sexta-feira, 31 de maio de 2019

Desafio à irreligião e ao laicismo (2010)


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NOTA: Lancei inicialmente este artigo no antigo blog “Pensadores Libertos” em 31 de agosto de 2010, sob o título “Problemas postos à irreligião e ao laicismo”. Depois o mudei levemente, pus notas explicativas e repostei no blog Materialismo.net em 22 de janeiro de 2013. Fiz umas poucas atualizações na redação, e cada título que vem logo no começo em negrito se refere a um parágrafo do texto. Como em outros textos semelhantes que publiquei ultimamente, penso hoje que algumas generalizações e classificações são simplistas e revelam muito mais o fruto de reflexões pessoais do que de aprofundamento. Mas o mais importante foi a síntese de leituras filosóficas que eu estava então apenas começando a fazer.



Introdução - A luta atual entre religião e antirreligião - O dogmatismo da religião - O dogmatismo da antirreligião - A experiência erótico-estética - Irreligião e laicismo - O vir a ser da irreligião - Da diferença entre laicidade e laicismo - A importância do Estado laico - É possível haver sociedade laica? - A questão religiosa na luta política - Considerações finais


Se o século 19 foi marcado pela oposição entre monarquismo e republicanismo, e se o século 20 destacou-se pela contenda entre capitalismo e comunismo, os conflitos do século 21, nascido de fato dos atentados de 11 de setembro de 2001, imbuem-se de uma linguagem absolutamente religiosa (no sentido de referir-se às religiões). Os motivos centrais podem até ser políticos e econômicos, mas o uso da religião como pano de fundo cultural não pode ser desprezado, e isso parece implicar na criação de novos paradigmas para a explicação das relações entre grandes ou pequenos grupos humanos. A nível global, a civilização judaico-cristã, dita livre e diversa, embate-se com o mundo muçulmano, tendente ao centralismo e à uniformização. Dentro do mundo ocidentalizado, coletivos antirreligiosos denunciam toda crença institucionalizada como perniciosa e causadora de conflitos, além de sublinhar frequentes conúbios entre cristianismo e Estado.

No caso da luta atual entre religião e antirreligião, não se pode dizer que ela se dá uniformemente em todos os lugares ou nas penas de cada um de seus próceres. O que se sabe é que mostra ser uma consequência direta dos choques entre os progressos sociais, éticos, tecnológicos e científicos obtidos numa esfera laica e a moral e os preceitos atávicos e fixistas das grandes religiões monoteístas, sobretudo os cristianismos e os islãs. Líderes religiosos proeminentes pelejam contra o que, sob a “máscara” do progresso e do bem-estar, dizem ser atentados à “ordem”, à “família”, à “lei natural de Deus”, à “propriedade” e à “vida humana”. Por seu turno, entidades secularistas, ateístas ou não, cujos intelectuais orgânicos mais destacados representam-se sob o atribuído título de “novos ateus”, fazem face aos primeiros, depreciando o pensamento religioso e seus “obstáculos” à modernidade como “dogmáticos”, “atrasados”, “genocidas”, “anti-intelectuais” e “irracionais”.

Nessa batalha, não há mocinhos e bandidos, e cada lado, junto a seus motivos sócio-culturais, guarda seus vícios conceituais e compromissos com interesses ocultos. No caso dos religiosos, eles acertam em considerar-se uma força de coesão social e um aparelho privado de hegemonia que defende interesses coletivos contra os abusos e falhas das camadas dominantes. Porém, como parte de um status quo organicamente formado juntamente com o mesmo Estado e o capitalismo, não podem ser mais do que uma “oposição doméstica” a seus dois companheiros, atuando, assim, como elemento ideológico de conservação da submissão operária e pauperista. Tal poder atua por meio da sonegação do conhecimento em troca da crença em mitos consoladores e lega, a longo prazo, uma sociedade atrasada e ‒ exigindo a crença cega no lugar da investigação ‒ sem o ideal da curiosidade, do debate, da tolerância e da rejeição do erro.

Quem pensa que os antirreligiosos são o ápice de toda a inteligência e sabedoria verdadeiras não deve iludir-se. Obviamente a luta contra o preconceito aos ateus no mundo ocidentalizado atingiu uma dimensão jamais vista, obteve bons resultados e ofereceu uma alternativa nova de pensamento às pessoas bitoladas pela religião. Contudo, os escritos mais militantes, devedores do ideal positivista que hoje retorna sorrateiramente às ciências, demonstram reducionismos extremos, e não são raros aqueles que pensam poder analisar o fenômeno religioso com o mesmo instrumental das Ciências Exatas; como fenômeno humano, na verdade, é cheio de contradições, exceções e matizações dependentes do espaço e do tempo. Os movimentos brasileiros, decalcando problemáticas e fórmulas do estrangeiro, não enxergam as particularidades da religião na América Latina e caracterizam-se pela considerável debilidade e ausência de criatividade na produção teórica. (1)

Na detração das religiões instituídas, além do maniqueísmo e da desconsideração de várias faces de sua história, esquece-se, com raras exceções, da “experiência religiosa” pura e informal. Não é o caso de olvidar, claro, que ela em geral é condicionada biológica, histórica e culturalmente, em sua intensidade, provocadores e duração. Todavia, deve-se ressaltar que sua natureza é erótico-estética, ou seja, tem a ver com os mais simples prazeres e fruições: pode aparecer no coito, no uso de drogas, na meditação, na contemplação da natureza e no consumo de obras artísticas. É a transcendência do real, a fuga momentânea da necessidade de explicá-lo, um sentimento que prescinde de explicação verbal. O adjetivo “religiosa” parece inapropriado, pois remete às religiões instituídas (talvez uma redundância), que podem gerar belas experiências estéticas, mas têm um regulamento de vida que impede de se levá-las além de certos limites.

Quando se toma, entretanto, a religião como objeto de um estudo materialista, não são seus efeitos neurais o foco principal (ao menos em se tratando de Ciências Humanas, e não Médicas); procuram-se suas consequências na vida das pessoas, na cultura dos povos, na circulação econômica e na produção científica e tecnológica. Deste modo, é tomada como um condicionado da produção material do local e época em que aparece ou é praticada, pela análise de seus adornos, templos, idiomas litúrgicos, consumos alimentares ritualísticos etc. Isso é que deve ser tomado em conta quando se fala de irreligião e laicismo: a religião como uma instituição organizada e complexa, com ramificações em todo o corpo social e que, embora se considere monopolizadora da verdade e do modo de atingir-se uma experiência espiritual, é passível de estudo, crítica e até mesmo refutação, perdendo sua cadeira cativa no mundo ocidentalizado contemporâneo.

Num mundo que prescinde das explicações religiosas, o pensamento irreligioso ganha qualidade, força e fertilidade. Tudo o que foge daquelas pode abrigar-se sob a sombra deste: o ateísmo, o agnosticismo, o teísmo livre, o não teísmo e qualquer discurso a respeito do sobrenatural sem institucionalização ou codificação dogmática. Não obstante, certas formas desse pensamento, como o chamado “novo ateísmo”, especialmente nas suas vulgarizações brasileiras, ainda são reféns do condicionamento hermetista e da criação de ídolos e hierarquias e padecem de generalização e falta de ação e consciência políticas. (2) Não havendo pensamento irreligioso puro (o purismo é típico da religião), é difícil defini-lo, mas pode-se atribuir-lhe uma visão dialética da realidade, uma extrema crítica dos imperativos categóricos, a estima pela liberdade de consciência individual e o uso do saber para transformações sociais radicais ‒ e não apenas a mitigação das mazelas.

Mas a realidade é outra: nem todos querem abandonar a religião, e por isso os conflitos gerados pelas diferenças persistem. Como remédio parcial, criou-se a doutrina do laicismo para as esferas públicas, em especial o Estado, ou seja, essas entidades não estariam ligadas organicamente a nenhuma Igreja nem professariam ou apoiariam qualquer doutrina religiosa; igualmente, sequer as perseguiriam, enfim, deveria haver neutralidade nessa matéria. Podemos facilmente estender essa restrição a outras ideologias e filosofias particulares; o que interessa é o resultado igual, a laicidade, a aplicação prática da doutrina laicista, a “qualidade de laico ou leigo” (Dicionário Aurélio). Assim, diz-se que, conforme o “laicismo”, promove-se a “laicidade” das esferas públicas; não tem fundamento semântico a distinção que os católicos fazem entre a laicidade “positiva”, “diversa”, “tolerante” e o laicismo “negativo”, “totalitário”, “intolerante”. (3)

Todo Estado livre e democrático contemporâneo deve ser laico (professar o laicismo e praticar a laicidade), pois o apoio oficial a qualquer ideologia pode gerar privilégios que caminhem à criação de grupos beneficiados, majoritários ou não, e à tirania destes sobre os demais. Por ser livre e democrática, a sociedade deve dar direitos, oportunidades e deveres iguais a todos. E isso não se traduz necessariamente na retirada de símbolos religiosos das repartições públicas (fruto, aliás, da tradição cultural, da qual falarei adiante) ou da extinção de capelas de hospitais ou quartéis (embora o serviço religioso seja uma forma de privilégio): os antirreligiosos terminam por dar o mesmo valor sobrenatural aos objetos do que dão os crentes. Trata-se de criar hábitos de conhecimento pluralizado, de tolerância, de paridade, de respeito mútuo e de evitação de prerrogativas, o mesmo valendo para negros, homoafetivos e outros grupos historicamente oprimidos.

Algo importante deve ser lembrado: certas definições de “laicismo” e “laicidade” abrangem também a cultura e a sociedade em geral, e não apenas o Estado e outras instituições públicas. Mas creio ser isso quase impossível, pois as religiões fazem parte do imaginário e da tradição popular, dizendo respeito a formas de vida inalienáveis em países declaradamente livres e democráticos. Como forma de linguagem, identidade e arte, e não como instrumento de controle de uma minoria sobre o restante da população nem como forma de intrusão de esferas privadas no meio público, as religiões são um patrimônio da humanidade, e só poderiam extinguir-se se a educação fosse completamente permeada por valores científicos e racionais. (4) Contudo, a extinção de um mito sempre leva à criação de outro, devido à necessidade humana da transcendência, e mesmo que o velho perca valor, seu estudo constitui útil ferramenta antropológica.

Um último problema veio à tona, aparentemente com mais força, nas eleições presidenciais brasileiras de 2010. Se nossa sociedade não é laica, então a “competência religiosa” é mais um fator que o eleitor busca no candidato para lhe conceder sua confiança, já que, no senso comum, a religião é a fonte mais segura da moralidade. Pensando nisso, os contendores, mesmo não imbuídos de qualquer sinceridade, usam e abusam do nome de Deus, de referências aos Evangelhos e de apelos à “família”, à “ordem” e à “moral”, tudo para afastar o infame rótulo de “ateu/ateia”. Nada mais teatral: a maioria dos políticos até hoje foi e é religiosa, e somos ainda famosos pela onipresença da corrupção e do autoritarismo; a religião torna-se um escape para expiar os “pecados” terrenos. Só não mais se precisarão de máscaras quando os valores culturais mudarem em prol da honestidade, da solidariedade e do senso de coletividade desinteressados.

A ciência, em seu atual estágio, dispensou as explicações mágicas, sobrenaturais e divinas. Contudo, as sociedades são bem mais complexas do que se fossem constituídas apenas por elementos traçados em laboratório: sentimentos, gostos, emoções, impulsos e paixões parecem escorregar dos tubos de ensaio e calculadoras. Em contrapartida, isso não garante que as religiões permaneçam com a mesma deferência de milênios atrás, e faz com que, em um mundo estressado, bélico e poluído, elas devam retornar à sua função original para sobreviverem: consolar e unir as pessoas, e não formatá-las e desuni-las. O laicismo ameniza os conflitos, mas a irreligião, como campo alternativo, e não substitutivo, é o campo mais fértil em que pode florescer, em toda a sua pluralidade, o pensamento crítico, transformador, pacifista, revolucionário e honesto que renovará a mente e o coração dos seres humanos.

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Notas de 2013
(Clique no número pra voltar ao texto)

(1) Nos mais de dois anos que se passaram desde a primeira publicação deste texto, ocorreram no Brasil diversas polêmicas relativas aos abusos das religiões e ao preconceito contra irreligiosos, grupos minoritários e pessoas de outras crenças, o que motivou reflexões interessantes no seio de entidades secularistas então surgidas, como a Sociedade Racionalista e a Liga Humanista Secular do Brasil, entre outras que agora me fogem à mente. A tudo isso devemos um salto na qualidade e na produtividade do debate ‒ ampliado ainda mais com a popularização de redes sociais mais modernas ‒, especialmente entre jovens que se conscientizam dos problemas sociais cada vez mais cedo.

(2) Mesmas observações da nota 1, ressaltando-se ainda que a questão da hierarquia referia-se a problemas disciplinares e internos de que padecia a ATEA (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos) em seus primeiros tempos, havendo agora, com a criação de novas iniciativas presenciais e online não centradas exclusivamente no ateísmo ‒ e muito menos na cópia dos modelos importados do mundo anglo-saxão ‒, experiências bastante democráticas e coletivizadas de discussões, gestão humana e organização de eventos.

(3) Ao falar da distinção entre “laicidade” e “laicismo”, referia-me especialmente aos escritos do apologista católico Felipe Aquino, da Canção Nova, e do jurista católico Ives Gandra Martins, com os quais tinha mais contato naquele momento. Obviamente eles legislam em causa própria, e escondem sob o rótulo de “laicidade” a manutenção dos resquícios de influência católica sobre o Estado brasileiro. Hoje não percebo o debate como exterior a esse meio, e parece ausente entre os evangélicos, os quais, certamente, não pensam em qualquer tipo de separação, aproveitando o aumento da influência sobre as decisões políticas que seu crescimento numérico e financeiro tem proporcionado. Lembre-se que o rebanho católico reduz-se a cada ano, e que é nesse contexto da perda de seu poder, apenas nele, que lhe interessa alguma separação entre religião e Estado, na perspectiva de que uma virada demográfica possa transformar seu papel histórico de perseguidores em condição de perseguidos. Por um acaso acabei de achar este texto português de Palmira F. Silva, “Laicidade e laicismo”, que ratifica minha definição, baseando-se numa análise de caso.

(4) Parece que aqui cometo uma incoerência, ou uma confusão conceitual: qual seria a desvantagem da educação e do ensino serem permeados por valores científicos e racionais? Não seria justamente o instrumento mais eficaz contra a confusão religiosa das massas? Ora, talvez eu quisesse dizer que o ser humano não pode ser comparado a uma máquina, que funciona apenas com base em lógica e dados, mas que também tem a necessidade de pensar além de sua realidade, de experimentar novas sensações extáticas para alcançar a satisfação e a felicidade (a “experiência erótico-estética” que citei acima). Em seu livro Como vejo o mundo, Albert Einstein tem uma frase que passa ideia semelhante: “Os resultados da pesquisa não exaltam nem apaixonam. Mas o esforço tenaz para compreender e o trabalho intelectual para receber e para traduzir transformam o homem.”




quarta-feira, 29 de maio de 2019

Das relações entre ciência e fé (2010)


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NOTA: Publiquei inicialmente este artigo no meu antigo blog “Pensadores Libertos” em 15 de agosto de 2010, sob o título “Das relações entre ciência e fé: um rascunho”, tendo o escrito provavelmente uns poucos dias antes. Em fevereiro de 2013 eu o repostei no blog Materialismo.net, afirmando que ainda endossava todas as opiniões expostas tanto no texto principal quanto no comentário anexo. Hoje o coloco novamente aqui, sem nenhuma alteração, adicionando apenas um breve comentário de visitante no segundo site. Como em outros textos semelhantes que publiquei ultimamente, penso hoje que algumas generalizações e classificações são simplistas e revelam muito mais o fruto de reflexões pessoais do que de aprofundamento. Mas o mais importante foi a síntese de leituras filosóficas que eu estava então apenas começando a fazer.


Um dos maiores pontos de discordância entre religiosos e irreligiosos encontra-se na qualificação das relações entre religião e conhecimento científico, entre espiritualidade e materialismo, enfim, entre ciência e fé. Para os primeiros, ambas as coisas seriam conciliáveis e até mesmo andariam de mãos dadas, enriquecendo-se e complementando-se uma à outra. Conforme os segundos, são elementos díspares, mutuamente excludentes, não se podendo ao mesmo tempo professar uma crença religiosa e produzir saberes exatos e úteis à humanidade. Parece mais razoável dizer, porém, que ciência e fé, se entendidas respectivamente como conhecimento objetivo e subjetivo, como empiria e estética, não se misturam nem se combatem: apenas caminham paralelamente como âmbitos diferentes, mas igualmente necessários, da vivência humana.

O que genericamente chamamos de “ciência” é um patrimônio quantitativo e qualitativo erigido durante mais de dois milênios, mas cuja forma final não tem mais de dois ou três séculos. Nos primórdios da história humana ‒ digo a história escrita, aquela que foi registrada e da qual temos vestígios mais ou menos constantes e seriados ‒, o saber prático era extremamente unido a concepções mágico-mitológicas do mundo, e as relações com o sobrenatural regiam tudo o que se fazia de material numa sociedade, desde as plantações até a confecção de objetos de uso cotidiano e a construção de palácios e lugares públicos. Ainda hoje os costumes populares guardam resquícios dessa superstição ‒ ainda que em escala bem menor ‒, como a escolha da melhor fase da lua para o corte de cabelos e a reserva ou rejeição de certos dias, conforme leituras numerológicas ou astrológicas, para a realização de ações.

Na Grécia Antiga, a produção clássica dividiu os saberes existentes em três tipos. A “doxa” consistia na opinião geral, naquilo que era considerado correto por ser consentido pela maioria das pessoas; hoje a chamaríamos de “senso comum”, ou “bom senso”. A “sofia” era a sabedoria, o conhecimento que se adquiria com as experiências de vida e que seria mais consistente nos anciãos; ainda temos a tendência de considerar os idosos pessoas bastante sábias. Por fim, a “episteme” formava o corpo dos resultados de pesquisas, reflexões e experiências orientados metódica e racionalmente; equivaleria à atual ciência, e buscava uma verdade além das limitações da “doxa” e da “sofia”. Apesar de todos os percalços materiais e políticos, o conhecimento sistematizado seguiu um caminho crescente até a Idade Contemporânea, ainda que por vezes tenha servido a propósitos irracionais, entre eles a teologia medieval e a eugenia nazifascista.

Não seria lícito negar, contudo, que ao lado da busca por saberes exatos e utilitários, o ser humano sentiu constantemente a necessidade de transcender as vivências ordinárias para obter o prazer, algo que se encontrava apenas em procedimentos não ligados à produção imediata, mas ao desfrute, ao gozo, à fuga das limitações materiais. Por isso, já no seio das mesmas civilizações que primeiro sistematizaram o conhecimento independentemente de concepções sobrenaturais, surgiram peças estéticas ainda hoje inigualáveis, como esculturas, templos, afrescos, epopeias e peças teatrais magistralmente belas. Sua função era fazer os criadores e espectadores imaginarem algo além do real, do cruamente palpável e vivenciável, experimentarem sensações não descritíveis pela linguagem formal, mas vividas como transcendência, como sentimento puro e simples.

Essa certamente foi a natureza das primeiras experiências espirituais individuais ou coletivas na Pré-História, a qual deu o ensejo para a sistematização de práticas e instrumentos inerentes às pioneiras religiões instituídas. Assim, a sensação estética que promovia na mente humana uma desorganização do real para um posterior rearranjo conforme as necessidades mais íntimas foi aprisionada em formas impostas e pré-fabricadas de relação com entidades bem materiais, invocadas para fins absolutamente mundanos. Sob o pretexto de aperfeiçoar as experimentações particulares ou mesmo revisá-las tomando somente uma delas como referência, a qual supostamente consistiria na “revelação verdadeira”, criaram-se dispositivos complexos de crença coletiva que regeriam o cotidiano, a partir ainda daquela fase de intersecção entre o prático e o mágico. Deu-se margem à possibilidade inútil de “mundanização” do sentimento inexplicável, ou, pior, a esfera dos procedimentos objetivos viu-se invadida por uma subjetividade codificada.

No Ocidente, para que ciência e fé voltassem a separar-se, foi necessária uma árdua luta iniciada no Renascimento e aguçada por meio das teses laicistas do Iluminismo. Ainda atualmente, os problemas dessa repugnante mescla fazem-se sentir na dificuldade que governos de países democráticos profundamente religiosos têm em aprovar leis e medidas sanitárias e sociais de caráter modernizante e cuja proibição não encontra motivos ao se deparar com o bem que faria a um número inestimável de cidadãos. De natureza semelhante foi a criação de pseudociências pelos regimes totalitários de direita e de esquerda, tornando a ciência ideologicamente condicionada. Cai-se aí na intromissão das esferas privadas no espaço público, no estorvo dos interesses majoritários por minorias ricas e bem armadas; em última instância, é a confusão entre subjetividade e objetividade: epistemologicamente ambos os tipos de conhecimento são diferentes, imiscíveis, mas igualmente necessários, complementares e formadores de civilização e bem-estar.

A ciência tem por objetivo criar conhecimento verdadeiro, útil, objetivo. Ela serve para a resolução de problemas imediatos aqui e agora, na vida real, material. Já as diversas formas de estética, como as artes plásticas, a música, a literatura, o paisagismo, o cinema e o teatro, são fins em si mesmos, visam ao prazer, à transcendência do real, à expressão de esperanças e aspirações, à consecução de sensações não codificáveis em palavras, portanto extremamente pessoais e subjetivas; se não fossem essas experiências, vazaríamos nossos impulsos eróticos e tanatofílicos para o plano prático, atrapalhando o progresso da humanidade. Se interpretarmos as relações entre ciência e fé à moda de Einstein, diríamos que a criação de modelos científicos implica grande dose de imaginação, portanto o cientista seria um “religioso” por natureza. Todavia, quando se abstrai um fato empírico, não procuramos descrições belas, interessantes apenas para quem as cria, mas úteis, igualmente interessantes para a coletividade que delas se utiliza. Assim, a separação continua fazendo sentido, pois não é a subjetividade que conta na escolha, mas a objetividade, suas relações verdadeiras com o mundo real.

A religião é um caso complexo, pois foi a protagonista, como dito acima, da transformação em eventos estético-espirituais subjetivos em padrões coletivos de normatização da vida e de relação com o sobrenatural. A pergunta seria a seguinte: ela é uma experiência estética? Eu diria que, embora seu objetivo inicial fosse de caráter estético, não só sua trajetória terminou por anular tal natureza, como também a religião se transformou numa instituição prejudicial, já que visa a legislar sobre as subjetividades e, por regras exteriores à objetividade, também sobre esta. O sentimento estético, por ser subjetivo, não está sujeito a normas preestabelecidas e não pode ser determinado de fora da própria pessoa. Além disso, sobretudo na sua forma cristã, ela procura, em prol do “corpo da Igreja”, anular qualquer experiência individual ou criação livre e restringe os prazeres, fim último da estética. Por fim, a religião criou problemas na própria realidade palpável, como conflitos, divisões, extorsão de bens materiais e atrasos culturais, atrapalhando o progresso objetivo ao sair de seu âmbito particular. Por isso, se quisermos buscar novamente a experiência estética, subjetiva e prazerosa em sua pureza, a religião não é mais o lugar apropriado: afinal, somos templos à parte.

O conflito entre ciência e fé não existe como problema lógico natural; sua criação foi a consequência dos problemas éticos e relativos à liberdade alheia criados pela intrusão de setores iniciáticos nas causas e questões concernentes ao todo de uma dada população. Não se deve ver essa oposição como um caminho de mão única, afinal cada vez mais as esferas públicas procuram, como remédio aos atrasos sociais e culturais, intervir também no espaço privado, apenas criando prejuízos ao invés de suprimi-los. A paz duradoura só virá quando se compreender que a beleza não está sujeita a enquadramentos e generalizações, e, reciprocamente, entender-se que os interesses reais, científicos e universais não podem guiar-se pelas vicissitudes de vontades anti-intelectuais, conservadoras e egoísticas.


Complemento (parte adaptada de e-mail ao amigo Romulo Souza, escrito e enviado em 11 de janeiro de 2011; comentário sobre notícia que mostra afirmações do papa Bento XVI a respeito do papel de Deus na criação do mundo, provavelmente aparecida na Veja e na Folha de S. Paulo):

Tenho que reconhecer que ciência e fé são mesmo campos distintos do conhecimento humano, e que embora não sejam a mesma coisa, mas facilmente distinguíveis uma da outra, elas são, sim, complementares, e que a existência de uma depende da outra. É um pouco semelhante à relação entre os poderes em um Estado, ou entre as duas casas de nosso Congresso: fiscalização sem mistura.

Entretanto, aqui não entendo “fé” como “religião” ou “crença cega”, mas como o funcionamento subjetivo de nosso aparelho neurológico, ou seja, a consciência que temos de nossa própria existência e da distinção que fazemos entre nós, os outros e a natureza. O animal não tem subjetividade, apenas impulsos (“instinto”, como diz Ludwig Feuerbach em A essência do cristianismo), e é por causa dessa subjetividade que sabemos abstrair, pensar etc., em resumo, ir além da realidade objetiva na elaboração de conceitos. E quando vamos além da realidade objetiva, é que a transcendemos, e é simplesmente por esse fato que entendo “transcendência”; assim, toda experiência “religiosa” (ou “espiritual”, na falta de termo melhor) é particular, subjetiva, limitada ao campo da estética, da sensação cerebral, do gosto e de uma experiência irrepetível em outras pessoas.

Dessa forma, e lembrando que além desse campo subjetivo existe um campo objetivo, ou seja, o da matéria exterior a nosso pensamento, da natureza, das coisas perceptíveis pelos cinco sentidos, penso que a religião erra em dois sentidos: ao pretender que um conceito subjetivo de Deus (de uma pessoa ou, em última instância, de um grupo) exista no mundo da realidade objetiva, ou seja, algo que é particular à experiência inalienável de alguém seja projetado no mundo das coisas existentes; e ao pretender que uma realidade objetiva, que é a religião, seus ritos, dogmas, templos etc., tenha efeitos semelhantes em todas as subjetividades, ou seja, pretender que todos tenham as mesmas sensações com os mesmos estímulos externos.

Acho que é daí que vem a pluralidade de religiões: cada subjetividade individual ou grupal percebe o mundo exterior (ou mesmo a Bíblia, certos ritos etc.) de um jeito, e é daí que nascem as cisões, de percepções diferentes acerca de um mesmo objeto. Resumindo: a religião está errada porque ela quer projetar no mundo objetivo algo que vem da esfera subjetiva de um indivíduo ou de um grupo (a ideia de Deus), e porque ela quer que algo objetivo (seus ritos) tenha os mesmos efeitos e a mesma recepção em subjetividades diferentes.

Concluindo, penso que esse campo do subjetivo, se não pode ser trabalhado pela religião, deve ser trabalhado pela filosofia (segundo Caio Prado Junior em O que é filosofia, o “conhecimento do conhecimento”) ou pela psicologia, e que o campo do objetivo deve ser reservado à ciência (ou diria até, sob o risco de reprovação dos “novos ateus”, que a ciência deveria limitar-se ao objetivo, e que as questões relativas ao sentido da vida, à “espiritualidade” e à “religiosidade” deveriam ser reservadas à filosofia).

Assim, parafraseando o dito de Einstein (e daí volto à questão da complementaridade entre ciência e “fé”), “A religião sem a ciência é cega, e a ciência sem a religião é capenga”, eu diria com mais convicção que “A filosofia sem a ciência é cega (ou seja, não tem objetivo nem objeto nenhum), e a ciência sem a filosofia (sobretudo a ética e a filosofia da ciência) é capenga”.

Comentário de Fabio Machado, dono do blogHaeckeliano”: Essa é uma das abordagens mais sóbrias que li sobre o tema. O ponto, creio eu, é que juntamos muitas coisas sob a ideia do embate entre religião e ciência. O ponto que você abordou é um de muitos. Acho que, como muitas outras coisas, essa é uma questão simples de ser feita, mas muito complicada de ser compreendida.




segunda-feira, 27 de maio de 2019

Ensino materialista histórico-dialético 2


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NOTA: Escrevi este texto em 20 de maio de 2010 como atividade pra matéria de Estágio Supervisionado I, lecionada naquele semestre na Faculdade de Educação da Unicamp pelo Prof. Dr. Silvio Sánchez Gamboa, a quem sou muito grato pela paciência e dedicação. Com leves alterações eu o publiquei inicialmente em 13 de junho de 2012 no blog Materialismo.net com o título “Que interesses pode ter o materialismo histórico-dialético para o ensino?”, sendo de fato uma versão resumida cuja variante com redação mais robusta e citações bibliográficas eu elaborei em 22 de maio de 2010 e já postei aqui. A lista de autores pode parecer heterodoxa, mas resultou de leituras feitas ao longo daquele semestre. Sua repostagem aqui atende à premência atual quanto à reflexão marxista na educação brasileira (que eu tendia a seguir mais na época da graduação), que ao invés de ter se desenvolvido virou alvo de ataques sistemáticos, na figura de um pensador que nem materialista era: Paulo Freire. Algumas alusões à época da escrita são realmente datadas, e as correções redacionais ocorreram só quando tive de atualizar o estilo.



Liberto de dogmas e de certezas pré-concebidas, o materialismo histórico-dialético pode inspirar, em toda a sua riqueza de reflexões, autores e conceitos, teorias e práticas pedagógicas inovadoras, baseadas na realidade dos envolvidos no processo e portadoras do germe da emancipação político-intelectual dos mesmos e da transformação constante de seu meio social conforme as necessidades aí surgidas.

O materialismo histórico-dialético possui três características básicas que inspiram seu nome. A primeira é a consideração das condições materiais de uma formação social como condicionantes de sua cultura e de suas instituições reguladoras, como o Estado, visto que os seres humanos, ao agregarem-se, sempre estabelecem relações de produção para sua sobrevivência. Baseado nessa ideia, o educador brasileiro Dermeval Saviani ressalta em suas obras como a escola contemporânea atende aos interesses da burguesia, ou seja, a dona dos meios de produção, ao formar, de modo segregado, operários dóceis, tecnólogos inteligentes e gerentes de pulso firme.

A segunda é a indicação da historicidade dos fatos sociais, ou seja, sua inserção em um determinado contexto temporal como única condição de sua existência. Em outras palavras, as diversas épocas históricas terão diferentes elementos palpáveis ou não palpáveis que só podem ser realmente entendidos de acordo com as características do próprio tempo: projetados em períodos anteriores, eles não fariam sentido (anacronismo), e postos no futuro, teriam sua função modificada (ressignificação). Assim, Antonio Gramsci, em muitos escritos, enxerga a escola moderna como reprodução da sociedade capitalista surgida no século 18 e maturada nos duzentos anos posteriores, e sugere um ensino unitário e humanista como corolário do futuro socialismo libertador que viria realizar o sonho do ser humano integral.

A terceira é a concepção metodológica dialética como forma de entender o mundo e produzir conhecimento. O termo, usado por Oscar Jara Holliday no livro Para sistematizar experiências, nasceu da lida com educação popular no Peru e designa uma relação entre teoria e prática, ou entre sujeito e objeto, caracterizada pela transformação e implicação mútuas, tomando-se a realidade como uma “unidade de elementos diversos” que dialogam entre si para formar um todo social orgânico. Isso se ilustra por meio da necessária imbricação entre escola, método pedagógico, pais, professores e estudantes em um mesmo contexto espacial, mas o sócio-construtivismo de Lev Vygotski aperfeiçoa a ideia: o aprendizado não seria o mero reflexo de conteúdos prontos, mas uma interação entre a sensorialidade e os condicionamentos internos da criança ou do jovem, mediados pelas relações e construtos simbólicos sociais.

Em síntese, o ensino só transforma e emancipa se atende a estes três requisitos: atentar para a base material de todas as ideologias de um grupo humano, mostrando como elas legitimam a exploração da maioria pelos detentores dos meios de produção; revelar a transitoriedade de qualquer situação histórica e de seus produtos, instando os oprimidos a levantarem-se contra seus opressores e não verem sua situação como eterna; e, por fim, ressaltar que a sociedade é um todo orgânico em constante mudança, portanto só pode ser entendida e modificada por meio de teorias que venham da vida prática, tomem-na como uma “unidade múltipla” e depois retornem a ela.

O chamado “socialismo real” não melhorou o planeta, como desejava Karl Marx, pois não o interpretou bem, apenas o distribuiu em fôrmas pré-fabricadas. Talvez novas práticas pedagógicas inspiradas no materialismo histórico-dialético, que transcendam o formato atual da escola e não se foquem em abstrações vazias, ajudem a formar novas lutadoras e lutadores por uma humanidade melhor e mais justa.




sábado, 25 de maio de 2019

Ensino materialista histórico-dialético 1


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NOTA: Escrevi este texto em 22 de maio de 2010 como atividade pra matéria de Estágio Supervisionado I, lecionada naquele semestre na Faculdade de Educação da Unicamp pelo Prof. Dr. Silvio Sánchez Gamboa, a quem sou muito grato pela paciência e dedicação. Com leves alterações eu o publiquei inicialmente em 17 de junho de 2012 no blog Materialismo.net sob o título “É possível um ensino inspirado no materialismo histórico-dialético?”, sendo de fato uma versão mais desenvolvida, com ideias mais robustas e citações bibliográficas, em relação a uma redação mais simples que eu tinha feito em 20 de maio de 2010. A lista de autores pode parecer heterodoxa, mas resultou de leituras feitas ao longo daquele semestre. Sua repostagem aqui atende à premência atual sobre o tema da reflexão marxista na educação brasileira (que eu tendia a seguir mais na época da graduação), que ao invés de ter se desenvolvido virou alvo de ataques sistemáticos, na figura de um pensador que nem materialista era: Paulo Freire. Há alusões à época da escrita que são realmente datadas, e as correções redacionais ocorreram só quando tive de atualizar o estilo.



Liberto de dogmas e de certezas pré-concebidas, o materialismo histórico-dialético pode inspirar, em toda sua riqueza de reflexões, autores e conceitos, teorias e práticas pedagógicas inovadoras, baseadas na realidade dos envolvidos no processo e portadoras do germe de sua emancipação político-intelectual e da transformação constante de seu meio social conforme as necessidades aí surgidas. O Brasil seria um dos palcos privilegiados dessa experiência, pois, apesar dos consideráveis progressos econômicos e sociais das últimas décadas, o modelo neoliberal de gestão econômico-estatal que aqui fincou raízes manteve nosso papel periférico no capitalismo internacional e gerou uma grande massa de oprimidos e excluídos da participação e da escrita históricas. Este texto confessadamente se centra menos em Karl Marx e Friedrich Engels do que em autores guiados pela obra dos dois alemães, porém mais diretamente debruçados sobre o problema do ensino e da educação em geral.

Acredito que o materialismo histórico-dialético, independentemente do referencial teórico usado, possui três características básicas que inspiram seu nome – aliás, essa caracterização provém mesmo da adição de um mosaico mais vasto de pensadores junto aos chamados “marxianos”. A primeira é a consideração das condições materiais de uma formação social como condicionantes de sua cultura e de suas instituições reguladoras, como o Estado, visto que os seres humanos, ao agregarem-se, sempre estabelecem relações de produção para sobreviver. (1) Baseado nessa ideia, o educador brasileiro Dermeval Saviani ressalta em suas obras como a escola contemporânea atende aos interesses da burguesia, ou seja, a dona dos meios de produção, ao formar, de modo segregado, operários dóceis, tecnólogos inteligentes e gerentes de pulso firme. Deve-se dar destaque a seu projeto denominado “pedagogia histórico-crítica”, a qual, justamente por sublinhar a materialidade da ação pedagógica, privilegia o cenário histórico em que se insere cada projeto de escola e a potencialidade que tais projetos têm de transformar o meio ao seu redor. (2) Os contextos dessa empreitada, diga-se, são a renovação do pensamento marxista mundial, iniciada na segunda metade da década de 1950 e culminada no fim dos anos 1980, e o fervilhar de projetos pedagógicos nacionais alternativos aos implantados pelo moribundo regime militar. (3)

A segunda característica, como já se anunciou parcialmente acima, é a indicação da historicidade dos fatos sociais, ou seja, sua inserção em cenários temporais determinados como única condição de sua existência, utilidade e significação. Em outras palavras, as diversas épocas históricas terão diferentes elementos palpáveis ou não palpáveis que só podem ser realmente entendidos de acordo com as qualidades do próprio tempo: projetados em períodos anteriores, eles não fariam sentido (anacronismo), e postos no futuro, teriam sua função modificada (ressignificação). Assim, Antonio Gramsci, marxista que viveu a precarização do trabalho e da educação sob o fascismo italiano, enxerga a escola moderna como uma reprodução em miniatura da sociedade capitalista emergida no século 18 e maturada nos duzentos anos posteriores, e sugere um ensino unitário e humanista como corolário do futuro socialismo libertador que viria realizar o sonho do ser humano integral. (4) Luna Galano Mochcovitch foi uma das autoras que, como o próprio Saviani, produziu obras que aplicam mais explicitamente essa filosofia à educação escolar, e um de seus livros mais famosos, além de introduzir o leitor leigo a vários conceitos do marxismo gramsciano, como “intelectual orgânico”, “senso comum” e “hegemonia”, articula-os para propor novos horizontes ao ensino no Brasil. (5)

A terceira característica é a concepção metodológica dialética como forma de entender o mundo e de produzir conhecimento. O termo, usado por Oscar Jara Holliday, (6) nasceu da lida com educação popular no Peru e designa uma relação entre teoria e prática, ou entre sujeito e objeto, caracterizada pela transformação e implicação mútuas, tomando-se a realidade como uma “unidade de elementos diversos” que dialogam entre si para formar um todo social orgânico. Isso se ilustra por meio da necessária imbricação entre escola, método pedagógico, pais, professores e estudantes em um mesmo contexto espacial, notada quando se convive algum tempo no ambiente escolar. O sócio-construtivismo de Lev Vygotski aperfeiçoa a aplicação da dialética ao ensino: o aprendizado não seria o mero reflexo de conteúdos prontos, mas uma interação entre a sensorialidade e os condicionamentos internos da criança ou do jovem, mediados pelas relações e construtos simbólicos sociais. (7) O bielo-russo não deixou proposições pedagógicas elaboradas em profundidade, o que deu margem para vários educadores inspirarem-se em seu trabalho e teorizarem projetos baseados na ideia da construção do conhecimento no indivíduo como uma atividade social. (8) Mas não se deve esquecer que todos os intelectuais citados neste parágrafo basearam-se na própria concepção dialética da história postulada por Marx e Engels, segundo a qual os diversos modos de produção – base material das sociedades – sucediam-se na história dialeticamente, em outras palavras, eram a síntese das contradições existentes nos modos de produção anteriores. (9)

Em síntese, a educação só transforma e emancipa se atenta para os seguintes pontos: a materialidade da base de todas as ideologias de um grupo humano, mostrando como elas legitimam a exploração da maioria pelos detentores dos meios de produção; a transitoriedade de qualquer situação histórica e de seus produtos, instando os oprimidos a levantarem-se contra seus opressores e não verem sua situação como eterna; e a organicidade e a mudança constante no seio de todas as sociedades, estas compreensíveis e modificáveis apenas, portanto, por meio de teorias que venham da vida prática, tomem-na como uma “unidade múltipla” e depois retornem a ela. Os estudantes brasileiros estão entre os que mais precisam ser instruídos conforme tais aspectos aplicáveis à análise da realidade nacional: o capitalismo neoliberal, apesar de todos os amaciamentos paternalistas dos últimos oito anos, tornou-se aqui a formação político-econômica predominante, consolidando o domínio dos operários pela burguesia; os problemas históricos advindos de uma política elitista com heranças coloniais e patriarcais, entre eles a exclusão da grande massa popular e o peso excessivo do Estado, são reversíveis se houver vontade de mudar por parte dos três Poderes e da população; e nossos modelos educacionais, geralmente importados de experiências estrangeiras ou condicionados pelas necessidades do capital internacional, devem ceder lugar a iniciativas acordes aos problemas humanos e materiais do próprio Brasil.


Bibliografia

BAQUERO, Ricardo. Vygotsky e a aprendizagem escolar. Tradução de Ernani F. da Fonseca Rosa. 2. reimpr. Porto Alegre: Artes Médicas, 2001.

GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Círculo do Livro, [1985?].

HOLLIDAY, Oscar Jara. Para sistematizar experiências. Tradução de Maria Viviana V. Rezende. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1996.

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Tradução de Maria Helena Barreiro Alves. Revisão de Carlos Roberto F. Nogueira. São Paulo: Martins Fontes, 1977.

______; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã (I – Feuerbach). Tradução de José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 1986.

MOCHCOVITCH, Luna Galano. Gramsci e a escola. São Paulo: Ática, 1988. (Série Princípios, 133.)

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 10. ed. rev. Campinas, SP: Autores Associados, 2008.

VIGOTSKI, Lev Semenovich. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. Tradução de José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto e Solange Castro Afeche. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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Notas
(Clique no número pra voltar ao texto)

(1) Karl MARX, Contribuição à crítica da economia política, pp. 23-25.

(2) Dermeval SAVIANI, Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações, passim.

(3) Ibidem, pp. 131-141.

(4) Antonio GRAMSCI, Os intelectuais e a organização da cultura, passim.

(5) Luna Galano MOCHCOVITCH, Gramsci e a escola, passim.

(6) Oscar Jara HOLLIDAY, Para sistematizar experiências, pp. 51-68.

(7) Lev Semenovich VIGOTSKI, A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores, passim.

(8) Cf. Ricardo BAQUERO, Vygotsky e a aprendizagem escolar, passim.

(9) Karl MARX e Friedrich ENGELS, A ideologia alemã (I – Feuerbach), passim.



Dermeval Saviani (n. 1943), educador brasileiro.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

URSS sitiada e Rússia reerguida (2012)


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Em abril e outubro de 2012 eu publiquei duas notas sobre história da URSS e fortalecimento da Rússia moderna no blog Materialismo.net. A primeira derivou de uma conversa que tive no Facebook com o historiador Paulo Gabriel sobre o cerco externo à potência socialista, contendo o resumo de algumas observações que ele fez. A segunda consiste, na verdade, num artigo quase completo sobre o reforço geopolítico e econômico que Moscou vivia no começo desta década, enquanto a Europa ainda patinava na crise. Com o Paulo eu não concordo em tudo, e muita coisa mudou desde então, mas ambos os textos ainda têm alguma atualidade, por isso os republico aqui, com poucas edições, junto com as introduções originais, os títulos que lhes dei no Materialismo.net e os comentários de leitores.


Cerco estrangeiro e liberdade nos países socialistas: Algumas palavras interessantes de meu colega de Facebook, Paulo Gabriel, historiador e estudioso da URSS como eu, Erick Fishuk, em mensagem privada em que debatíamos várias afirmações, em grupos da rede social, a respeito da ausência de liberdades civis nos países socialistas. Coloquei algumas notas explicativas e dei um título, e a peça pode ser incompleta e lacunar, mas consegue abrir um bom debate.

A ideia de governo unipessoal, para mim, é errônea por si só, principalmente após o surgimento dos grandes Estados modernos. Acho que no caso da URSS, a ditadura foi sempre do Partido, sempre da vanguarda revolucionária que tentava guiar o país rumo ao socialismo. No caso de Stalin, a URSS passou por épocas desesperadoras em que ela se encontrava a um passo do extermínio, com o fascismo se espalhando pelas bordas da nação. Quando o NKVD (1) descobriu redes de espionagem sinistras da Alemanha e do Japão, o país entrou em desespero como um todo. E os excessos foram regra geral, desde a população civil até altos escalões do governo. (2) No entanto, quase acabaram resultando numa destruição completa da quinta-coluna (3) na URSS, coisa que na França, por exemplo, não foi feita, tendo sido o país entregue de bandeja para os nazistas.

Eu acho que as pessoas, de modo geral, dão muito pouco valor ao cerco imposto não só à URSS, mas também a boa parte dos países socialistas do mundo. Elas acham que bloqueios econômico-tecnológicos e ações agressivas de serviços secretos não são o bastante para abalar uma nação, ou mesmo acham que as ações de sabotagem feitas pelos serviços secretos ocidentais não passam de teoria da conspiração. Tem-se uma visão muito idealista da política, muito romântica, na verdade. Eu concordo com o historiador estadunidense William Blum, (4) quando ele diz que nenhuma experiência socialista na história foi deixada em paz para se desenvolver do jeito que bem entendia: cada uma delas teve que se preocupar, primeiramente, em se defender dos agressores externos, e muitas sucumbiram sem conseguir se manter por longo tempo. E essa existência voltada à sobrevivência e à defesa de seus regimes foi um fator fundamental que moldou cada uma das experiências socialistas de forma autoritária ou, pelo menos, gerou um certo cerceamento de direitos ou uma tendência à militarização.

(1) NKVD: Narodni komissariat vnutrennikh del, o Comissariado do Povo para Assuntos Internos de 1934 a 1946, que se tornou em seguida o MVD (ministério) e, em 1954, o KGB (em russo, Comitê de Segurança do Estado). Segundo Paulo Gabriel, a principal fonte, entre outras, de sua opinião sobre o NKVD é o livro Life and Terror in Stalin’s Russia, de Robert W. Thurston, historiador estadunidense, crítico do “paradigma totalitário” de análise da URSS.

(2) Referência à segunda metade dos anos 1930, mais especialmente aos anos de 1936 a 1938.

(3) Conforme o Dicionário Aurélio, pessoa ou grupo, estrangeiro ou nacional, que atua sub-repticiamente num país em guerra ou em via de entrar em guerra com outro, preparando ajuda em caso de invasão ou fazendo espionagem e propaganda subversiva. Geralmente também se refere aos setores de direita que apoiam o alinhamento de seu país a uma ou outra grande potência capitalista.

(4) Escritor de esquerda nascido em 1933 [e falecido em 2018], crítico da política exterior dos EUA e de seus excessos ao redor do mundo, opositor da Guerra do Vietnã e da “guerra contra o terror”, editor da imprensa alternativa e afinado ideologicamente com Noam Chomsky e Ralph Nader.


Fortalecimento regional da Rússia: Por meio de meu canal no YouTube e de nossos grupos no Facebook, mantenho sempre contato com pessoas interessadas nos mesmos temas que eu, especialmente a história da URSS e a língua russa. Por vezes até desperto uma falsa sensação de entender bastante da história da Rússia, mesmo em seu período atual: o que não deixa de ser verdade, claro, em comparação com certos jovens de minha idade, até mesmo universitários, mas também esconde certa falta de tempo e disposição minha para acompanhar ativamente o cotidiano desse grande país, por meio da mídia e da literatura. Na verdade, o que tenho de informações são gotas que adquiro, como diria o Giuliano, “por dever de ofício”, ou mesmo por meio de manchetes e outras postagens surgidas involuntariamente em minhas redes de contato.

Pois bem, há algum tempo tenho contato por e-mail com uma pessoa que me conheceu por meio dos meus vídeos, sempre curiosa e disposta a debater questões da Rússia contemporânea e da URSS, e de quem frequentemente tiro algumas dúvidas simples. Recentemente, ele me escreveu que, lendo o Diário da Rússia [hoje sumido da rede] e há algum tempo reunindo matérias, percebia que nos comentários recentes estaria ventilando “a vontade de Putin de ressuscitar a URSS”.

Baseando-se nesta matéria [link quebrado] de meados de setembro [de 2012] sobre a reunião em Moscou, em dezembro, de três encontros importantíssimos para a região, mas de igual repercussão mundial, meu contato sugere que “diversas atitudes têm se mostrado a passos rumo a uma unificação, mesmo que lenta, porém com fortes pretensões de uma união euro-asiática”, observando ainda que “o objetivo é o ingresso da Ucrânia” nessas iniciativas [como sabemos, frustrado com as revoltas de 2014].

Solicitada minha opinião sobre “os fatos e acontecimentos” acima, respondi o seguinte, aqui postado com ligeiras adaptações. Adianto que sou o único responsável por possíveis imprecisões fatuais e equívocos conceituais ou analíticos, sendo bem-vindas, obviamente, as sugestões, críticas e correções.

Não é de hoje que a Rússia tem recuperado sua influência sobre a região da antiga URSS: nos tempos de Ieltsin, o país estava muito fraco, mas Putin, desde que assumiu pela primeira vez a presidência, em 1999, notando o evidente descaso com a infraestrutura, a defesa e o moral do povo, tratou de buscar reestruturá-los com um claro viés nacionalista e, por vezes, intervencionista. As constantes incursões na Tchetchênia são uma prova disso, e a guerra com a Geórgia em 2008, mais cabalmente ainda.

É um jogo que, em última hipótese, ressuscita em parte a “guerra fria”, pois opõe um grande país “oriental”, que é a Rússia, com todo um conjunto de hábitos e costumes próprios, ao país-símbolo do “Ocidente”, os EUA, com valores e práticas absolutamente diversos, tendo em comum, é claro, a enormidade dos recursos naturais e humanos e a necessidade de submeter outras regiões à sua influência, de modo mais ou menos explícito [podemos lembrar o exemplo da Crimeia e do Donbass novamente em 2014]. (A China também entra no jogo, talvez se unindo à Rússia muitas vezes não exatamente por afinidades ideológicas, mas pela necessidade de encarar o inimigo comum estadunidense.)

E de fato, nos anos 2000, essa briga tem se tornado mais acerba no campo das disputas políticas internas de certos países estratégicos, polarizados entre o apoio a uma ou outra potência. Na primeira metade da década, vimos chefes de Estado pró-EUA tomarem força e se elegerem, como Saakashvili (Geórgia) e Iushchenko/Tymoshenko (Ucrânia), mas algum tempo depois esse quadro acabou se revertendo (especialmente na Ucrânia de Ianukovich), e mesmo nos países túrquicos da Ásia Central várias bases norte-americanas foram fechadas para a abertura de russas. Porém, é de peso igualmente crucial a estabilidade no poder que encontraram certos autocratas favoráveis à manutenção de seus países na órbita russa, e falo em particular de Aleksandr Lukashenko, de Belarus [que também tem sofrido contestações internas nos últimos anos], e de Nursultan Nazarbayev, do Cazaquistão [que renunciou em 2019], hoje aliados fundamentais e que estão desde os anos 1990 no poder. (Note-se, também, o estilo de governo do próprio Putin, muito semelhante, o que nos faz até mesmo questionar se o modelo dito “democrático” dos países ocidentais desenvolvidos é realmente uma panaceia universal, dada a estabilidade e a força que aquelas nações têm vivenciado.) Esses países, no mais, além de relativamente grandes e populosos, foram dos últimos a declarar a independência da URSS, no caso, o Cazaquistão, poucos dias antes da renúncia de Gorbachov.

Contudo, falar em “ressurreição da URSS” me parece mais um jogo retórico, até mesmo com algum grau inconfesso de nostalgia por uma situação que rendia muitos dividendos aos causadores ou propagadores de polêmicas. A URSS foi criada em 1922 num contexto muito específico, em que se buscava empurrar o antigo Império Russo para a modernização administrativa e econômica de sentido socialista. Na verdade, sua criação representou antes uma descentralização com relação ao tsarismo, pois houve perdas territoriais significativas na parte ocidental, enquanto as atuais Repúblicas estavam praticamente sendo criadas e recebendo uma estrutura estatal [em russo, gosudarstvennost] que não possuíam antes (muitos dos povos aí residentes eram nômades). Assim, creio que teria sido impossível se passar do Império Russo para a configuração moderna da região sem o intermédio da URSS. O que vemos hoje é mais uma reconfiguração do poder mundial, que representa não apenas um crescimento isolado da Rússia, mas também certo descrédito no monopólio dos EUA (que parecia inconteste com o fim do socialismo na Europa) e a ascensão dos chamados “países emergentes”, incluindo aí, além da China, o Brasil, a Índia e a África do Sul. Em todo caso, é certo que a Rússia recupera cada vez mais sua influência e poder, mas falar em socialismo ou comunismo é uma piada: nunca quis Putin algo mais do que se inserir justamente na lógica do mercado mundial, como se pode notar no recente ingresso do país na OMC.

Comentário 1: Comparem o PIB dos países da ex-URSS, que em vez de ficarem no limbo ideológico pós-soviético, apostaram seriamente na modernização das suas economias. Alguns já vivem melhor que Portugal (apesar de terem um nível de corrupção maior do que o português):

  • A Estônia tem um PIB per capita superior ao português (US$ 21 000);
  • A Letônia tem um PIB per capita equivalente ao português (US$ 18 000);
  • A Lituânia tem um PIB per capita equivalente ao português (US$ 20 000) (fonte citada)

Comentário 2: Concordo com artigo. Acho que é bem isso mesmo. O que está em jogo é a disputa pela hegemonia mundial, tendo a Rússia chances de sair bem. E Putin, ao resgatar o sentimento de nacionalismo, que de certa forma foi um elemento para incentivar boa parte do crescimento da URSS, dá um passo à frente. Se não me engano, essa questão da integração (que não deve passar de bloco comercial, com objetivo de fortalecer a Rússia no cenário mundial) tem apoio dos comunistas, inclusive daqueles das ex-repúblicas da URSS.

Comentário 3: Interessante. Eu compartilho o ponto de vista de que a Rússia está perdendo o Grande Jogo na Ásia Central para a China. Hoje ela exerce muito mais influência no Cazaquistão e no Uzbequistão do que a Rússia.

Bom, para começar, vou citar o exemplo do Cazaquistão. Ele busca estreitar as relações com a Rússia para poder trazer a China até seu território. As caras reservas petrolíferas cazaques atraem muito a China. Para fugir da Mãe-Rússia, o Cazaquistão faz alianças com a OTAN, além de aproveitar que a China está mostrando que precisa de muita energia e está disposta a pagar caro por ela. A sede da Companhia Nacional Chinesa de Petróleo em Astana – a moderníssima capital do país – parece uma segunda embaixada.

Outro ponto interessante é a construção do oleoduto Atasu-Alashankou, que leva petróleo do mar Cáspio até a fronteira com a China, abastecendo sua rede de energia. O presidente Nazarbayev declarou, em 2005, que o petróleo consolida a amizade sino-cazaque. A Sinopec (Companhia Petroquímica da China) irá explorar mais petróleo cazaque e pretende interligá-la com a rede leste-oeste que vai de Xinjiang até Xangai. A cada ano mais e mais chineses mudam-se para a parte nordeste do Cazaquistão, e muitas placas de Almaty estão em chinês. O interesse de expandir seu território para o oeste faz com que a China estabeleça fortes parcerias e receba concessões do governo do Cazaquistão, que, em matéria de economia, está muito à frente da Rússia.

Comentário 4: Amigo [referência ao 2], o que justamente o autor do texto [eu, no caso] quer dizer não é uma compensatória econômica transacional, própria do raciocínio ocidental, mas justamente consolidar uma ampla aliança eurasiana que abrace países europeus e asiáticos para se valerem de uma voz multipolar (leia-se transcritos do prof. Aleksandr Dugin).



Antiga sede do NKVD/KGB, hoje sede do FSB, em Moscou.

terça-feira, 21 de maio de 2019

Estado laico ou Estado ateu? (de novo)


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NOTA: No ano passado, republiquei um texto meu de 2012 chamado “Estado laico ou Estado ateu?”, que inicialmente tinha saído no blog Materialismo.net. Porém, quando fui olhar os arquivos dessa página, me dei conta que o referido texto tinha se originado de uma conversa em privado pelo Facebook com um antigo colega de escola, e que lá estava não só uma edição dessa conversa, mas também introduções e explicações minhas sobre o tema. Dessa forma, pra completar o material que faltava, estou publicando hoje o debate com meu ex-colega, as introduções que fiz então a ela e ao artigo e comentários feitos então por visitantes nas duas postagens. Se fiz agora alguma alteração, foi pra que a redação pudesse ficar fluente ou prescindir das velhas referências imediatas.


Como prometi no domingo passado [6/5/2012], estou publicando uma versão editada da conversa por mensagens que tive com meu amigo Thiago Leme há um tempo atrás a respeito da diferença entre um Estado laico e um Estado ateu, e que originou o texto que publiquei naquele dia, “Estado laico ou Estado ateu?”, também encontrado na Revista Verdade de abril deste ano.

A reprodução quase integral da conversa tem a vantagem de exibir mais detalhadamente o fio do raciocínio que me levou àquele texto, e pode até ser mais esclarecedora do que o resultado final. Sem mais delongas, segue abaixo a conversa, lembrando que as ideias não foram modificadas, mas se excluíram alguns traços de linguagem oral, de assuntos paralelos e de tratamento pessoal ou de gentileza. Além disso, sou o único responsável por informações errôneas ou imprecisas que possam existir na minha fala.

Thiago Leme: Erick! Desculpe incomodar seu domingo de Páscoa, mas me surgiu uma dúvida bem básica na cabeça que eu acho que você pode solucionar... Qual a real diferença entre um Estado laico e um Estado ateu? Um Estado ateu necessariamente reprimiria as religiões? Não sei, acho que fico um pouco confuso com as definições de laicidade (se é que esse é o termo correto).

Erick Fishuk: Bem, vamos lá, no pouco que eu posso chegar, recordando que necessariamente tive que ser longo... Primeiramente, uma palavra sobre “ateísmo”. É difícil defini-lo estritamente como uma “irreligião” ou como uma simples “ausência de religião”, como faz a maioria, porque estas duas posições constituem uma indiferença com relação à religião (ou, em última instância, ao teísmo), ou ainda porque conceitos como “religião” e “Deus” podem ser estranhos à linguagem delas. Exemplo: o budismo, dessa forma, não seria uma “religião ateia”, mas simplesmente um sistema “não teísta”.

O ateísmo, pois, não é uma indiferença, e sim uma contraposição, uma negação do teísmo e das religiões, uma atitude positiva nesse sentido. Assim, se o ateísmo, para ser mais exato, não é uma religião, mas também não é apenas uma “irreligião” ou uma simples “ausência de religião”, ele seria, digamos, uma postura para com a religião e o teísmo, porque ele só é concebível tendo como referência a religião e o teísmo originais que ele nega.

(É claro que, de alguma forma, tudo o que não é teísmo e religião se encaixa nas categorias “irreligião” e “não teísmo”, e assim, da mesma forma, o ateísmo e a antirreligião. Mas aquele esclarecimento tem mais o fim didático de lembrar que nem todo “não teísta” ou “irreligioso” é ateu ou antirreligioso, e que dizer que “ateísmo” é simplesmente “não acreditar em Deus” ou “ausência de crença” é uma definição muito pobre.)

Agora, relacionando isso com sua pergunta. É claro que um Estado ateu não seria um Estado laico, porque o ateísmo, não sendo uma simples “ausência de crença”, mas uma “postura para com a crença”, também terminaria por se tornar uma visão de mundo favorecida. Laicidade é neutralidade, ou seja, o Estado não favorece a propaganda de nenhuma crença em especial, seja teísta, antiteísta ou mesmo não teísta. Todos têm direitos iguais, na medida em que não são nem mais nem menos favorecidos ou, da mesma forma, nem são favorecidos. O Estado não oferece subsídios a nenhuma dessas organizações privadas, e todas, assim, encontram as mesmas condições e obstáculos para sua propagação. A escola, por exemplo, limita-se a ensinar ciência, ou seja, o conhecimento do mundo objetivo, deixando que a questão subjetiva/religiosa/moral seja restrita à família ou ao círculo de criação.

Como você bem sabe, não é isso exatamente que acontece no Brasil, e não preciso citar exemplos. E pessoalmente não penso que seja possível que os Estados nacionais, na forma que existem hoje tanto no Ocidente quanto no Oriente, possam ser realmente laicos, pois religião e Estado nasceram juntos no início da civilização, e certamente só a superação deste modelo de Estado é que vai gerar a superação da instituição religiosa tradicional e, além disso, uma mudança na relação entre governo das coisas objetivas e espiritualidade pessoal. Tratei disso em textos antigos, que pretendo socializar em breve no blog [a maioria já publicada aqui], mas se quiser já os envio a você por e-mail.

É difícil dizer se um Estado ateu necessariamente persegue as religiões, pois temos muitas variantes nesse tipo de pergunta. Na prática, os únicos Estados ateus que existiram até hoje foram os países do chamado “socialismo real”, ou seja, eles deliberadamente perseguiam religiões e religiosos e faziam propaganda do ateísmo (e não apenas da visão científica do mundo), especialmente a URSS em seu início. Na teoria, porém, podiam adotar ou o princípio da laicidade, como a própria URSS em todas as suas Constituições, ou mesmo o explícito “ateísmo de Estado”, como a Albânia comunista de Enver Hoxha por uma lei de 1967 (além do que, na Constituição de 1976, se afirmaria que “a religião foi varrida do país” e que “é proibido manter organizações religiosas”).

Por outro lado, Estados ocidentais que hoje, por um ou outro motivo, têm uma religião oficial, não necessariamente perseguem as outras. As monarquias nórdicas, por exemplo (como a Suécia dos míticos “85% de ateus”...), têm as Igrejas luteranas nacionais como religião de Estado, cujo líder, como no Reino Unido, é o monarca, cuja família deve ser necessariamente filiada a essa religião. A Argentina também tem o catolicismo como religião oficial, e nem por isso deixa de ter indicadores sociais mais avançados do que o Brasil. (Como você sabe, muita coisa no Brasil só existe no papel, e nossa própria laicidade estatal não deixa de ser um adorno positivista sem paralelo na realidade...)

Agora, quanto à ideia do “Estado ateu”, não creio ser ela defendida por nenhum “ateu ocidental” (uma redundância) das principais democracias: parece-me que todo ateu, em geral, é um laicista, ou seja, defende a laicidade do Estado, até porque quase todo ateu é um liberal e não quer impor suas crenças aos outros, como os cristãos fundamentalistas; ele sabe que o favorecimento de sua própria crença pelo Estado desfavoreceria as outras religiões, o que justamente acontece com ele hoje. Por isso, toda luta contra perseguições religiosas a cristãos, muçulmanos etc. em todos os países também é uma luta dos ateus enquanto laicistas/secularistas.

Daí a necessidade de se desfazer uma confusão. Geralmente certos intelectuais católicos arbitram uma diferença falsa entre “laicidade” e “laicismo”, dizendo que a primeira seria a “qualidade do Estado laico que não favoreceria nenhuma crença”, enquanto o segundo seria a “doutrina daqueles, especialmente ateus, que querem afastar a religião da vida pública”. Nada mais errôneo! Na minha opinião (outros podem discordar), “laicidade” é, de fato, a “condição do Estado laico, ou de qualquer outra esfera pública ou privada”, enquanto o “laicismo” nada mais é do que a “doutrina que prega a laicidade dessas esferas” para que nenhum credo se favoreça. Simples desfazer esse jogo de palavras, não?

Thiago Leme: Acho que discordo de você na questão da definição de ateísmo, e isso influencia minha leitura de todo o resto. Minha definição é mais próxima da definição “pobre” que você citou: a meu ver, ateísmo é a ausência de crença em uma divindade. Falo isso porque nem todo ateu é antirreligioso, e porque a maioria de nós é ateu porque percebe a falta de evidências da existência de um poder divino. É praticamente uma questão de sermos indiferentes...

Eu não só sou “a-teísta” como sou “a-crente em unicórnios” ou “a-crente na homeopatia”. Não é uma questão de termos uma posição contra essas crenças. Apenas não participamos delas.

Não sei se faz sentido o que acabei de escrever. Ou se no fundo pensamos da mesma maneira. Só acho que da maneira que você colocou, deu uma importância grande demais para a “superstição Deus”.

A meu ver, o Estado não deve incentivar nem dar apoio a nenhuma crença infundada. Nisso eu incluo a religião, a homeopatia, a astrologia, a crença em duendes etc.

Dessa forma, a meu ver, o Estado deve ser “a-teísta”, “a-crente em duendes”, etc.

Claro que não acho que devemos ir na casa das pessoas e impedi-las de fazer cultos aos duendes, mas o Estado deve agir como se não existissem duendes, e agir como se não existisse Deus. E por isso deve ser ateu.

É provável que o meu Estado perfeito, que eu chamo de Estado ateu, você considere Estado laico, e eu esteja confundindo as definições.

Erick Fishuk: Quando falo “indiferente”, talvez não esteja querendo dizer a mesma coisa que você: penso-a como a não correspondência da noção de deuses no vocabulário conceitual de determinada crença, como no budismo e em outras crenças orientais ou ditas “primitivas”. (Por isso dou atenção à “superstição Deus”, mais precisamente ao conceito filosófico do Deus onipotente, onisciente etc.) O ateu, justamente por negar o monoteísmo (e mesmo involuntariamente, já que a negação implica que o conceito negado faça parte de seu vocabulário conceitual), não pode ser indiferente.

E negar não é necessariamente combater militantemente: por isso, como você bem disse, nem todo ateu é antirreligioso (na prática, o conceito de deuses protagoniza uma querela filosófica intelectual, enquanto a religião é uma instituição material, política, que tem implicações mais sérias). Além disso, apenas ser indiferente (o que pode advir também do conceito de deuses ter-se tornado estranho à filosofia pessoal do indivíduo) não é ateísmo: é, no máximo, “não teísmo”, categoria na qual o ateísmo também se encaixa. Assim, todo ateu é um não teísta, mas nem todo não teísta é ateu.

Na verdade, é disfuncional a gente fazer uma lista do que a gente não crê, colocando “a-” em tudo. Acontece que o termo “ateísmo”, tendo sido originariamente cunhado para designar quem não acreditava na religião oficial, passou a designar, só a partir do século 18, uma doutrina bem claramente definida de negação da religião, do conceito de deuses e da metafísica tradicional. Assim, ele não é, na prática, uma mera ausência ou indiferença, mas uma doutrina positiva.

O “Estado laico” deve ser indiferente a doutrinas particulares positivas, até porque, em todo caso, embora o ateísmo não seja uma religião no sentido estrito, é uma postura para com ela. O “Estado laico”, assim, é indiferente, nem ajuda nem atrapalha, e como eu disse, isso não é ateísmo. Portanto, por exemplo, a escola deve apenas se limitar a ensinar ciências objetivas: se elas levam ou não ao ateísmo, isso é decisão pessoal do estudante ou da família/comunidade em que ele vive. Por isso, mesmo propaganda do ateísmo o Estado ou a escola não devem fazer.

Comentário de Lucas Moreira Jorge: Filosoficamente, o ateísmo pode ser compreendido de duas formas: o ateísmo agnóstico seria a negação da divindade em qualquer manifestação, mesmo que absolutamente incompreensível; o ateísmo gnóstico seria a negação da divindade enquanto não há explicação racional para o incompreensível.

Assim, enquanto o ateu agnóstico está vitaliciamente [sic] convicto de que nenhum evento é nem será resultado da intervenção divina, o ateu gnóstico se mantém aberto em mudar seu posicionamento, passando a ser crente no irracional, desde que algum evento divino ocorra diante de seus olhos.

Introdução de 2012 a “Estado laico ou Estado ateu?”: Este título tem uma breve história. Tudo começou quando meu amigo ateu daqui de Bragança Paulista, Thiago Leme, professor de Matemática formado, assim como eu, pela Unicamp, me escreveu privadamente indagando se o Estado laico não seria idêntico a um “Estado ateu”, já que não apoiaria nenhuma religião em especial.

Respondi argumentando, basicamente, que a diferença básica entre um “Estado laico” e um “Estado ateu” é que o primeiro não apoia nenhuma crença, nem mesmo o ateísmo, ou seja, mantém-se neutro no quesito teísmo e religião. Já o segundo faria propaganda explícita do ateísmo como negação da divindade e, mesmo que não proibisse outras crenças religiosas, não deveria manter-se neutro quanto a opiniões sobre o teísmo e as religiões, atacando-as frontalmente como política oficial.

A confusão básica que o Thiago fez foi pensar que “ateísmo” é simplesmente “não crer em deuses”. Ora, “não crer em deuses” é a atitude de qualquer pessoa cuja religião ou filosofia de vida não opera com o conceito de “deus” e que, portanto, não pode negá-lo explicitamente.

Os dicionários filosóficos, em oposição aos comuns da língua portuguesa, ressaltam bem que “ateísmo” é a “negação de Deus”, e geralmente usam “Deus”, e não “deuses”, porque o ateísmo, um conceito ocidental, nasceu justamente da negação do Deus único cristão. (É claro que o Giuliano não concordaria comigo sobre a “origem histórica” do ateísmo, mas isso não afeta a definição filosófica com a qual concordamos.)

Depois de minha resposta, o Thiago ainda escreveu algumas novas indagações, e também as respondi prontamente. Talvez por falta de tempo, ocupado com seu ótimo trabalho, ele não me retornou a nova resposta, mas creio que o ciclo já é suficiente para criar uma postagem sobre o assunto, com o material editado de nossa conversa.

Por enquanto, me limito a publicar um artigo que escrevi para a Revista Verdade, daqui da região, de abril deste ano [2012], inspirado nessa conversa, mas de modo bem mais resumido e, no bom sentido, vulgar. O título do artigo é mesmo “Estado laico ou Estado ateu?”, e o acréscimo da “parte” nesta postagem [que tinha o subtítulo “parte 1”] deveu-se à continuidade do assunto, que vou proceder na quarta-feira publicando a conversa.

Comentário de Fabio Machado, dono do blogHaeckeliano”: Tenho algumas questões sobre esse tema. Apesar de entender o argumento, eu consigo ver como um religioso veria que um estado laico é, de fato, um Estado ateu.

Muitos religiosos (neopentecostais e até muçulmanos) veem a cultura ocidental como algo desvinculado de Deus, e não meramente imparcial. Algo que avança, com sua “democracia” e “iPads”, uma agenda ideológica que busca cortar a influência religiosa da sociedade, o que tornaria, na prática, o secularismo em uma postura ativa de antirreligião.

Essa postura é muito visível no caso norte-americano do neocriacionismo, onde a estratégia desenvolvida para inserir religião nas salas de aula foi feita a partir da proposição de que o “Darwinismo” era a fonte de todos os males modernos. O secularismo, nesse caso, defende o ensino de evolução, que é maléfico e impositivo [segundo os religiosos], enquanto o “design inteligente”, mesmo que sob uma roupagem secular, balanceia a equação.

Esse é um caso específico, mas poderia ser estendido para outros aspectos da vida moderna, onde advogar por “ciência e razão” é, efetivamente, ir contra preceitos religiosos de uma parcela considerável da população. Como, então, convencer alguém que tem crenças religiosas que são diretamente contrárias à laicidade do Estado de que o Estado laico não é contrario à sua religião (sendo que nesse caso [da visão religiosa extremada] ele é)? Ou ainda, nesse caso, por que o Estado não passa a ser efetivamente ateu, se ele está sendo contrário a um tipo específico de religião que fere a laicidade?

Minha resposta: Caro Fabio, obrigado pela leitura e pelo seu comentário. O ônus de não distinguir entre Estado laico (que não interfere em questões religiosas) e Estado ateu (que interfere, no sentido de suprimi-las ou contrariá-las) é dos próprios religiosos.

Na verdade, esses dois conceitos (Estados laico e ateu), próprios das sociedades ocidentais, são inseparáveis do próprio desenvolvimento histórico delas: é claro que o Estado laico, das sociedades democráticas, e o Estado ateu, dos Estados socialistas ditatoriais.

Assim, no caso específico do Estado laico, ele foi condição para que todas as religiões pudessem ter igual oportunidade de manifestação, o que deu muito certo nas sociedades ocidentalizadas desenvolvidas.

No Brasil, é claro, onde todas as ideias que importamos da Europa não passam de fachada, Estado constitucionalmente laico não implica Estado efetivamente laico: vemos isso pelo favorecimento oficial dos cristianismos, especialmente o católico.

Portanto, disso inferimos que laicidade e democracia representativa são totalmente estranhos a certas sociedades, como a islâmica. Não é à toa que o líbio Gaddafi dizia que os parlamentos eram uma farsa, e criou um regime no qual o islã era a religião oficial.


        

domingo, 19 de maio de 2019

Santo Erick, ou dia do nome na Europa


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No último dia 18 de maio, me marcaram na postagem de um grupo do Facebook que reúne habitantes da Catalunha francesa. Segundo a tradição europeia, sobretudo da França, cada dia do ano é dedicado a uma santa ou santo com diferentes nomes, e esse dia acaba sendo celebrado também como o do “nome” desse santo. Assim, muita gente chamava a filha ou filho de acordo com o santo que era celebrado no dia do nascimento, ou a pessoa tinha seu nome “celebrado” nessa data, como se fosse um segundo aniversário. Acabei descobrindo que 18 de maio era dedicado a santo Erik da Suécia, cuja existência eu mesmo desconhecia, mas cujo texto explicativo no grupo achei interessante. Tanto que acabei decidindo o reproduzir aqui, junto com a íntegra de onde saiu outro pedaço postado num comentário. O texto inicial, no qual fiz pequenos reparos, pode ser achado em diversas fontes, mas aproveitei pra copiar desta página o texto adicional inteiro, ambos traduzidos por mim. Naturalmente, as alusões são quase sempre à realidade francesa, na qual “Erick” se escreve “Éric” (ou quase sempre “Eric” em inglês), enquanto a biografia de Erik 9.º, na verdade, é mais envolvida em mistérios e imprecisões do que parece à primeira vista. Esta página mesma dos EUA já conta uma história meio diferente da que está na Wikipédia. Seguem abaixo minha tradução em português e os originais revisados em francês:



Significado: O prenome Éric vem do prenome escandinavo Eirikr, derivado da palavra rikr, que significa “soberano”. O prenome Éric é de origem germânica. Ele é composto por ehre, que pode ser traduzido por “honra”, e rik, que significa “chefe, rei, poderoso”.

Santo Erik (santo Érico): Santo Erik foi um evangelizador e é padroeiro da Suécia. Foi proclamado rei da Suécia em 1156 e consagrou todo o seu reinado à evangelização do povo sueco, bem como dos povos vizinhos. Ele teria notavelmente liderado uma cruzada contra os pagãos finlandeses. Morreu assassinado em 18 de maio de 1160, e sua festa é em 18 de maio.

História: Santo Erik da Suécia, rei da Suécia falecido em 1160. Como Erik 9.º, sendo genro do rei Smercher (Sverker) da Suécia, foi eleito para o suceder em 1141. Ele demonstrou grande apreço pela aplicação da justiça. Valeu-se de toda a sua influência pra evangelizar os súditos codificando as leis de seu reino, redigidas por ele num espírito cristão e sem querer os forçar à conversão. Esforçou-se por converter os finlandeses e, os tendo subjugado, decidiu conquistar a Finlândia, tanto pra expandir seu domínio quanto pra divulgar o Evangelho. No selo da cidade de Estocolmo podemos encontrar a representação de um retrato de Erik 9.º. Ele foi assassinado in odium fidei (ou seja, por um não católico por motivos religiosos) enquanto saía de uma missa, em 18 de maio de 1160 em Turku, porto situado no sudoeste da Finlândia. Ele é o santo padroeiro da cidade de Estocolmo.

História do prenome: Éric é um prenome muitíssimo difundido nos países escandinavos e de língua inglesa. Foi no começo dos anos 1960 que ele conheceu o ápice do sucesso na França, se encontrando no pódio dos prenomes mais apreciados. Não se pode negar o impacto do famoso romance Le prince Éric (O príncipe Éric) em sua porção de popularidade. Mesmo se hoje relativamente poucos são batizados como Éric, tendo sua popularidade caído fortemente, esse prenome é usado por aproximadamente 307 mil pessoas na França europeia. A idade média dos Éric é de 52 anos.

Personalidade: Às vezes reservado, mas de temperamento decidido, Éric gosta de correr riscos e descobrir coisas novas. Tudo o que ele empreende é coroado de sucesso graças à sua originalidade e seu espírito de iniciativa. Isso, mesmo se às vezes ele age antes de pensar! Tanto no amor quanto em outras esferas da vida, Éric é um apaixonado. Ele é excelente pra liderar um time e o levar até a vitória.

Os Éric famosos são muito numerosos, entre eles: Éric Serra, compositor; Éric Satie, compositor e pianista; Éric Cantona, jogador de futebol; Éric-Emmanuel Schmitt, escritor, dramaturgo e diretor de cinema; Éric Rohmer, diretor de cinema; Éric Legrand, comediante; Éric Herson-Macarel, comediante; Éric Zemmour, jornalista e cronista; Éric Naulleau, jornalista e cronista; Eric Clapton, músico, cantor e compositor britânico; Eric Von Stroheim, comediante americano, cineasta e escritor do século 20; Eric Butorac, tenista americano; Eric Stoltz, comediante americano.

Prenomes semelhantes: Erick, Erik, Erico, Emeric, Eurico, Emerick, Enric, Eryck são derivados do prenome Éric.

Ditado do dia (impossível traduzir o jogo original de sons): Bom fazendeiro o de santa Juliette, deve vender suas frangas. No dia de santa Coralie, todos os lilases florescem. Sol no dia de santo Erik promete tonéis cheios de vinho.

Quem ele é? Éric é um rapaz dinâmico, viril e empreendedor. Possui um charme garantido do qual ele tem plena consciência... Antes materialista e interesseiro, sabe agarrar as oportunidades que lhe são oferecidas. Em geral é um excelente financista que ama o mundo dos negócios. Seu poder de persuasão é importante. Quando ele deseja algo, demonstra ser determinado e obstinado. Tem muita energia e precisa de exercícios físicos, sem os quais ele logo ficaria bastante agressivo... ou ganharia um pouco de peso!

Um tanto vaidoso, Éric é sensível à bajulação. Mesmo tendo um espírito vivo e crítico, nem sempre tem senso de humor, e sua irritabilidade é grande. Particularmente curioso, se interessa por assuntos diversos que nem sempre são aprofundados, daí um lado superficial e uma busca pela facilidade. Ele confia em si mesmo e às vezes dá até mostras de autossatisfação, o que lhe permite ter sucessos bastante fáceis.

Pouco importa se não conclui seus estudos por falta de motivação: ele é do tipo que sempre vai saber se virar! Afirma ter uma boa moralidade e princípios, mas frequentemente são os votos piedosos que ele não pratica com aplicação... Ele possui uma inteligência prática, bem como uma destreza manual acima da média, podendo ser excelente no “faça você mesmo”.

Na infância, Éric sabe fazer com que o amem, mas é possessivo. Ele precisa acumular pra ter segurança e se mostra muito interessado em sua mesada. Em geral dotado, se revela um aluno brilhante se auxiliado, vigiado e, sobretudo, motivado, mas sua impaciência e instabilidade podem lhe pregar umas peças. Ele gosta de rir e se divertir, nem sempre levando a vida a sério. Estudar línguas e passar um tempo no exterior renderia muitos frutos a essa natureza profundamente adaptável.

Do que ele gosta? Éric é um homem que tende de bom grado aos prazeres e tem uma alma epicurista. Entusiasta, gosta de provar uma sensação de liberdade em todas as esferas, pois não aceita nenhum constrangimento. Ele adora a ação, o movimento, bem como renovar suas emoções e sensações com viagens. Inimigo da monotonia, não foi feito pra vida padronizada. Sentimentalmente, é um amante possessivo e ciumento que desfruta de um lado sedutor. Sua sexualidade é forte e às vezes ele pode parecer pouco delicado, mesmo sabendo demonstrar uma intuição real. Pouco fiel, prega que os outros sejam fiéis e não tem receio de se usar como exemplo.

O que ele faz? Ele vai escolher uma profissão de contato, de poder ou lucrativa. Por isso, vai ser atraído por carreiras relacionadas à finança ou aos negócios, profissões técnicas (ligadas ao automóvel ou à indústria) ou científicas (engenheiro), atividades comerciais ou ligadas às viagens ou o que tem relação com prazeres ou jogos.


Signification : Le prénom Éric vient du prénom scandinave Eirikr, tiré du mot rikr qui signifie « souverain ». Le prénom Éric est d’origine germanique. Il provient de ehre, que l’on peut traduire par « honneur », et rik, qui signifie « chef, roi, puissant ».

Saint-Éric : Saint Éric, évangélisateur et patron de la Suède. Il fut proclamé roi de Suède en 1156 et se consacra tout au long de son règne à l’évangélisation du peuple de Suède, mais aussi des peuples voisins. Il aurait notamment dirigé une croisade contre les païens finlandais. Il mourut assassiné le 18 mai 1160. Il est honoré le 18 mai.

Histoire : Saint Éric de Suède, Roi de Suède (m. 1160). Éric IX, gendre du roi de Suède Smercher (Sverker), élu pour lui succéder en 1141. Il montra grand soin pour l’administration de la justice. Il usa de toute son influence pour évangéliser ses sujets par la codification des lois de son royaume qu’il rédigea dans un esprit chrétien, sans vouloir les forcer à la conversion. Il travailla à la conversion des Finlandais et les ayant subjugués, décida de conquérir la Finlande, autant pour l’expansion de son domaine que pour y porter l’Évangile. On trouve sur le sceau de Stockholm, figure un portrait d’Éric IX. Il fut assassiné en haine de la Foi, à sa sortie d’une messe, le 18 mai 1160, à Turku, port situé au sud-ouest de la Finlande. Il est le saint patron de la ville de Stockholm.

Histoire du prénom : Éric est un prénom extrêmement répandu dans les pays anglophones et scandinaves. C’est au début des années 1960 qu’il a connu son plus grand succès en France en se plaçant sur le podium des prénoms les plus appréciés. L’impact du célèbre roman Le prince Éric sur sa cote de popularité est indéniable. Même s’il est relativement peu attribué aujourd’hui, la popularité d’Éric ayant fortement baissé, ce prénom est porté par environ 307 mille personnes dans l’Hexagone. Âge moyen des Éric : 52 ans.

Caractère : À la fois réservé mais d’un tempérament décidé, Éric aime prendre des risques et découvrir de nouvelles choses. Tout ce qu’il entreprend est couronné de succès grâce à son originalité et à son esprit d’initiative. Même si, parfois, il agit avant de réfléchir ! Aussi bien en amour que dans les autres domaines de sa vie, Éric est un passionné. Il est excellent pour manager une équipe et la mener jusqu’à la victoire.

Les Éric célèbres sont très nombreux. Parmi eux : Éric Serra, le compositeur ; Éric Satie, le compositeur, également pianiste ; Éric Cantona, le footballeur ; Éric-Emmanuel Schmitt, l’écrivain, dramaturge et réalisateur ; Éric Rohmer, le réalisateur ; Éric Legrand, le comédien ; Éric Herson-Macarel, le comédien ; Éric Zemmour, le journaliste et chroniqueur ; Éric Naulleau, le journaliste et chroniqueur ; Eric Clapton, le musicien, chanteur et compositeur britannique ; Eric Von Stroheim, le comédien Américain, cinéaste et écrivain du XXe siècle ; Eric Butorac, le joueur de tennis américain ; Eric Stoltz, le comédien américain.

Prénoms proches : Erick, Erik, Erico, Emeric, Eurico, Emerick, Enric, Eryck sont des dérivés du prénom Éric.

Dicton du jour : Bon fermier à sainte Juliette, doit vendre ses poulettes. À la sainte Coralie, tous les lilas sont fleuris. Soleil à la Saint-Eric promet du vin plein les barriques.

Qui est-il ? Éric est un garçon viril, dynamique et entreprenant. Il possède un charme certain dont il a tout à fait conscience... Plutôt matérialiste et intéressé, il sait saisir les opportunités qui s’offrent à lui. C’est souvent un excellent financier qui aime le monde des affaires. Sa force de persuasion est importante. Lorsqu’il désire quelque chose, il fait preuve de détermination et d’obstination. Il a beaucoup d’énergie et a besoin d’exercices physiques, sans quoi il deviendrait vite assez agressif... ou prendrait de l’embonpoint !

Quelque peu vaniteux, Éric est sensible à la flatterie. Même s’il a l’esprit vif et critique, il n’a pas toujours le sens de l’humour, et sa susceptibilité est grande. Particulièrement curieux, il s’intéresse à des sujets divers qu’il n’approfondit pas toujours, d’où un côté superficiel, et une quête de la facilité. Il a confiance en lui, fait même parfois preuve d'autosatisfaction, ce qui lui permet de réussir assez facilement.

Peu importe s’il n’achève pas ses études par manque de motivation : il est de ceux qui sauront toujours se débrouiller ! Il dit avoir une bonne moralité et des principes, mais ce sont souvent des vœux pieux qu’il n’applique pas systématiquement... Il possède une intelligence pratique ainsi qu’une dextérité manuelle au-dessus de la moyenne et peut être un excellent bricoleur.

Enfant, Éric sait se faire aimer mais est possessif. Il a besoin d’accumuler pour se rassurer et se montre fort intéressé par son argent de poche. Plutôt doué, il se révèle un élève brillant, s’il est épaulé, surveillé et surtout motivé, mais son impatience et son instabilité peuvent lui jouer des tours. Il aime s’amuser et rire et ne prend pas toujours la vie au sérieux. L’étude des langues et des stages dans les pays étrangers seraient très profitables chez cette nature profondément adaptable.

Qu’aime-t-il ? Éric est un homme volontiers tourné vers les plaisirs et épicurien dans l’âme. Enthousiaste, il aime ressentir une impression de liberté dans tous les domaines, car il n’accepte aucune contrainte. Il adore l’action, le mouvement, l’aventure et les aventures, ainsi que renouveler ses émotions et ses sensations dans des voyages. Ennemi de la monotonie, il n’est pas fait pour la vie standardisée. Sentimentalement, c’est un amoureux possessif et jaloux qui possède un côté séducteur. Sa sexualité est forte et il peut paraître parfois peu délicat, même s’il sait faire preuve d’une réelle intuition. Peu fidèle, il prône la fidélité pour les autres et ne craint pas de se poser en exemple.

Que fait-il ? Il choisira une profession de contact, de pouvoir ou lucrative. Ainsi sera-t-il attiré par des carrières en rapport avec la finance ou les affaires, des professions techniques (liées à l’automobile, à l’industrie) ou scientifiques (ingénieur), des activités commerciales ou liées aux voyages, celles en liaison avec les plaisirs ou les jeux.



Erick Jacquin, jurado do programa MasterChef Brasil.

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Transliterando árabe no alfabeto latino


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Por meio da reprodução parcial disponível no Google Livros, tomei a liberdade de transcrever a breve seção “A transliteração do árabe”, escrita por Mamede Mustafa Jarouche em sua tradução de As mil e uma noites, feita diretamente do original e publicada há alguns anos. Localizei o texto online por acaso, quando estava fazendo buscas auxiliares pra minha postagem lendo e traduzindo a Sura al-Fatiha, trecho de abertura do Corão. É claro que existem várias formas de transliterar a escrita árabe pro alfabeto latino, mas dada a importância de Mamede Jarouche pras traduções brasileiras do árabe e o acesso relativamente difícil à versão impressa das Mil e uma noites, digitei aqui as páginas, sem licença prévia. Devo lembrar também que aí estão expostos apenas os casos que apresentam dificuldade, pois o que coincide entre o árabe e o português, como b, f, m, n etc., não foi mencionado. Neste caso, sugiro o próprio aprendizado da ortografia árabe ou a consulta a páginas ou materiais especializados. Espero que essa iniciativa possa ajudar a quem se interessa pela língua e cultura árabes e despertar o interesse pela leitura da referida obra literária.



Durante o processo de produção do livro, tradutor e editora se viram diante de um pequeno dilema: como transcrever os nomes árabes? Simplificar a transcrição facilitaria as coisas para o leitor ou seria um desrespeito a ele? Sabe-se que o idioma árabe possui sons que não existem em português nem em qualquer outro idioma indo-europeu, como a faríngea sonora ᶜayn, som tipicamente semita. Se não existem, de que adianta utilizar um símbolo para grafá-los? Faz diferença, para o leitor não especialista, ler ᶜAlī em vez de Ali? E há o problema das demais convenções, como o som do ch em português; em inglês, usa-se o sh. Já as vogais longas, embora inexistentes em português, podem ser consideradas semelhantes às tônicas. O nome da narradora, como grafá-lo? Chahrazad, Xahrazad, Shahrazad ou a forma correta, que é Šahrāzād? Depois de alguma hesitação, estabeleceu-se que seria melhor evitar soluções precárias e adotar a convenção internacional, que, além de evitar os dígrafos, é bastante útil e operacional. Abaixo, as descrições:

1. As vogais longas ا و ي se transcreveram ā, ū, ī. Podem ser pronunciadas como se fossem vogais tônicas;

2. A gutural laríngea ء (hamza) se transcreveu com um apóstrofo fechado (’). Não foi marcada quando em início de palavra;

3. A ى, “a breve” final (alif maqṣūra), se transcreveu à;

4. Os chamados “sons enfáticos” do árabe, ص ض ط ظ, se transcreveram ṣ, ḍ, ṭ, ẓ. Sua pronúncia é semelhante a s, d, t, z, porém com maior ênfase;

5. A faríngea aspirada ح se transcreveu ḥ. Não há equivalente para esse som em português;

6. A velar surda خ se transcreveu ḫ. Seu som é semelhante ao do j espanhol ou do ch alemão;

7. A velar sonora غ se transcreveu ġ. Seu som é semelhante ao do r parisiense em “Paris”;

8. A interdental surda ث se transcreveu ṯ. Seu som é semelhante ao do th na pronúncia inglesa em think;

9. A interdental sonora ذ se transcreveu ḏ. Seu som é semelhante ao do th na pronúncia inglesa em the;

10. A faríngea sonora ع se transcreveu ᶜ. Não tem som semelhante em nenhuma língua ocidental;

11. A laríngea surda ه se transcreveu h, e se pronuncia sempre como o h do inglês home;

12. A uvular surda ق se transcreveu q. Seu som é equivalente ao do k, porém com maior explosão;

13. A palatal surda ش se transcreveu š. Seu som é equivalente ao do x ou ch do português, como nas palavras xarope e chapéu;

14. A palatal sonora ج se transcreveu j, e seu som é semelhante ao do português;

15. O s se pronuncia sempre como em sapo e massa, independentemente de sua posição na palavra;

16. O artigo definido invariável do árabe, al, foi grafado junto à palavra que determina, sem separação por hífen; e, quando a palavra determinada pelo artigo começa com um fonema que assimila o l, optou-se por sua supressão, como em assayf (em lugar de alsayf).

17. Para os nomes de cidades, utilizou-se a forma convencional em português quando esta existe, como é o caso de Bagdá (em lugar de Baġdād), Basra (em lugar de Albaṣra), Mossul (em lugar de Almawṣil), Damasco (em lugar de Dimašq) etc. Caso contrário, adotou-se a transcrição fonética;

18. Desde que não contivessem Abū, “pai de”, ou Bin, “filho de”, os nomes próprios que formam sintagma de regência mediado por artigo se transcreveram aglutinados. Assim, grafou-se Šamsuddīn, “sol da fé”, em lugar de Šams Addīn; Nūruddīn, “luz da fé”, em lugar de Nūr Addīn; ᶜAbdullāh, “servo de Deus”, em lugar de ᶜAbd Allāh; Qamaruzzamān, “lua do tempo”, em lugar de Qamar Azzamān etc.

Finalmente, um detalhe que faz jus a esta derradeira observação: os personagens do livro, quase que invariavelmente, “dizem”; eles não “perguntam”, não “respondem”, não “afirmam”, não “exclamam”; apenas “dizem”. Já houve quem observasse que variar os verbos dicendi é um recurso vulgar, mas no presente caso tal variação se fez necessária, uma vez que os personagens são autênticas máquinas de “dizer” e a repetição ficaria demasiado monótona.


Mamede Mustafa Jarouche
São Paulo, 12 de setembro de 2004