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Para muitos, é difícil falar da antiga União Soviética sem paixão, especialmente as pessoas com mais de 30 ou 40 anos de idade: comunistas ou liberais, elas viveram a expectativa iminente de um confronto mundial entre os dois “blocos” de poder geopolítico da “guerra fria”, o “capitalista” e o “comunista”, e depositavam toda sua esperança na vitória final de seus próprios ideais. Talvez seja mais fácil para os jovens “pós-guerra fria” como eu, a não ser que tenham recebido essa herança dogmática de direita ou de esquerda de seus familiares ou do grupo social que frequentam, abordar esse assunto com a distância e a objetividade necessárias a qualquer análise científica.
A relação entre religião e comunismo, ou melhor, a relação entre as comunidades religiosas e os regimes do “socialismo real”, é certamente a fração mais explosiva dessa temática, afinal trata-se de dogmas lutando contra dogmas. Além disso, as redes sociais e os blogs estão cheios de discussões a respeito da suposta incoerência da profissão simultânea do marxismo e do cristianismo e a respeito de presumidos crimes cometidos em nomes do ateísmo em Cuba e nesses países do Leste europeu e do Extremo Oriente. Tudo isso se presta a enormes confusões e à ausência de consensos baseados em pesquisas sérias.
Estas breves observações resultam de um pequeno debate que travei com um senhor comunista de um grupo sobre Karl Marx no Facebook, em que falávamos da propaganda oficial do ateísmo em alguns momentos da história soviética e das oscilações entre momentos de perseguição a religiosos e de seu relaxamento, com uso da religião como instrumento de afirmação nacional. Espero que, apesar da limitação temporal e espacial do tema, eu possa ajudar um pouco a reduzir a dúvida, segundo algumas leituras que fiz até hoje em pesquisas acadêmicas ou em momentos de estudo pessoal.
A pergunta que um membro do grupo fez no mural, como muitos me fazem e como muitos continuam fazendo a outros comunistas, era se há necessidade de ser ateu para ser socialista ou comunista. Num determinado momento, após vários comentários, adicionei o seguinte: “Ateísmo não é religião, mas é uma postura para com a religião. Ao favorecê-la, o Estado soviético, na prática, deixava de ser laico.” Em outras palavras, como direi mais adiante: se o Estado fosse laico, ele não perseguiria as religiões, mas simplesmente adotaria uma atitude de indiferença para com elas, sem apoiá-las ou rejeitá-las.
Eis que o referido senhor comunista, após me chamar de troll (esse “trotskista”, “revisionista” ou “bruxo” da era digital, como brinquei oportunamente...), disse que eu estava “insistindo numa tese sem nenhum fundamento”, ou seja, a de que “no sistema socialista o ateísmo é considerado religião oficial”, e para a qual pedia argumentos claros. Acrescentou, ademais, que “Está cada dia mais difícil arranjar argumentos para demonizar o movimento comunista” e recordou que “no início dos anos 90, auge da suposta vitória do neoliberalismo, Marx tornou-se motivo de piada”, mas “hoje essas mesmas pessoas que ridicularizam Marx [...] concordam com ele”.
Longe de mim, como uma pessoa minimamente culta, detratar ou demonizar com pouco conhecimento de causa um dos maiores e mais influentes filósofos da história e, como um futuro estudioso do “socialismo real”, associar mecanicamente esses regimes à obra de Karl Marx e Friedrich Engels tal qual ela foi deixada logo após sua morte! Entendo bem a sinceridade política e social/socialista de meu interlocutor, mas nunca foi minha intenção servir de “intelectual orgânico” para a direita política, mas sim, como historiador, ou pretendendo sê-lo, apenas buscar ver as coisas mais objetivamente, sem rotular ou excomungar nada ou ninguém.
Comecemos pelo mais difícil. É óbvio que ateísmo não é religião: religiosos acreditam em seres sobrenaturais e se reúnem institucionalmente em torno de dogmas. Mas eu quero ir além desse conceito e sugerir a “postura para com a religião”: de alguma forma, negações de certas fés se inserem no mesmo campo epistemológico e cultural delas, portanto não são necessariamente uma “ausência de qualquer religião”. O ateísmo, por exemplo, é basicamente a negação da fé cristã ou, de um modo mais geral, monoteísta, e isso implica um confronto explícito, um desmonte detalhado desses dogmas. Por isso, não se pode dizer, por exemplo, que o budismo é ateu: para ser ateu, a categoria de “deuses” deveria fazer sentido a seu sistema.
Quanto à laicidade, como eu disse, é uma postura de neutralidade para com qualquer crença religiosa ou antirreligiosa, e não de favorecimento ou hostilidade. O Estado soviético não foi neutro, favoreceu explicitamente o ateísmo e perseguiu várias religiões. É claro que, na verdade, nenhum Estado moderno é totalmente laico, já que credulidade continua a ser uma moeda de troca política, mas é certo que a URSS, na maior parte do tempo, não seguiu essa cartilha “iluminista”, da qual, aliás, o socialismo originalmente deveria ser herdeiro.
Pode-se argumentar, em contrapartida, que a maior parte do clero apoiava o tsarismo e combatia o comunismo, o que justificaria as restrições. E concordo com isso, assim como, e aqui faço menção a meus amigos que abominam os “crimes do ateísmo”, vários comunistas ateus fiéis foram perseguidos na URSS em outros momentos por discordar do governo do momento. E isto, sim, deve ser visto com objetividade: saber em que grau a perseguição a religiosos foi, na verdade, uma campanha contra as oposições, e não contra a religião em si. Mas à parte disso, houve de fato a campanha ateísta mais explícita ao menos nas décadas de 1920 e 1930, na qual se destacavam a revista filosófica Pod znamenem marksizma (Sob a Bandeira do Marxismo) e o panfletário Bezbozhnik (“sem-deus”, “descrente” ou “ateu”).
Em qualquer caso, toda análise da relação entre o Estado soviético e as religiões deve ser feita com cuidado. Momentos de perseguição por este ou aquele motivo conviveram com períodos de tranquilidade e até colaboração, como nos anos da Segunda Guerra Mundial, em que a Igreja Ortodoxa Russa constituía um símbolo da nacionalidade resgatada por Stalin como instrumento de coesão na luta contra o invasor alemão. A partir de aproximadamente 1961, o sucessor Nikita Khruschov recrudesceu novamente a perseguição, mas esse é um caso que deve ser estudado à parte do período mais polêmico, ou seja, os governos de Lenin e de Stalin.
No mais, resta interessante uma observação feita por um membro, segundo a qual as obras de Marx, de Engels, de Lenin e de Stalin praticamente viraram um cânone bíblico incontestável na União Soviética a partir dos anos 1930, num ato de graves prejuízos para o potencial dialético do método original consagrado em O capital, e que Stalin foi adorado como um deus, voluntária ou compulsoriamente. Também são fatos em que entram em jogo o contexto cultural da Rússia de então, especialmente o rural, extremamente religioso e supersticioso, e, em parte, a breve formação religiosa do próprio Stalin num convento da Geórgia, mas aqui estamos novamente diante de uma discussão paralela muito polêmica.
Meu objetivo, ao final, apesar de não ser esta uma abordagem completa, foi o de lançar sementes de reflexão que contribuam para um maior esclarecimento entre os leigos no assunto e de pedir pela moderação no uso de rótulos apriorísticos na hora de tratar de política. Mas é certo que muita pesquisa ainda há de ser feita, muita bibliografia há de ser lida, inclusive por mim, e que as paixões ao se lidar com o “socialismo real” vão continuar, até pelo menos quando o rio da história já tiver levado todos os resquícios dos antigos regimes. Ou quem sabe até, e sendo mais condescendente e otimista, até quando na sociedade humana ainda houver opressores e oprimidos se inspirando por ideais adequados às suas necessidades.
P.S. Quando a União Soviética foi dissolvida, eu estava para fazer quatro anos de idade, portanto não posso ser acusado de estourar os rojões neoliberais da ridicularização e ironização de Marx...
Bezbozhnik, jornal mural, edição antipascal de 1929 editada pela União dos Ateus da URSS.
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