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Um dos maiores pontos de discordância entre religiosos e irreligiosos encontra-se na qualificação das relações entre religião e conhecimento científico, entre espiritualidade e materialismo, enfim, entre ciência e fé. Para os primeiros, ambas as coisas seriam conciliáveis e até mesmo andariam de mãos dadas, enriquecendo-se e complementando-se uma à outra. Conforme os segundos, são elementos díspares, mutuamente excludentes, não se podendo ao mesmo tempo professar uma crença religiosa e produzir saberes exatos e úteis à humanidade. Parece mais razoável dizer, porém, que ciência e fé, se entendidas respectivamente como conhecimento objetivo e subjetivo, como empiria e estética, não se misturam nem se combatem: apenas caminham paralelamente como âmbitos diferentes, mas igualmente necessários, da vivência humana.
O que genericamente chamamos de “ciência” é um patrimônio quantitativo e qualitativo erigido durante mais de dois milênios, mas cuja forma final não tem mais de dois ou três séculos. Nos primórdios da história humana ‒ digo a história escrita, aquela que foi registrada e da qual temos vestígios mais ou menos constantes e seriados ‒, o saber prático era extremamente unido a concepções mágico-mitológicas do mundo, e as relações com o sobrenatural regiam tudo o que se fazia de material numa sociedade, desde as plantações até a confecção de objetos de uso cotidiano e a construção de palácios e lugares públicos. Ainda hoje os costumes populares guardam resquícios dessa superstição ‒ ainda que em escala bem menor ‒, como a escolha da melhor fase da lua para o corte de cabelos e a reserva ou rejeição de certos dias, conforme leituras numerológicas ou astrológicas, para a realização de ações.
Na Grécia Antiga, a produção clássica dividiu os saberes existentes em três tipos. A “doxa” consistia na opinião geral, naquilo que era considerado correto por ser consentido pela maioria das pessoas; hoje a chamaríamos de “senso comum”, ou “bom senso”. A “sofia” era a sabedoria, o conhecimento que se adquiria com as experiências de vida e que seria mais consistente nos anciãos; ainda temos a tendência de considerar os idosos pessoas bastante sábias. Por fim, a “episteme” formava o corpo dos resultados de pesquisas, reflexões e experiências orientados metódica e racionalmente; equivaleria à atual ciência, e buscava uma verdade além das limitações da “doxa” e da “sofia”. Apesar de todos os percalços materiais e políticos, o conhecimento sistematizado seguiu um caminho crescente até a Idade Contemporânea, ainda que por vezes tenha servido a propósitos irracionais, entre eles a teologia medieval e a eugenia nazifascista.
Não seria lícito negar, contudo, que ao lado da busca por saberes exatos e utilitários, o ser humano sentiu constantemente a necessidade de transcender as vivências ordinárias para obter o prazer, algo que se encontrava apenas em procedimentos não ligados à produção imediata, mas ao desfrute, ao gozo, à fuga das limitações materiais. Por isso, já no seio das mesmas civilizações que primeiro sistematizaram o conhecimento independentemente de concepções sobrenaturais, surgiram peças estéticas ainda hoje inigualáveis, como esculturas, templos, afrescos, epopeias e peças teatrais magistralmente belas. Sua função era fazer os criadores e espectadores imaginarem algo além do real, do cruamente palpável e vivenciável, experimentarem sensações não descritíveis pela linguagem formal, mas vividas como transcendência, como sentimento puro e simples.
Essa certamente foi a natureza das primeiras experiências espirituais individuais ou coletivas na Pré-História, a qual deu o ensejo para a sistematização de práticas e instrumentos inerentes às pioneiras religiões instituídas. Assim, a sensação estética que promovia na mente humana uma desorganização do real para um posterior rearranjo conforme as necessidades mais íntimas foi aprisionada em formas impostas e pré-fabricadas de relação com entidades bem materiais, invocadas para fins absolutamente mundanos. Sob o pretexto de aperfeiçoar as experimentações particulares ou mesmo revisá-las tomando somente uma delas como referência, a qual supostamente consistiria na “revelação verdadeira”, criaram-se dispositivos complexos de crença coletiva que regeriam o cotidiano, a partir ainda daquela fase de intersecção entre o prático e o mágico. Deu-se margem à possibilidade inútil de “mundanização” do sentimento inexplicável, ou, pior, a esfera dos procedimentos objetivos viu-se invadida por uma subjetividade codificada.
No Ocidente, para que ciência e fé voltassem a separar-se, foi necessária uma árdua luta iniciada no Renascimento e aguçada por meio das teses laicistas do Iluminismo. Ainda atualmente, os problemas dessa repugnante mescla fazem-se sentir na dificuldade que governos de países democráticos profundamente religiosos têm em aprovar leis e medidas sanitárias e sociais de caráter modernizante e cuja proibição não encontra motivos ao se deparar com o bem que faria a um número inestimável de cidadãos. De natureza semelhante foi a criação de pseudociências pelos regimes totalitários de direita e de esquerda, tornando a ciência ideologicamente condicionada. Cai-se aí na intromissão das esferas privadas no espaço público, no estorvo dos interesses majoritários por minorias ricas e bem armadas; em última instância, é a confusão entre subjetividade e objetividade: epistemologicamente ambos os tipos de conhecimento são diferentes, imiscíveis, mas igualmente necessários, complementares e formadores de civilização e bem-estar.
A ciência tem por objetivo criar conhecimento verdadeiro, útil, objetivo. Ela serve para a resolução de problemas imediatos aqui e agora, na vida real, material. Já as diversas formas de estética, como as artes plásticas, a música, a literatura, o paisagismo, o cinema e o teatro, são fins em si mesmos, visam ao prazer, à transcendência do real, à expressão de esperanças e aspirações, à consecução de sensações não codificáveis em palavras, portanto extremamente pessoais e subjetivas; se não fossem essas experiências, vazaríamos nossos impulsos eróticos e tanatofílicos para o plano prático, atrapalhando o progresso da humanidade. Se interpretarmos as relações entre ciência e fé à moda de Einstein, diríamos que a criação de modelos científicos implica grande dose de imaginação, portanto o cientista seria um “religioso” por natureza. Todavia, quando se abstrai um fato empírico, não procuramos descrições belas, interessantes apenas para quem as cria, mas úteis, igualmente interessantes para a coletividade que delas se utiliza. Assim, a separação continua fazendo sentido, pois não é a subjetividade que conta na escolha, mas a objetividade, suas relações verdadeiras com o mundo real.
A religião é um caso complexo, pois foi a protagonista, como dito acima, da transformação em eventos estético-espirituais subjetivos em padrões coletivos de normatização da vida e de relação com o sobrenatural. A pergunta seria a seguinte: ela é uma experiência estética? Eu diria que, embora seu objetivo inicial fosse de caráter estético, não só sua trajetória terminou por anular tal natureza, como também a religião se transformou numa instituição prejudicial, já que visa a legislar sobre as subjetividades e, por regras exteriores à objetividade, também sobre esta. O sentimento estético, por ser subjetivo, não está sujeito a normas preestabelecidas e não pode ser determinado de fora da própria pessoa. Além disso, sobretudo na sua forma cristã, ela procura, em prol do “corpo da Igreja”, anular qualquer experiência individual ou criação livre e restringe os prazeres, fim último da estética. Por fim, a religião criou problemas na própria realidade palpável, como conflitos, divisões, extorsão de bens materiais e atrasos culturais, atrapalhando o progresso objetivo ao sair de seu âmbito particular. Por isso, se quisermos buscar novamente a experiência estética, subjetiva e prazerosa em sua pureza, a religião não é mais o lugar apropriado: afinal, somos templos à parte.
O conflito entre ciência e fé não existe como problema lógico natural; sua criação foi a consequência dos problemas éticos e relativos à liberdade alheia criados pela intrusão de setores iniciáticos nas causas e questões concernentes ao todo de uma dada população. Não se deve ver essa oposição como um caminho de mão única, afinal cada vez mais as esferas públicas procuram, como remédio aos atrasos sociais e culturais, intervir também no espaço privado, apenas criando prejuízos ao invés de suprimi-los. A paz duradoura só virá quando se compreender que a beleza não está sujeita a enquadramentos e generalizações, e, reciprocamente, entender-se que os interesses reais, científicos e universais não podem guiar-se pelas vicissitudes de vontades anti-intelectuais, conservadoras e egoísticas.
Complemento (parte adaptada de e-mail ao amigo Romulo Souza, escrito e enviado em 11 de janeiro de 2011; comentário sobre notícia que mostra afirmações do papa Bento XVI a respeito do papel de Deus na criação do mundo, provavelmente aparecida na Veja e na Folha de S. Paulo):
Tenho que reconhecer que ciência e fé são mesmo campos distintos do conhecimento humano, e que embora não sejam a mesma coisa, mas facilmente distinguíveis uma da outra, elas são, sim, complementares, e que a existência de uma depende da outra. É um pouco semelhante à relação entre os poderes em um Estado, ou entre as duas casas de nosso Congresso: fiscalização sem mistura.
Entretanto, aqui não entendo “fé” como “religião” ou “crença cega”, mas como o funcionamento subjetivo de nosso aparelho neurológico, ou seja, a consciência que temos de nossa própria existência e da distinção que fazemos entre nós, os outros e a natureza. O animal não tem subjetividade, apenas impulsos (“instinto”, como diz Ludwig Feuerbach em A essência do cristianismo), e é por causa dessa subjetividade que sabemos abstrair, pensar etc., em resumo, ir além da realidade objetiva na elaboração de conceitos. E quando vamos além da realidade objetiva, é que a transcendemos, e é simplesmente por esse fato que entendo “transcendência”; assim, toda experiência “religiosa” (ou “espiritual”, na falta de termo melhor) é particular, subjetiva, limitada ao campo da estética, da sensação cerebral, do gosto e de uma experiência irrepetível em outras pessoas.
Dessa forma, e lembrando que além desse campo subjetivo existe um campo objetivo, ou seja, o da matéria exterior a nosso pensamento, da natureza, das coisas perceptíveis pelos cinco sentidos, penso que a religião erra em dois sentidos: ao pretender que um conceito subjetivo de Deus (de uma pessoa ou, em última instância, de um grupo) exista no mundo da realidade objetiva, ou seja, algo que é particular à experiência inalienável de alguém seja projetado no mundo das coisas existentes; e ao pretender que uma realidade objetiva, que é a religião, seus ritos, dogmas, templos etc., tenha efeitos semelhantes em todas as subjetividades, ou seja, pretender que todos tenham as mesmas sensações com os mesmos estímulos externos.
Acho que é daí que vem a pluralidade de religiões: cada subjetividade individual ou grupal percebe o mundo exterior (ou mesmo a Bíblia, certos ritos etc.) de um jeito, e é daí que nascem as cisões, de percepções diferentes acerca de um mesmo objeto. Resumindo: a religião está errada porque ela quer projetar no mundo objetivo algo que vem da esfera subjetiva de um indivíduo ou de um grupo (a ideia de Deus), e porque ela quer que algo objetivo (seus ritos) tenha os mesmos efeitos e a mesma recepção em subjetividades diferentes.
Concluindo, penso que esse campo do subjetivo, se não pode ser trabalhado pela religião, deve ser trabalhado pela filosofia (segundo Caio Prado Junior em O que é filosofia, o “conhecimento do conhecimento”) ou pela psicologia, e que o campo do objetivo deve ser reservado à ciência (ou diria até, sob o risco de reprovação dos “novos ateus”, que a ciência deveria limitar-se ao objetivo, e que as questões relativas ao sentido da vida, à “espiritualidade” e à “religiosidade” deveriam ser reservadas à filosofia).
Assim, parafraseando o dito de Einstein (e daí volto à questão da complementaridade entre ciência e “fé”), “A religião sem a ciência é cega, e a ciência sem a religião é capenga”, eu diria com mais convicção que “A filosofia sem a ciência é cega (ou seja, não tem objetivo nem objeto nenhum), e a ciência sem a filosofia (sobretudo a ética e a filosofia da ciência) é capenga”.
Comentário de Fabio Machado, dono do blog “Haeckeliano”: Essa é uma das abordagens mais sóbrias que li sobre o tema. O ponto, creio eu, é que juntamos muitas coisas sob a ideia do embate entre religião e ciência. O ponto que você abordou é um de muitos. Acho que, como muitas outras coisas, essa é uma questão simples de ser feita, mas muito complicada de ser compreendida.
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