quinta-feira, 25 de abril de 2019

Carta a um jovem admirador da Rússia


Link curto para esta postagem: fishuk.cc/amo-russia


NOTA: No último dia 22 de abril recebi uma mensagem pessoal de um jovem morador da cidade de São Paulo. Ele me contou que tinha ascendência alemã e do “Leste europeu” e que desde a adolescência sempre sofreu preconceito por admirar essa região do mundo, em particular a Rússia e a extinta URSS. Em nossa “sociedade bem doente”, segundo ele, “há um ódio generalizado a qualquer relação ou apologia a isso, sempre com violência”. Com algumas adaptações e correções, segue abaixo a resposta que escrevi ontem e que perscruta também vários problemas da atualidade.



Entendo sua preocupação, de fato os brasileiros conhecem muito pouco sobre a Rússia e acabam aceitando passivamente a imagem estereotipada pelo filtro dos países ocidentais. Isso não é novidade em nenhuma época ou cultura, mas no caso da Rússia tem uma razão particular: é um país muito grande que sempre bateu de frente com os interesses dos EUA e da UE, por isso era útil que aqui todos fossem privados do contato direto com os “Orientes” e se curvassem acriticamente à visão liberal do mundo.

Acredito que no caso específico do Brasil ainda houve outra razão histórica: nunca recebemos ondas massivas de imigração russa ou mesmo eslava em geral, ao contrário do que aconteceu com italianos, alemães, japoneses e sírio-libaneses. Claro que também tivemos espanhóis e judeus, mas em escala menor, e portugueses, mas estes faziam parte de nossa própria constituição nacional. Por isso, elementos de culturas como a italiana, japonesa e, em algum grau, alemã, como sobrenomes, música e culinária, meio que foram incorporados ao cotidiano urbano do Centro-Sul. Digo isso porque tenho uma ascendência italiana bem mais remota do que a ucraniana, mas que conta muito mais forte no cotidiano de minha família, talvez por estes motivos: ramo familiar com mais membros, alusões onipresentes à cultura italiana (mas em geral mitigando os traços regionais) que despertam o que já está latente em nós, uma comunidade ao redor muito maior com que meus antepassados podiam contar etc.

Dos tempos do século 19 ou começo do 20, só tivemos duas ondas consideráveis de imigração eslava: os ucranianos e poloneses, que se concentraram, contudo, no Paraná. Houve exemplos isolados, como o de meus bisavós, mas fora de um movimento maior, sem contar as exceções modernas de gente que vem fugir das más condições econômicas da Europa Oriental. Nunca tivemos um afluxo significativo de russos que levasse a uma “massa crítica” pra formar colônias, ao contrário do que ocorreu na Argentina e nos EUA; e mesmo nesses países, como no Brasil, os italianos acabaram por predominar. Então, é compreensível que não apenas essas comunidades sejam dispersas ou isoladas, como também a população comum do Brasil não consiga lidar razoavelmente com elas.

O preconceito é fruto do desconhecimento, e consiste numa blindagem artificial que erguemos contra influências externas que em geral consideramos danosas ou desestabilizadoras. Felizmente, você é uma das pouquíssimas pessoas que conheço que conseguiu quebrar essa blindagem, procurando conhecer mais e ser receptivo a novas maneiras de ver o mundo. Parece um pouco do meu caso, justamente desde a adolescência também, não porque eu seja um mestre na empatia, mas porque mesmo na escola, quando eu levantava a questão de conhecer outros povos além do inglês e do americano, simplesmente riam da minha cara e faziam piadas... E saiba que como doutorando em História, posso dizer que isso também ocorre no meio acadêmico: se nas áreas não ligadas diretamente a estudos sociais o preconceito é mais forte, não deixa de estar ausente mesmo em historiadores, filósofos, antropólogos e cientistas políticos. Isso porque mesmo que a palavra de ordem aí seja a “alteridade” e a “diversidade”, tudo é feito sob a ótica da intelectualidade euro-ocidental, anglo-americana ou de suas antigas colônias. O “resto do mundo” que tenha alguma independência é bonito de longe, desde que não conheçamos sua língua, não adotemos seus costumes, não conversemos com seus habitantes e muito menos simpatizemos com sua religião!

E infelizmente, não há o que fazer: as mentalidades comuns adotam o caminho mais fácil, e mais fácil é erigirmos nossa ignorância em conhecimento absoluto e repelirmos aquilo que a instabilize. É muito árduo conseguirmos remanejar nossa estrutura mental e, no mínimo, entender como funciona aquilo que está fora de nossos hábitos (mesmo que sequer sejam hábitos físicos, como a imagem idealizada que parte de nossas elites tem dos EUA). Por isso, se as pessoas não reagem com violência quando você fala com elas, pelo menos vão dar risada ou esboçar aquele sorrisinho amarelo de pretensa superioridade. Assim, a muralha midiática e cultural é absurdamente espessa em países como o Brasil (e mesmo diante do que acontece junto a nossos vizinhos de língua espanhola!), e quase ninguém chega a ver ou sentir pra além do que ordenam os condutores das massas. No caso dos antigos países comunistas, à diferença linguístico-cultural se somava a oposição política: dado que tinham um regime rival ao que vigorava entre nós, deveriam saber aqui apenas de seus pontos fracos, que encobriam inclusive as cruéis deficiências do capitalismo! E, claro, o fato de terem uma cultura diferente foi um brinde adicional à patrulha anticomunista...

Quando criei a TV Eslavo (então com o nome Pan-Eslavo Brasil) no fim de 2010, eu levava comigo o sonho sempre presente de fazer as pessoas conhecerem algo diferente, além daquilo que era oferecido na mídia mainstream. Estávamos no ápice da hegemonia cultural de esquerda, então nutrida pelo evidente sucesso econômico do governo Lula, mas parecia que a estrutura mental das pessoas não tinha mudado, e mesmo entre os profetas da esquerda essa “alteridade”, como eu disse acima, era seletivamente direcionada. O que aconteceu desde então, culminando com a vitória do Bolsonaro? Nunca tivemos tanta informação chegando de forma tão fácil e rápida, mas parece que ao invés de nos enriquecer, ela mais assustou a todos e não foi assimilada no grau e velocidade devidos. Ou seja, passamos a ter muito mais alvos de ódio do que alternativas pro pensamento. Eu nunca desisti de trazer coisas novas, nem de propor leituras diferentes do próprio cotidiano imediato, mesmo que em muitos momentos tenha me desviado da rota original. Mas fico triste como o sentimento de ódio está tão generalizado, que as pessoas não precisam mais receber argumentos diferentes pra se sentir lesadas, mas simplesmente externam sua insatisfação quando veem a publicidade de um conteúdo que, mesmo irracionalmente, abominam e não diz respeito diretamente a elas!

Mas um povo que não enriquece nem amadurece culturalmente não pode fazer nada com o dinheiro ou os recursos naturais que tem, mesmo que esteja sentado sobre quantidades infinitas. E só podemos amadurecer e enriquecer uma cultura quando ela se abre a outros influxos e rejeita a noção de “pureza”, achando antes caminhos alternativos pra resolver os próprios problemas ou simplesmente vendo a própria realidade com novas lentes pra gerar assim todo tipo de possibilidade em qualquer esfera da vida. A nova onda difamatória contra a Rússia, a China e, em parte, o Irã (que é muçulmano, mas, lembremos bem, não é o árabe festivamente tolerado no mainstream) é apenas mais um recrudescimento desse ciclo atávico que já tem, aqui e nas metrópoles, seus intelectuais orgânicos munidos de categorias-chave. Aproveite cada oportunidade pra redobrar sua atenção e decifrar esses elementos.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe suas impressões, mas não perca a gentileza nem o senso de utilidade! Tomo a liberdade de apagar comentários mentirosos, xenofóbicos, fora do tema ou cujo objetivo é me ofender pessoalmente.