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Cerco estrangeiro e liberdade nos países socialistas: Algumas palavras interessantes de meu colega de Facebook, Paulo Gabriel, historiador e estudioso da URSS como eu, Erick Fishuk, em mensagem privada em que debatíamos várias afirmações, em grupos da rede social, a respeito da ausência de liberdades civis nos países socialistas. Coloquei algumas notas explicativas e dei um título, e a peça pode ser incompleta e lacunar, mas consegue abrir um bom debate.
A ideia de governo unipessoal, para mim, é errônea por si só, principalmente após o surgimento dos grandes Estados modernos. Acho que no caso da URSS, a ditadura foi sempre do Partido, sempre da vanguarda revolucionária que tentava guiar o país rumo ao socialismo. No caso de Stalin, a URSS passou por épocas desesperadoras em que ela se encontrava a um passo do extermínio, com o fascismo se espalhando pelas bordas da nação. Quando o NKVD (1) descobriu redes de espionagem sinistras da Alemanha e do Japão, o país entrou em desespero como um todo. E os excessos foram regra geral, desde a população civil até altos escalões do governo. (2) No entanto, quase acabaram resultando numa destruição completa da quinta-coluna (3) na URSS, coisa que na França, por exemplo, não foi feita, tendo sido o país entregue de bandeja para os nazistas.
Eu acho que as pessoas, de modo geral, dão muito pouco valor ao cerco imposto não só à URSS, mas também a boa parte dos países socialistas do mundo. Elas acham que bloqueios econômico-tecnológicos e ações agressivas de serviços secretos não são o bastante para abalar uma nação, ou mesmo acham que as ações de sabotagem feitas pelos serviços secretos ocidentais não passam de teoria da conspiração. Tem-se uma visão muito idealista da política, muito romântica, na verdade. Eu concordo com o historiador estadunidense William Blum, (4) quando ele diz que nenhuma experiência socialista na história foi deixada em paz para se desenvolver do jeito que bem entendia: cada uma delas teve que se preocupar, primeiramente, em se defender dos agressores externos, e muitas sucumbiram sem conseguir se manter por longo tempo. E essa existência voltada à sobrevivência e à defesa de seus regimes foi um fator fundamental que moldou cada uma das experiências socialistas de forma autoritária ou, pelo menos, gerou um certo cerceamento de direitos ou uma tendência à militarização.
(1) NKVD: Narodni komissariat vnutrennikh del, o Comissariado do Povo para Assuntos Internos de 1934 a 1946, que se tornou em seguida o MVD (ministério) e, em 1954, o KGB (em russo, Comitê de Segurança do Estado). Segundo Paulo Gabriel, a principal fonte, entre outras, de sua opinião sobre o NKVD é o livro Life and Terror in Stalin’s Russia, de Robert W. Thurston, historiador estadunidense, crítico do “paradigma totalitário” de análise da URSS.
(2) Referência à segunda metade dos anos 1930, mais especialmente aos anos de 1936 a 1938.
(3) Conforme o Dicionário Aurélio, pessoa ou grupo, estrangeiro ou nacional, que atua sub-repticiamente num país em guerra ou em via de entrar em guerra com outro, preparando ajuda em caso de invasão ou fazendo espionagem e propaganda subversiva. Geralmente também se refere aos setores de direita que apoiam o alinhamento de seu país a uma ou outra grande potência capitalista.
(4) Escritor de esquerda nascido em 1933 [e falecido em 2018], crítico da política exterior dos EUA e de seus excessos ao redor do mundo, opositor da Guerra do Vietnã e da “guerra contra o terror”, editor da imprensa alternativa e afinado ideologicamente com Noam Chomsky e Ralph Nader.
Fortalecimento regional da Rússia: Por meio de meu canal no YouTube e de nossos grupos no Facebook, mantenho sempre contato com pessoas interessadas nos mesmos temas que eu, especialmente a história da URSS e a língua russa. Por vezes até desperto uma falsa sensação de entender bastante da história da Rússia, mesmo em seu período atual: o que não deixa de ser verdade, claro, em comparação com certos jovens de minha idade, até mesmo universitários, mas também esconde certa falta de tempo e disposição minha para acompanhar ativamente o cotidiano desse grande país, por meio da mídia e da literatura. Na verdade, o que tenho de informações são gotas que adquiro, como diria o Giuliano, “por dever de ofício”, ou mesmo por meio de manchetes e outras postagens surgidas involuntariamente em minhas redes de contato.
Pois bem, há algum tempo tenho contato por e-mail com uma pessoa que me conheceu por meio dos meus vídeos, sempre curiosa e disposta a debater questões da Rússia contemporânea e da URSS, e de quem frequentemente tiro algumas dúvidas simples. Recentemente, ele me escreveu que, lendo o Diário da Rússia [hoje sumido da rede] e há algum tempo reunindo matérias, percebia que nos comentários recentes estaria ventilando “a vontade de Putin de ressuscitar a URSS”.
Baseando-se nesta matéria [link quebrado] de meados de setembro [de 2012] sobre a reunião em Moscou, em dezembro, de três encontros importantíssimos para a região, mas de igual repercussão mundial, meu contato sugere que “diversas atitudes têm se mostrado a passos rumo a uma unificação, mesmo que lenta, porém com fortes pretensões de uma união euro-asiática”, observando ainda que “o objetivo é o ingresso da Ucrânia” nessas iniciativas [como sabemos, frustrado com as revoltas de 2014].
Solicitada minha opinião sobre “os fatos e acontecimentos” acima, respondi o seguinte, aqui postado com ligeiras adaptações. Adianto que sou o único responsável por possíveis imprecisões fatuais e equívocos conceituais ou analíticos, sendo bem-vindas, obviamente, as sugestões, críticas e correções.
Não é de hoje que a Rússia tem recuperado sua influência sobre a região da antiga URSS: nos tempos de Ieltsin, o país estava muito fraco, mas Putin, desde que assumiu pela primeira vez a presidência, em 1999, notando o evidente descaso com a infraestrutura, a defesa e o moral do povo, tratou de buscar reestruturá-los com um claro viés nacionalista e, por vezes, intervencionista. As constantes incursões na Tchetchênia são uma prova disso, e a guerra com a Geórgia em 2008, mais cabalmente ainda.
É um jogo que, em última hipótese, ressuscita em parte a “guerra fria”, pois opõe um grande país “oriental”, que é a Rússia, com todo um conjunto de hábitos e costumes próprios, ao país-símbolo do “Ocidente”, os EUA, com valores e práticas absolutamente diversos, tendo em comum, é claro, a enormidade dos recursos naturais e humanos e a necessidade de submeter outras regiões à sua influência, de modo mais ou menos explícito [podemos lembrar o exemplo da Crimeia e do Donbass novamente em 2014]. (A China também entra no jogo, talvez se unindo à Rússia muitas vezes não exatamente por afinidades ideológicas, mas pela necessidade de encarar o inimigo comum estadunidense.)
E de fato, nos anos 2000, essa briga tem se tornado mais acerba no campo das disputas políticas internas de certos países estratégicos, polarizados entre o apoio a uma ou outra potência. Na primeira metade da década, vimos chefes de Estado pró-EUA tomarem força e se elegerem, como Saakashvili (Geórgia) e Iushchenko/Tymoshenko (Ucrânia), mas algum tempo depois esse quadro acabou se revertendo (especialmente na Ucrânia de Ianukovich), e mesmo nos países túrquicos da Ásia Central várias bases norte-americanas foram fechadas para a abertura de russas. Porém, é de peso igualmente crucial a estabilidade no poder que encontraram certos autocratas favoráveis à manutenção de seus países na órbita russa, e falo em particular de Aleksandr Lukashenko, de Belarus [que também tem sofrido contestações internas nos últimos anos], e de Nursultan Nazarbayev, do Cazaquistão [que renunciou em 2019], hoje aliados fundamentais e que estão desde os anos 1990 no poder. (Note-se, também, o estilo de governo do próprio Putin, muito semelhante, o que nos faz até mesmo questionar se o modelo dito “democrático” dos países ocidentais desenvolvidos é realmente uma panaceia universal, dada a estabilidade e a força que aquelas nações têm vivenciado.) Esses países, no mais, além de relativamente grandes e populosos, foram dos últimos a declarar a independência da URSS, no caso, o Cazaquistão, poucos dias antes da renúncia de Gorbachov.
Contudo, falar em “ressurreição da URSS” me parece mais um jogo retórico, até mesmo com algum grau inconfesso de nostalgia por uma situação que rendia muitos dividendos aos causadores ou propagadores de polêmicas. A URSS foi criada em 1922 num contexto muito específico, em que se buscava empurrar o antigo Império Russo para a modernização administrativa e econômica de sentido socialista. Na verdade, sua criação representou antes uma descentralização com relação ao tsarismo, pois houve perdas territoriais significativas na parte ocidental, enquanto as atuais Repúblicas estavam praticamente sendo criadas e recebendo uma estrutura estatal [em russo, gosudarstvennost] que não possuíam antes (muitos dos povos aí residentes eram nômades). Assim, creio que teria sido impossível se passar do Império Russo para a configuração moderna da região sem o intermédio da URSS. O que vemos hoje é mais uma reconfiguração do poder mundial, que representa não apenas um crescimento isolado da Rússia, mas também certo descrédito no monopólio dos EUA (que parecia inconteste com o fim do socialismo na Europa) e a ascensão dos chamados “países emergentes”, incluindo aí, além da China, o Brasil, a Índia e a África do Sul. Em todo caso, é certo que a Rússia recupera cada vez mais sua influência e poder, mas falar em socialismo ou comunismo é uma piada: nunca quis Putin algo mais do que se inserir justamente na lógica do mercado mundial, como se pode notar no recente ingresso do país na OMC.
Comentário 1: Comparem o PIB dos países da ex-URSS, que em vez de ficarem no limbo ideológico pós-soviético, apostaram seriamente na modernização das suas economias. Alguns já vivem melhor que Portugal (apesar de terem um nível de corrupção maior do que o português):
- A Estônia tem um PIB per capita superior ao português (US$ 21 000);
- A Letônia tem um PIB per capita equivalente ao português (US$ 18 000);
- A Lituânia tem um PIB per capita equivalente ao português (US$ 20 000) (fonte citada)
Comentário 2: Concordo com artigo. Acho que é bem isso mesmo. O que está em jogo é a disputa pela hegemonia mundial, tendo a Rússia chances de sair bem. E Putin, ao resgatar o sentimento de nacionalismo, que de certa forma foi um elemento para incentivar boa parte do crescimento da URSS, dá um passo à frente. Se não me engano, essa questão da integração (que não deve passar de bloco comercial, com objetivo de fortalecer a Rússia no cenário mundial) tem apoio dos comunistas, inclusive daqueles das ex-repúblicas da URSS.
Comentário 3: Interessante. Eu compartilho o ponto de vista de que a Rússia está perdendo o Grande Jogo na Ásia Central para a China. Hoje ela exerce muito mais influência no Cazaquistão e no Uzbequistão do que a Rússia.
Bom, para começar, vou citar o exemplo do Cazaquistão. Ele busca estreitar as relações com a Rússia para poder trazer a China até seu território. As caras reservas petrolíferas cazaques atraem muito a China. Para fugir da Mãe-Rússia, o Cazaquistão faz alianças com a OTAN, além de aproveitar que a China está mostrando que precisa de muita energia e está disposta a pagar caro por ela. A sede da Companhia Nacional Chinesa de Petróleo em Astana – a moderníssima capital do país – parece uma segunda embaixada.
Outro ponto interessante é a construção do oleoduto Atasu-Alashankou, que leva petróleo do mar Cáspio até a fronteira com a China, abastecendo sua rede de energia. O presidente Nazarbayev declarou, em 2005, que o petróleo consolida a amizade sino-cazaque. A Sinopec (Companhia Petroquímica da China) irá explorar mais petróleo cazaque e pretende interligá-la com a rede leste-oeste que vai de Xinjiang até Xangai. A cada ano mais e mais chineses mudam-se para a parte nordeste do Cazaquistão, e muitas placas de Almaty estão em chinês. O interesse de expandir seu território para o oeste faz com que a China estabeleça fortes parcerias e receba concessões do governo do Cazaquistão, que, em matéria de economia, está muito à frente da Rússia.
Comentário 4: Amigo [referência ao 2], o que justamente o autor do texto [eu, no caso] quer dizer não é uma compensatória econômica transacional, própria do raciocínio ocidental, mas justamente consolidar uma ampla aliança eurasiana que abrace países europeus e asiáticos para se valerem de uma voz multipolar (leia-se transcritos do prof. Aleksandr Dugin).
Antiga sede do NKVD/KGB, hoje sede do FSB, em Moscou.
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