-se lembrar que se nem na Europa pós-1968 a situação da mulher realmente mudou, que dirá em um continente cuja maioria da população não passou por um fenômeno parecido. Cumprindo seu lema de fazer um cinema que sirva ao povo e seja sua voz, Sembène preferiu, na versão cinematográfica, tocar com maior constância em questões mais palpáveis e diretamente relacionadas aos seus conterrâneos, como a questão social e a miséria, a serem tratadas mais adiante neste ensaio, do que nos choques nas relações familiares.
Rama também representa críticas duras tanto ao Senghor teórico quanto ao Senghor político, a começar pelo combate à poligamia que a jovem protagoniza, motivada por toda a crítica aos casamentos múltiplos que já foi comentada aqui, o que a faz opor-se ao terceiro casamento do pai e pedir ao noivo que não tome outra esposa além dela. É uma poligamia que não só obriga o homem, em cada casório, a despender quantias monstruosas de dinheiro, como também leva a primeira esposa a receber a culpa de todos os males, relacionados a problemas com as outras esposas, que o marido venha a sofrer. (51) A cena em que Rama leva uma bofetada de seu pai, citada mais acima para mostrar a importância que, no filme, El Hadji reservava à poligamia, também põe a jovem como opositora do despotismo e mostra a limitação do lado revolucionário que tanto o comerciante quanto Senghor possuíam. O comerciante lutou pela independência do Senegal, o que não deixa de ser uma revolução, entretanto, em uma circunscrição menor e na qual ele possui plenos poderes, ou seja, sua família, não admite, por ser a autoridade máxima, que ninguém desrespeite suas ordens, inclusive Rama, a qual, em um tom “moralizador”, ele julgava que “tinha muita liberdade”. (52) Já o líder político escrevia (ou ao menos tentava escrever) para toda a humanidade, à qual pregava a igualdade das pessoas acima das diferenças de cor, religião, nacionalidade etc., porém não prescindiu do autoritarismo durante o período em que governou seu país, o que mostra novamente a grande distância entre o Senghor escritor e o Senghor presidente.
Crítica das imposições culturais colonialistas, Rama fala preferencialmente a língua da maior parte de seu povo, não só porque é a mais falada no Senegal, mas também, como já foi dito, porque ela é a encarnação da nova mulher senegalesa que Sembène enxerga como a promessa dos novos tempos e que luta pela sua emancipação, mas não se desliga da cultura que ela herdou de seus antepassados. Sua fé no idioma uolofe se expressa em uma das passagens mais belas do romance, na qual El Hadji, ao chegar à casa de Adja, depara-se com Rama a escrever nessa língua. Ao ser questionada pelo pai sobre a amplitude de seu uso no país, ela lembra que “85% do povo utiliza-a” e, após qualificar o francês como “acidente histórico”, declara triunfante que “O uolofe é a nossa língua nacional”. (53) É um dos idiomas nos quais os senegaleses expressam seus sentimentos mais profundos, suas alegrias, suas tristezas e sua cólera, o que não foi permitido a El Hadji no momento de sua expulsão da Câmara de Comércio. A mensagem aos antigos colonizadores é clara: “temos nossos próprios meios de expressão e não precisamos de um idioma que não foi criado para expressar a realidade africana, mas uma outra, totalmente alheia a nós”. Retornando um pouco à cena do escritório de El Hadji, na qual ele e sua filha conversam em idiomas diferentes, o silêncio da moça ao ser questionada sobre o porquê de falar em uolofe mostra como, na verdade, é ele quem deve dar-lhe um esclarecimento. Deve prestar contas não só da infelicidade da qual Rama afirma que sua mãe está sofrendo, mas também do predomínio, em um senegalês independente, da marca do colonizador. Ampliando as consequências culturais desse pensamento, ele pode ser usado como explicação para o fato de Sembène privilegiar a África como referência para construir-se a si mesma, já que, para o cineasta, “É o homem quem se faz e quem se refaz”, não devendo ter mais como modelo a Europa, que, excluído o campo técnico, nada mais teria a oferecer-lhe. (54) No romance, Sembène inclusive deixa vazar um elogio implícito ao modo de vida tradicional africano, ao descrever a aldeia em que vivia o Sérigne Mada, que “não tinha loja, nem escola, nem dispensário, nem qualquer ponto de atracção”, porém se sustentava na “solidariedade comunitária” praticada pelos habitantes. (55)
O muito que ainda se há de fazer – À guisa de conclusão, e após lançar luz sobre a possível solução que Sembène propõe à sua sociedade, é mais do que necessário recordar que o próprio cineasta, ao longo do filme, expressou também as dificuldades pelas quais seu projeto teria de passar, ocasionadas, sobretudo, por um cenário de pobreza deixado pelos franceses. Como já foi lembrado acima, uma das principais diferenças entre o livro e a película é a ênfase que esta dá ao cenário de miséria vivido por boa parte da população senegalesa, largada à sorte da fome, do frio e da mendicância, muitas vezes acompanhados de alguma mutilação ou doença grave. No casamento de El Hadji, as cenas nas quais o noivo joga moedas para os transeuntes que se encontram na rua mostram a grande importância da menor quantia em dinheiro que essas pessoas pudessem receber. Em outros momentos, impressiona a grande quantidade de mendigos e desabrigados, grande parte deles aleijada, que anda grandes distâncias pelas ruas da cidade para, na maioria das vezes, receber uma alimentação que nem sempre lhes é suficiente. O furto ao rapaz que olhava o acidente de carro também mostra a que ponto chega a necessidade das pessoas, e o destino inicialmente pretendido ao dinheiro esclarece ainda que o pouco de recursos que uma família ou um grupo consegue juntar deve ser usado exclusivamente para satisfazer suas necessidades básicas. No meio de tal cenário, El Hadji, homem que tem meios para gastos desnecessários e indicadores de um exibicionismo elitista, constitui uma exceção. O comerciante exibe-se como uma fuga à regra mesmo em sua posição perante o mendigo que frequentemente se encontra na parte de fora de seu armazém tocando um instrumento e salmodiando canções que tratam de temas sociais, escritas pelo próprio Sembène. O cantor é conhecido e apreciado pelos populares que passam pelo local, porém El Hadji é a única pessoa que se aborrece com sua presença. O incômodo fica mais claro quando, no filme, pede ao presidente, em visita a seu escritório, que ligue para a polícia a fim de que ela retire aquele “lixo humano” que tem como principal característica ser “péssimo para o turismo”.
O mesmo mendigo será o protagonista do ápice da calamidade social que perpassa o filme, quando ele e seus companheiros entram na vila “Adja Awa Astou” e começam a consumir os comes e bebes da casa. O líder do grupo afirma que foi ele quem infligiu o xala a El Hadji devido à expropriação pelo comerciante das terras de seu clã e da expulsão e prisão do sujeito levada a cabo pelo mesmo. Não fica difícil assimilar a situação à espoliação dos nativos africanos promovida pelos europeus e por seus agentes do próprio continente, entre os quais se podem encontrar Senghor e, consequentemente, El Hadji. Vale lembrar que Sembène chega a afirmar que Senghor é “o mais belo fruto do sistema colonial” que a França pôde oferecer ao Senegal, (56) mostrando o papel que o político exerceu na dominação estrangeira colonial e pós-colonial. Uma vez espoliados, era a vez de os nativos pobres se vingarem, porém, como se pode notar, os únicos a sofrer as consequências serão outros africanos, gente da mesma origem. El Hadji, exceto a humilhação que terá de passar para se livrar do xala, sofrerá apenas perdas materiais de alguns produtos que são, na verdade, supérfluos, porém Rama é aquela que será mais vitimada, junto de sua mãe, pela ação dos pobres. (57)
O sofrimento da primogênita de El Hadji é a maior marca da insatisfação da moça com a Europa e com o passado da dominação europeia vivido pelo Senegal. Ela será uma das que mais os ameaça com a chamada da polícia, acompanha sua mãe no choro de medo e é também violentada moralmente pelo assédio que sofre ao ser olhada com lascívia por dois dos sujeitos. Rama, assim, passa-se por uma africana que se entristece pelo choque que ocorre entre seus ideais revolucionários e o fato de ser agredida pelos próprios conterrâneos por algo que ela não fez. É ainda o sinal da mulher como a principal sofredora de todas as dominações exercidas por um ser humano sobre outro ser humano e cuja importância na sociedade não é reconhecida pelo sexo masculino. A reflexão que se pode deixar, a partir desta última explanação, é aquela sobre os danos deixados na África pelos colonizadores e seus agentes, que polarizaram a sociedade entre aqueles que possuem muito além de suas necessidades e aqueles que não conseguem ter ao menos uma refeição decente. A partir de tal demarcação traçada sobre a população, surgiram também conflitos mais perigosos entre os próprios africanos, tratados em outras obras, por motivos que nem sequer lhes passavam pela cabeça até o século 19. Assim, os nativos pagavam por um erro do qual eles não possuíam a mínima culpa, e cuja responsabilidade é de apenas um grupo: o dos europeus. Eis, então, o maior desafio que se põe à construção de um novo Senegal e de um novo povo senegalês: a superação de barreiras sociais impostas de fora que proporcionem a união de toda a população nessa caminhada rumo a um desenvolvimento com características próprias e livre da submissão estrangeira. É nesse movimento que entram o cinema e a literatura produzidos por Sembène, cujo papel é ser a nova expressão cultural de um país que deseja a liberdade de construir um futuro e um progresso mais ligados ao seu jeito de ser.
Bibliografia
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. 23. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007.
KALY, Alain Pascal. Leopold Sedar Senghor e a construção do Estado-nação senegalês. Comunicação apresentada no Seminário de Construção de Estado-nação na África, UFSC, Florianópolis, maio de 2006.
SEMBÈNE, Ousmane. Xala. Tradução de Maria de Santa Cruz. Lisboa: Edições 70, 1979.
SEMBÈNE, Ousmane; AAS-ROUXPARIS, Nicole. “Conversation avec Ousmane Sembène”. The French Review, v. 75, n. 3, pp. 575-583, Feb. 2002. Disponível nesta página. Acesso em: 10. abr. 2008.
XALA. Produção e direção de Ousmane Sembène. Senegal: Films Domireew, 1975. 1 DVD (117 min.).
Notas (clique no número pra voltar ao texto)
(1) Ousmane Sembène e Nicole Aas-Rouxparis, “Conversation avec Ousmane Sembène”, The French Review, v. 75, n. 3, fev. 2002, p. 574.
(2) Ousmane Sembène deixa clara tal característica de El Hadji em Xala, Lisboa, Edições 70, 1979, p. 12.
(4) Alain Pascal Kaly, Leopold Sedar Senghor e a construção do Estado-nação senegalês, comunicação apresentada no Seminário de Construção de Estado-nação na África, UFSC, Florianópolis, maio de 2006, pp. 25-28; Ousmane Sembène, op. cit., p. 30.
(5) Ousmane Sembène, op. cit., p. 30.
(7) Ibidem, pp. 23, 33, 35 e 65.
(9) Ibidem, pp. 48-49, 51 e 123.
(11) Ibidem, pp. 13, 15, 17 e 19. Sobre o direito aos quatro casamentos, cf. p. 44.
(14) Ibidem, pp. 120-126 e 141.
(15) Michel Foucault, “Não ao sexo rei”. In: Microfísica do poder, Rio de Janeiro, Graal, 2007, pp. 229-242.
(16) Ousmane Sembène e Nicole Aas-Rouxparis, op. cit., p. 575 e nota 3.
(17) Ousmane Sembène, Ibidem, pp. 38-39.
(21) Ibidem, pp. 91-92 e 118-119.
(24) Alain Pascal Kaly, op. cit., pp. 10, 12, 15-16 e 18-19.
(25) Ousmane Sembène, op. cit., p. 16.
(28) Alain Pascal Kaly, op. cit., pp. 39-41.
(29) Ousmane Sembène e Nicole Aas-Rouxparis, op. cit., p. 575.
(30) Ousmane Sembène, op. cit., p. 117. Para alusão de El Hadji à corrupção de sua classe, cf. p. 112.
(31) Alain Pascal Kaly, op. cit., pp. 30 e 34.
(32) Ousmane Sembène, op. cit., pp. 27, 48 e 80.
(39) Alain Pascal Kaly, op. cit., p. 17.
(42) Ousmane Sembène e Nicole Aas-Rouxparis, op. cit., p. 577.
(43) Ousmane Sembène, op. cit., p. 58.
(45) Ibidem, p. 25 e 83, nota 1.
(46) Alain Pascal Kaly, op. cit., p. 37, nota 14.
(47) Ousmane Sembène e Nicole Aas-Rouxparis, op. cit., pp. 575-576.
(48) Ousmane Sembène, op. cit., p. 49.
(50) Como exemplo do incômodo causado entre os africanos por certos temas, ver o que disse Sembène sobre a recepção do filme Niaye, em Ousmane Sembène e Nicole Aas-Rouxparis, op. cit., p. 578.
(51) Ousmane Sembène, op. cit., pp. 23, 62 e 65.
(53) Ibidem, p. 113 (grifo no original).
(54) Ousmane Sembène e Nicole Aas-Rouxparis, op. cit., p. 576.
(55) Ousmane Sembène, op. cit., p. 87.
(56) Ousmane Sembène e Nicole Aas-Rouxparis, op. cit., p. 574.
(57) A entrada dos mendigos na vila e as cusparadas em El Hadji estão em Ousmane Sembène, op. cit., pp. 126-134.